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Reconhecimento Pessoal: Procedimento Penal e Aportes Psicológicos
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Reconhecimento Pessoal: Procedimento Penal e Aportes Psicológicos
E-book677 páginas9 horas

Reconhecimento Pessoal: Procedimento Penal e Aportes Psicológicos

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Sobre este e-book

O reconhecimento pessoal é um dos meios de prova previstos em nosso CPP. A disciplina atual manteve-se intacta desde a promulgação do Codex, muito embora os últimos anos tenham se caracterizado por diversas alterações legislativas noutros institutos. Esse espírito de aperfeiçoamento de institutos processuais ainda não abarcou satisfatoriamente o reconhecimento pessoal, fonte de, juntamente com outros meios de prova, críticas doutrinárias e jurisprudenciais, em virtude das carências que permeiam sua normatização. Por essas razões, aponta-se para a precariedade da regulamentação legal, assinalando omissões. Se conceitos como "formalidade" mostram-se aplicáveis ao reconhecimento pessoal, a ele agregam-se outros, a exemplo do de "irrepetibilidade". Questiona-se o senso comum teórico que chancela o emprego da condução coercitiva do sujeito passivo para fins de identificação. O reconhecimento facial e o PL 8.045/10 são também temáticas abordadas, além de alguns precedentes jurisprudenciais. Apontamos ainda para a imperiosidade de um estudo interdisciplinar que possibilite aos atores jurídicos a consideração das recentes descobertas no campo da psicologia. Outras temáticas, a exemplo do papel exercido pela mídia e sua (in)devida publicação de determinados conteúdos jornalísticos, também são exploradas, tudo sem a pretensão de exaurir a análise do assunto, mas de demonstrar o quanto o reconhecimento pessoal é uma prova penal cuja compreensão demanda um inevitável olhar global.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de mar. de 2022
ISBN9786525217864
Reconhecimento Pessoal: Procedimento Penal e Aportes Psicológicos

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    Reconhecimento Pessoal - Pedro Zucchetti Filho

    CAPÍTULO I – O RECONHECIMENTO DE PESSOAS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

    Neste capítulo, estabelecemos conceitos iniciais indispensáveis para a compreensão de nosso objeto e indicamos a principiologia que fundamenta o reconhecimento de pessoas. Outrossim, enfatizamos a inafastável interação entre necessidade de observância da formalidade e validade do ato, além de fazermos breve incursão voltada à relação existente entre o princípio do livre convencimento motivado e os reconhecimentos informais.

    1. O DIREITO À PROVA NO PROCESSO PENAL

    Sabe-se que o termo prova²⁶ é polissêmico, possuindo distintas classificações e inclusive comportando, em outros ramos científicos, diferentes acepções²⁷. Dentre aquelas, iremos abordar sucintamente as referentes ao elemento, ao objeto, à fonte e ao meio de prova.

    O elemento de prova pode ser entendido por aquilo que, ao ser inserido no processo, fica à disposição do magistrado para fundamentação das inferências realizadas (depoimentos testemunhais e conteúdo inserto em documentos, por exemplo)²⁸, isto é, toda e qualquer informação objetiva, legalmente introduzida no processo e idônea no sentido de produzir um conhecimento certo ou provável²⁹ em relação à imputação. Em inglês, o termo encontra correspondente no vocábulo evidence³⁰.

    No tocante à fonte de prova, esta diz respeito aos sujeitos ou objetos que, ao permitirem a constituição de elementos de prova, podem trazer informações úteis ao processo³¹. Divide-se em pessoal (por exemplo, as testemunhas/reconhecedores, os peritos) e real (por exemplo, os documentos). No dizer de Gomes Filho, são as pessoas ou coisas das quais se pode conseguir a prova (elemento de prova)³².

    Já o objeto da prova vincula-se ao próprio fato, ao acontecimento ocorrido, cuja existência deve ser processualmente provada. Ele decorre da fonte de prova e ingressa no processo mediante o emprego dos diversos meios de prova³³.

    Meio de prova (ou meio de produção de prova³⁴), por sua vez, é todo ato ou procedimento que permite a introdução no processo de um elemento probatório (reconhecimento de pessoas, testemunho, perícia, dentre outros)³⁵. É o instrumento por meio do qual disponibiliza-se ao magistrado o conhecimento (possível) da história do fato, do qual socorrer-se-á para poder prolatar a sentença³⁶.

    É o meio de prova que permitirá que uma informação probatória (e externa ao processo) possa neste validamente ingressar, tornando-se do conhecimento das partes e do juiz³⁷. Percebe-se, pois, ser o meio de prova (conceito tipicamente processual) o instrumento responsável por levar a fonte de prova (conceito extraprocessual ou a-jurídico, porquanto existe independentemente do processo) a este³⁸, sem a qual o conhecimento judicial acerca dos fatos resta obstaculizado.

    Nesse diapasão, o reconhecimento pessoal pode ser considerado como elemento de prova desde que, conforme Tomé Lopes³⁹, seja produzido na presença do magistrado e das partes e contanto que supervisionado pelo direito de defesa e pelo contraditório. O assunto será abordado novamente quando tratarmos da irrepetibilidade do reconhecimento.

    1.1 A Função da Prova

    Por alguns considerada a pedra angular do processo penal⁴⁰, a prova (direito à produção probatória) relaciona-se diretamente com a garantia do acesso à jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF)⁴¹, porquanto esta, a fim de poder ser realizada em sua plenitude, demanda que as partes possam aportar aos autos, mediante meios e procedimentos regulados em lei, todos os elementos (lícitos) que considerem necessários para a comprovação de suas alegações. Nesse sentido, é a atividade probatória desenvolvida pelas partes, sob o pálio do contraditório e perante o juiz natural do caso⁴², que viabiliza a (possível) representação do evento ao magistrado, permitindo o alcance de determinado grau de verosimiglianza razoavelmente apto a eliminar as incertezas⁴³.

    Taruffo⁴⁴ entende que a função da prova é a de estabelecer a verdade acerca de um ou mais fatos relevantes para a decisão, servindo também para fixar os limites dos conhecimentos ‘próprios’ que o magistrado pode introduzir no processo e dos quais se socorre no momento de prolatar a decisão. Tem a prova, portanto, um destinatário principal – o magistrado – e uma função primordial – a de auxiliar na formação do seu convencimento⁴⁵, isto é, serve parra convencê-lo psicologicamente acerca da existência ou inexistência dos fatos afirmados pelas partes⁴⁶.

    Entendimento similar é o de Choukr, para quem o escopo da utilização probatória é o de subsidiar ao juiz natural os meios, os elementos necessários para que, atingindo determinado grau de convicção, possa proferir sentença⁴⁷. Para Camargo Aranha⁴⁸, a principal função da prova é a de demonstrar a existência fática de determinado acontecimento, tratando-se eminentemente de atividade reconstrutiva, a qual compara a uma espécie de missão histórica.

    Ainda no tocante à doutrina brasileira, encontramos quem defina a prova como sendo os elementos de convicção fornecidos ao juiz, com os quais ele poderá reconstruir os fatos investigados e estabelecer uma certeza judiciária (ou verdade possível), certeza esta que apenas equivale a uma probabilidade⁴⁹ – e não, propriamente, à verdade⁵⁰.

    Portanto, sendo o processo penal voltado à reconstituição (aproximada) de um fato histórico⁵¹, vemos que as provas são os instrumentos que, ao fornecerem subsídios ao juiz para que possa alcançar mais facilmente seu convencimento, viabilizam esta reconstrução. De modo que, sem as provas, o exercício da atividade recognitiva do julgador resta impossibilitado (função persuasiva da prova, em que se busca sua captura psíquica)⁵², pois partimos da premissa de que ele, no que respeita aos fatos a serem provados, deve ser um ignorante, isto é, alguém que desconhece (ou deveria desconhecer) inteiramente quais foram as circunstâncias que circundaram o delito e cujo conhecimento e melhor compreensão dependem do comportamento ativo das partes e, por conseguinte, das provas que elas aportem ao processo.

    1.2 A Base Principiológica Orientadora da Produção Probatória

    Vencidos os esclarecimentos iniciais sobre a prova, faz-se mister analisar alguns dos princípios que informam a atividade probatória. Dentre eles, teceremos concisas considerações sobre os princípios-garantia da jurisdição, do contraditório e da ampla defesa, da presunção de inocência e da liberdade probatória.

    A garantia da jurisdição, de origem anglo-saxã, encontra sua expressão no axioma nulla poena, nulla culpa sine iudicio e é resultado da vedação, pelo Estado, do exercício da autotutela, proibição que teve como consequência a avocação pelo Poder Público do monopólio do jus puniendi. É garantia que veda a aplicação de uma sanção penal sem que tenha existido prévio processo, tendo como corolário a necessidade de os julgamentos apenas levarem em consideração as provas processualmente produzidas⁵³.

    Lembra Lopes Jr.⁵⁴ que a jurisdição, para que seja devidamente respeitada, requer mais do que unicamente o ter um juiz, sendo necessária também a existência de especiais atributos, a exemplo da imparcialidade, da impossibilidade de criação de tribunais de exceção (o juiz deve ser natural) e, principalmente, da preponderância da eficácia máxima do sistema de garantias constitucionais.

    Além do mais, a garantia atualmente contém um novo significado dentro de um Estado Democrático de Direito, não mais apenas político, mas também constitucional, caracterizado pela efetiva possibilidade de serem observados os direitos fundamentais. Esta ampliação da definição do papel da jurisdição e do juiz no processo penal justifica-se também em virtude da compreensão de que o sujeito passivo, ao longo da persecução penal, é considerado o mais débil, o hipossuficiente (tecnicamente), sendo imperiosa a atuação de um magistrado alinhada, ética e legalmente, à proteção dos direitos do imputado.

    Partindo da perspectiva de que a garantia da jurisdição impõe que as provas a serem valoradas pelo magistrado sejam exclusivamente aquelas produzidas ao longo do processo, Lopes Jr.⁵⁵ faz a distinção entre atos de prova e atos de investigação, sendo que algumas das principais distinções entre eles residem no fato de que os atos de investigação dispensam o completo respeito ao contraditório, à publicidade e à imediação, podendo sofrer limitações, além de, ao contrário dos atos de prova, destinarem-se à investigação preliminar. Nesse sentido, o autor conclui que o inquérito policial apenas produz atos de investigação, de limitado valor probatório, unicamente podendo ser considerados atos de prova aqueles idôneos a fundamentarem uma decisão, aqueles praticados dentro do processo, à luz da garantia da jurisdição e demais regras do devido processo penal.

    Em relação ao contraditório, saliente-se que a concepção da teoria do processo como procedimento em contraditório, de Fazzalari⁵⁶, fez com que este princípio recebesse nova e reforçada ênfase, o qual deveria integrar e permear os atos procedimentais até o advento da sentença condenatória⁵⁷.

    A despeito da existência de outras teorias acerca da natureza jurídica do processo⁵⁸, constatamos que a contribuição de Fazzalari encontra ressonância na Constituição, em seu art. 5º, LV, o qual dispõe que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. É, destarte, princípio que assegura a liberdade⁵⁹.

    Percebe-se que o cerne conceitual de Fazzalari está na força atribuída ao contraditório, com inegável relevância para a instituição de um processo penal democrático, deslocando o núcleo imantador: não mais a jurisdição, mas o efetivo contraditório entre as partes. A legitimidade da sentença passa a vincular-se à prévia observância do contraditório. Ademais, Fazzalari deu nova roupagem à própria jurisdição, conferindo ao juiz não o papel de contraditor, mas de garantidor do contraditório, sendo o responsável pela manutenção da normalidade/ regularidade na produção da prova efetuada pelas partes⁶⁰.

    Aprofundando o conceito, podemos afirmar que o princípio do contraditório (também conhecido por princípio da bilateralidade da audiência) consiste em um método de confrontação da prova e comprovação da verdade⁶¹, envolvendo duas partes antagônicas (acusação e defesa) e relacionando-se com o princípio audiatur et altera pars, isto é, obriga o magistrado a levar em consideração tanto a versão acusatória como as alegações defensivas, o que fortalece a atuação de ambas as partes, principalmente a do acusado.

    Esta obrigação relaciona-se exclusivamente à necessidade de concessão de oportunidade de fala, sendo o contraditório observado sempre que a parte tenha podido manifestar-se quanto às alegações da parte contrária, mesmo que tenha optado, por motivos estratégicos, manter-se inerte ou silente. Em outras palavras: às partes deve ser concedida a oportunidade de, caso queiram, exporem suas razões e requererem a produção das provas que considerem pertinentes para a resolução do caso⁶².

    O princípio, que encontra fundamento no adágio latino nemo condenatur sine auditur (ninguém poderá ser condenado sem ter sido ouvido anteriormente), desdobra-se no direito de ser cientificado dos atos processuais (direito de informação) e no direito de poder contrapor provas e argumentos em relação ao ato praticado pela parte oposta (direito de reação ou de participação). Sem o amparo do contraditório, elevadíssimas são as probabilidades de ocorrerem, ainda que inconscientemente, manipulações probatórias por parte do juiz⁶³. Sua ausência, por óbvio, inviabiliza qualquer possibilidade de manifestação defensiva, impedindo a efetividade de um processo penal de garantia⁶⁴.

    Como consequência da igualdade substancial do contraditório, para que este possa ser pleno e efetivo, é mister que haja uma real e igualitária participação dos sujeitos processuais, motivo pelo qual a reação/participação deve também ser estimulada. O contraditório, destarte, passa a ter um valor heurístico, ou seja, mais do que uma escolha de política processual, o método dialético é uma garantia epistemológica na pesquisa da verdade⁶⁵.

    Em Fernandes⁶⁶ vemos que o contraditório, no processo penal, deve ser pleno e efetivo, isto é, além de o princípio dever ser observado durante todo o trâmite da causa, deve ser proporcionado ao imputado os meios para que efetivamente possa insurgir-se contra as alegações da parte contrária. Todavia, o entendimento do autor é no sentido de que o contraditório, no âmbito processual penal, limita-se à fase processual, não integrando a fase investigativa, porquanto o inquérito policial é composto por atos que são levados a cabo por autoridade administrativa⁶⁷, razão pela qual não haveria necessidade de intimação dos atos realizados nesta etapa.

    Para Tucci, nas situações em que se verifica a ocorrência do contraditório diferido ou postergado "não há violação à garantia da bilateralidade da audiência, que, firme, se vê apenas diferida para momento ulterior à pronunciação de ato decisório liminar, prosseguindo-se regularmente no procedimento instaurado"⁶⁸.

    Ressalte-se que o contraditório não tem a finalidade exclusiva de fazer com que a parte oponha resistência, mas também a de fazer com que ela possa, de alguma forma, influir ativamente sobre o trâmite processual, interferindo positivamente no seu resultado. Ademais, para que a prova possa ser considerada válida no momento de sua produção, é importante que haja a presença tanto das partes como do juiz⁶⁹.

    É dizer, os dados coletados unilateralmente não podem ser utilizados para influir no convencimento judicial, de maneira que, em respeito ao princípio da paridade de armas, todos os meios utilizados processualmente (e, excepcionalmente, também os produzidos durante o trâmite do inquérito, como explicaremos em seguida) pela parte interessada com o objetivo de confirmar sua tese devem, obrigatoriamente, ser disponibilizados, para fins de eventual contestação, à parte adversa⁷⁰.

    No que toca à ampla defesa, igualmente insculpida no art. 5º, LV, da CF, está ela intimamente vinculada ao contraditório, todavia, caracteriza-se por impor a efetividade da reação/participação, sob pena de nulidade quando, por ser insuficiente, afetar o sujeito passivo⁷¹. É a ampla defesa, desse modo, que garante o contraditório, sendo este seu antecedente necessário⁷². Assim como o contraditório, a ampla defesa integra o conteúdo do devido processo legal, sendo um dos fatores que conferem legitimidade ao exercício da jurisdição.

    Além do mais, ela abrange tanto a autodefesa (defesa pessoal) como a defesa técnica. A primeira, que pode ser exercida ou não (é passível de renúncia), contém dois direitos: o direito de presença (referente à possibilidade de o sujeito passivo adotar determinada posição quanto às provas produzidas e sustentar suas alegações) e o direito de audiência (pertinente ao momento do interrogatório, ocasião em que o imputado poderá influir no convencimento do juiz). Já a segunda (defesa técnica), exercida por profissional habilitado, é irrenunciável e deve ser plena e efetiva⁷³.

    No tocante à presunção de inocência (também conhecida doutrinariamente como princípio da não culpabilidade ou do estado de inocência), está ela expressamente prevista no art. 5º, LVII, da Constituição, sendo considerado o princípio reitor do processo penal. Foi inicialmente positivada no art. 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. O constante dessa norma foi reproduzido no art. XI da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, segundo o qual todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei⁷⁴.

    O princípio pode ser lido numa dupla dimensão: a de dever de tratamento e a de regra de julgamento. Em relação ao dever de tratamento, ele desdobra-se, por sua vez, em duas dimensões: para a dimensão interna, o juiz deve tratar o acusado como inocente, o que implica no uso parcimonioso de eventuais medidas cautelares, devendo ser decretadas com objetivos estritamente cautelares, e na necessidade de desfazimento, por parte do acusador, de sua carga probatória⁷⁵. Também significa que, ao longo da ação penal, o sujeito passivo deve receber o mesmo tratamento dispensado a qualquer outra pessoa, porquanto seu status moral e social permanece inalterado.

    Já a dimensão externa implica o cuidado de os meios de comunicação, mediante publicidade abusiva, não condenarem o sujeito passivo antes de seu julgamento pelo Poder Judiciário. Trata-se, em verdade, de uma blindagem à estigmatização precoce do sujeito passivo. No tocante à regra de julgamento, esta significa que o juiz deverá absolver o acusado caso não seja suficientemente convencido da culpabilidade deste, conforme preconiza o art. 386, VII, do Código de Processo Penal⁷⁶.

    Quejio⁷⁷ aduz que, por decorrer da presunção da inocência que o acusado não tem o dever do cooperar com a investigação do delito (a carga da demonstração de sua eventual culpabilidade pertence inteiramente à acusação), é inaceitável que ele venha a tornar-se objeto de prova, não podendo a recusa em colaborar ser interpretada em seu desfavor.

    É, nas palavras de Montero Aroca⁷⁸, princípio que deve conformar a regulação do processo pelo legislador ordinário e que dispensa o acusado da carga probatória, pertencendo esta unicamente ao Ministério Público, de modo que sua falta de comprovação conduzirá à sentença absolutória. Acrescente-se que o princípio também está estreitamente relacionado com a motivação das decisões judiciais, cumprindo duas funções complementares: 1) Tornar públicas as razões da decisão adotada e 2) Permitir seu possível controle por meio dos recursos.

    No tocante ao princípio da liberdade probatória, entendemos que ele se encontra previsto no art. 155, parágrafo único, do CPP, de acordo com o qual Somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil.. Há quem entenda que referido princípio não se encontra previsto no CPP⁷⁹, sendo permitida a analogia com o CPC⁸⁰ e o CPPM⁸¹.

    Conforme Cafferata Nores⁸², o princípio traz o significado de que, no âmbito processual penal, tudo pode ser provado e por qualquer meio probatório. Todavia, caso se entendesse como amplo e irrestrito, esse princípio ocasionaria graves lesões aos direitos fundamentais (exemplo do emprego de provas ilícitas), razão pela qual a melhor interpretação é a de que deve ser limitado, com grau variável, para a acusação e para a defesa⁸³.

    O princípio da liberdade probatória será reanalisado, com maior profundidade, ao tratarmos do livre convencimento motivado e dos reconhecimentos atípicos.


    26 De acordo com Xavier de Aquino, este vocábulo encontra sua origem nos termos latinos probatio, probationis, os quais decorrem de probus, significando bom, correto, honrado (XAVIER DE AQUINO, José Carlos G. A Prova Testemunhal no Processo Penal Brasileiro. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 7).

    27 Gomes Filho, trazendo as concepções empregadas em outros ramos da ciência para a ciência processual, destaca três delas, quais sejam, (i) prova como demonstração, quando diz-se que há prova de um fato que interessa à decisão judicial quando são apresentados dados de conhecimentos idôneos para admitir-se, como verdadeiro, um enunciado sobre aquele mesmo fato; (ii) prova como experimentação, situação em que a instrução probatória volta-se a recolher e analisar os elementos necessários para confirmar ou refutar as acusações sobre aqueles fatos e iii) prova como desafio/obstáculo a ser superado, quando fala-se em ônus da prova como encargo do qual a parte deve desfazer-se para a demonstração de um fato alegado (GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Notas sobre a Terminologia da Prova (Reflexos no Processo Penal Brasileiro). Estudos em Homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover. YARSHELL, Flávio Luiz e MORAES, Maurício Zanoide de. (orgs.). São Paulo, DPJ, 2005, p. 306).

    28 TOMÉ LOPES, Mariângela. O Reconhecimento como Meio de Prova. Necessidade de Reformulação do Direito Brasileiro. 209f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 4.

    29 CAFFERATA NORES, José I. La Prueba en el Proceso Penal. 3 ed. Buenos Aires: Depalma, 1998, p. 15. Conforme o autor, podem dizer respeito, por exemplo, a impressões que o delito tenha deixado em coisas (manchas de sangue), em um corpo (lesões corporais) ou na psique de alguém (percepção), podendo também ser o resultado de operações técnicas ou de experimentos (caso das perícias).

    30 GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Notas sobre a Terminologia da Prova (Reflexos no Processo Penal Brasileiro), p. 307.

    31 BRENTEL, Camilla. As Provas Não Repetíveis no Processo Penal Brasileiro. 110f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 15. Segundo a autora, difere do meio de investigação, meio de pesquisa ou meio de obtenção de prova, dado que este se destina a descobrir potenciais fontes de prova.

    32 GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Notas sobre a Terminologia da Prova (Reflexos no Processo Penal Brasileiro), p. 308.

    33 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 142. Em outro trabalho, Gomes Filho amplia esta definição tradicional do senso comum teórico acerca do thema probandum, aduzindo tratar-se, em verdade, de "proposições representativas do fato juridicamente relevantes, e colocadas pelas partes como base da acusação e defesa, ou mesmo como fundamento de eventual pesquisa judicial" (GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Notas sobre a Terminologia da Prova (Reflexos no Processo Penal Brasileiro), p. 317).

    34 BRENTEL, Camilla. As Provas Não Repetíveis no Processo Penal Brasileiro, p. 16.

    35 TOMÉ LOPES, Mariângela. O Reconhecimento como Meio de Prova. Necessidade de Reformulação do Direito Brasileiro, p. 4. Elucide-se que meio de investigação e meio de prova são conceitos divergentes. Aquele é elaborado na fase da investigação preparatória do processo, sem intervenção judicial, tendo como principal escopo a coleta de indícios que possam servir de fundamento para o oferecimento da denúncia. Por não ter sido produzido sob o pálio do contraditório, em regra não forma elemento de prova. Em virtude do princípio da liberdade probatória ou da não taxatividade dos meios de prova, encontra-se na doutrina a distinção entre os meios de prova e os meios de investigação, típicos e atípicos. Conforme o entendimento restritivo, os meios típicos assim são considerados quando, a despeito da omissão legal quanto à determinação do seu procedimento, encontrarem-se previstos legalmente, isto é, quando são nominados. É a posição comungada por Gomes Filho e Badaró, para quem o meio de prova atípico é aquele que não está previsto no ordenamento jurídico e para o qual não há um procedimento probatório específico, sendo necessário distinguir os meios de prova típicos, para os quais são previstos um procedimento probatório, dos meios de prova atípicos, seja porque não previsto pelo legislador, seja porque, embora nominados em lei, não há previsão de procedimento probatório específico (GOMES FILHO, Antônio Magalhães; BADARÓ, Gustavo Henrique Rigni Ivahy. Prova e Sucedâneos de Prova no Processo Penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 66, maio-junho de 2007, São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 183). Para o posicionamento não restritivo (ou ampliativo), o meio será atípico quando não se encontrar previsto normativamente ou quando, embora legalmente previsto, não houver regulamentação acerca do seu procedimento. A temática pertinente aos meios típicos e atípicos de prova será novamente abordada, com maior profundidade, no tópico relativo ao reconhecimento fotográfico.

    36 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 366.

    37 CAFFERATA NORES, José I. La Prueba en el Proceso Penal, p. 24.

    38 HUERTAS MARTÍN, M. Isabel. El Sujeto Pasivo del Proceso Penal como Objeto de la Prueba. Barcelona: Jose Maria Bosch Editor, 1999, p. 29.

    39 TOMÉ LOPES, Mariângela. O Reconhecimento como Meio de Prova. Necessidade de Reformulação do Direito Brasileiro, p. 6.

    40 FERNANDES ABREU, Maria Amélia Soares. Os Meios Atípicos da Prova em Processo Penal. 2015. 113f. Dissertação (Mestrado em Direito). Departamento de Direito, Universidade Autônoma de Lisboa, Lisboa, 2015, p. 11.

    41 FERNANDES ABREU, Maria Amélia Soares. Os Meios Atípicos da Prova em Processo Penal, p. 57.

    42 CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal. Comentários Consolidados e Crítica Jurisprudencial. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 305.

    43 TORQUATO AVOLIO, Luiz Francisco. Provas Ilícitas. Interceptações Telefônicas, Ambientais e Gravações Clandestinas. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 32 e ss. Ensina o autor que o direito à prova (compreendido como o direito de as partes poderem propor meios probatórios) teve origem em decisão da Corte Federal alemã, datada de 18.06.1957, conforme a qual a atribuição de poderes instrutórios ao juiz (produção de provas ex officio) não elimina o direito autônomo de as partes, caso queiram, proporem meios de prova. Aduz ter sido Trocker quem formulou um princípio geral com esteio nesta decisão, consoante o qual as partes têm um direito constitucionalmente garantido de apresentar ou requerer os meios de prova que reputem úteis para a reconstrução processual da verdade e para demonstrar o fundamento das suas pretensões, mas não possuem qualquer direito de produção de tais provas por determinação do juiz. Este protótipo do direito à prova, que condicionava o ingresso processual do meio de prova ao arbítrio judicial, embora tenha representado um avanço para a época – porquanto foi a primeira vez em que se reconheceu às partes o direito de requererem as provas que reputassem úteis para influir na formação do convencimento judicial – veio, posteriormente, a ser alvo de aprimoramentos pelas cortes europeias, principalmente pela italiana. A constitucionalidade de duas leis italianas foi contestada judicialmente (L. 253, art. 10, ns. 1 e 2, de 23.05.1950 e L. 372, art. 4, de 25.06.1909), as quais suprimiam o direito de as partes participarem ativamente da produção probatória e permitiam que o juiz decidisse conforme as decisões tomadas anteriormente em âmbito administrativo. A partir de então, a jurisprudência alemã evoluiu para a compreensão de que, com base no art. 103, § 1º da Constituição, o juiz tem o dever de, quando houver relevância, tomar conhecimento dos requerimentos probatórios feitos pelas partes, permitindo a Trocker a elaboração de nova fórmula sobre o direito à prova, conforme a qual as partes têm um direito constitucionalmente garantido de ver produzidas no processo as provas indicadas e propostas que representam uma efetiva relevância ou utilidade para a resolução da controvérsia, correspondendo a este direito o dever de o juiz introduzir referidos meios de prova, sob pena de violação de preceitos constitucionais.

    44 TARUFFO, Michele. La Prueba de los Hechos. 2 ed. Madrid: Editorial Trotta, S.A, 2005, p. 89-90.

    45 MESSIAS, Irajá Pereira. Da Prova Penal. 2 ed. Campinas: Bookseller, 2001, p. 202.

    46 MONTERO AROCA, Juan. Principios del Proceso Penal. Una Explicación Basada en la Razón. Valencia: Tirant lo Blanch, 1997, p. 159.

    47 CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal. Comentários Consolidados e Crítica Jurisprudencial, p. 306.

    48 CAMARGO ARANHA, Adalberto José Q. T. de. Da Prova no Processo Penal. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 5. A título de curiosidade, mencione-se que o art. 341, do Código Civil de Portugal contém disposição alinhada ao entendimento do autor, cuja redação é a seguinte: As provas têm por função a demonstração da realidade dos fatos.

    49 XAVIER DE AQUINO, José Carlos G. A Prova Testemunhal no Processo Penal Brasileiro, p. 8. No mesmo sentido aponta Queijo, para quem A verdade, obtida no processo, é sempre probabilística, objetivando aproximar-se, no maior grau possível, da realidade ocorrida, complementando que a verdade, em âmbito processual, deve ser apurada mediante o atendimento dos princípios, regras e garantias processuais, é dizer, com observância, essencialmente, da legalidade e da ética (QUEIJO, Maria Elizabeth. O Direito de Não Produzir Prova Contra si Mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 34-38).

    50 Inúmeras folhas já foram escritas com o objetivo de tentar esclarecer o papel da verdade no processo penal. Embora este espaço não seja dedicado a destrinchar esta problemática, limitamo-nos a pontuar que a verdade não mais pode ser encarada como a verdade absoluta (real, material ou substancial), isto é, como inteiramente correspondente e coincidente àquela referente aos fatos e que teria sido a recepcionada pelo processo penal – que, ao contrário do processo civil, não se comprazeria com meias verdades –, o que permitiria ao juiz iniciativa probatória e apuração dos fatos sem quaisquer limites legais. Tampouco podem, validamente, continuar a ser empregados termos que não mais se prestam a solucionar a questão, a exemplo da verdade formal ou processual, ou seja, aproximativa do evento naturalístico e compreendida como a decorrente das provas carreadas ao processo, representando uma verdade mais restrita. Partindo-se do entendimento de Carnelutti de que a verdade está no todo, não na parte; e o todo é demais para nós e lembrando da advertência de Lagier (LAGIER, Daniel Gonzalez. Hechos y Conceptos) de que o resultado processualmente produzido por uma prova variará conforme mudem os conceitos utilizados, pensamos – e aqui a análise do problema é superficial, reitere-se – que o mais adequado, jurídica e cientificamente, seja abordar a verdade no processo penal como o convencimento atingido pelo juiz após o trâmite procedimental, este construído em contraditório, em estrito respeito à legalidade e, consequentemente, aos limites impostos pelas formas processuais. O anseio de alcançá-la, como demonstram Achutti e Rocha Rodrigues, renasceu principalmente após as descobertas realizadas por Galileu Galilei e Isaac Newton, as quais ajudaram a moldar o pensamento e o conhecimento modernos, fazendo com que este tenha passado a acreditar na possibilidade de descobrir, através da ciência, a verdade de todas as coisas, prática científica que acabou por alastrar-se por todos os campos do conhecimento. Como pontuam os autores, ao ‘desencantar’ o mundo e despi-lo dos mitos que o configuravam, a ciência atribuiu a si o local privilegiado de revelação da verdade e, ao fazer isso, mitificou-se. Substituiu um mito por outro, a saber de que a racionalidade científica podia dar conta e explicar todos os fenômenos do mundo (ACHUTTI, Daniel Silva; ROCHA RODRIGUES, Roberto da. Tempo, Memória e Direito no Século XXI: O Delírio da Busca da Verdade Real no Processo Penal. Disponível em: https://www.academia.edu/2999123/Tempo_Memória_e_Direito_no_Século_XXI_o_delírio_da_busca_da_verdade_real_no_processo_penal. Acesso em: 04 abr. 2019, p. 142-143.). Nessa toada, pensamos que o dogma da verdade real (e dogmas, como é cediço, são indiscutíveis e inquestionáveis) deve ser descartado – até porque já superado (a teoria einsteiniana da relatividade ampara essa argumentação) – porquanto avaliza a inquisitorialidade judicial, tornando ilimitada a atividade judicial de procura por elementos probatórios condizentes com a verdade, tendo já servido de justificativa para nefastas arbitrariedades e violações de direitos. O termo verdade aparecerá em diversos momentos ao longo do presente trabalho, porém, deixamos aqui nossa posição sobre a maneira como concebemos sua aplicação no processo penal.

    51 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal, p. 355.

    52 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal, p. 357-358.

    53 Proibida a realização da justiça pelas próprias mãos – prática excepcionada em raras hipóteses no ordenamento, como é o caso da legítima defesa, a qual, mesmo tratando-se de lídima autodefesa, é causa excludente da ilicitude devidamente delimitada pela lei –, a exclusividade para aplicação do Direito Penal passou a ser dos tribunais. Ademais, diferenciando-se o processo penal do processo civil em razão daquele possuir categorias jurídicas próprias, a despeito de existir cada vez mais situações de autocomposição pelas partes (casos de incidência da justiça penal consensual), em regra, a solução do caso penal é de responsabilidade exclusiva do tribunal que o soluciona mediante o processo. A exclusividade processual, embora cada vez mais mitigada em razão dos princípios da oportunidade e da disponibilidade, é resultado de avanço civilizatório e deve, na medida do constitucional e legalmente permitido, ser preservada.

    54 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, p. 58-59. Como pontua o autor, o princípio exige ainda a inderrogabilidade do juízo (infungibilidade) e a indeclinabilidade da jurisdição.

    55 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, p. 366-367. Entendemos, todavia, que o reconhecimento de pessoas, mesmo que realizado durante as investigações pode ser, em virtude de tratar-se de ato irrepetível, valorado pelo magistrado juntamente com os atos de prova, desde que determinadas condições e critérios sejam observados.

    56 Conforme o processualista italiano, o processo caracteriza-se por ser um procedimento em que há a participação de partes sobre as quais incidirá, em suas esferas jurídicas, os efeitos jurídicos do ato final, ao qual validamente se chega mediante a observância, principalmente, do contraditório. Em seus dizeres, a estrutura dialética do procedimento é atendida quando há uma simétrica paridade das suas posições, uma mútua implicação das suas atividades (destinadas, respectivamente, a promover e impedir a emanação do procedimento) (FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Tradução de Elaine Nassif. 8 ed. Campinas: Bookseller, 2006, p. 118-119).

    57 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, p. 39.

    58 LOPES JR. explica que a teoria do processo como relação jurídica, de Bülow, segundo a qual o processo constitui-se numa série de atos concatenados e conduzidos por um juiz até a sentença, peca por relegar o rito procedimental ao mero conceito de ‘caminho’, de concatenação (burocrática) de atos. Como consequência, a forma ficou desvinculada do sentido de garantia e limite de poder, aderindo ao significado de simples meio para que a sentença pudesse ser proferida, esvaziando qualquer força da tipicidade processual. A teoria concebida por Fazzalari trouxe o benefício de ultrapassar essa visão essencialmente burocrática do procedimento, dando primazia à necessidade de observância das regras do jogo, especialmente do contraditório, elegido a princípio supremo (LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal: Introdução Crítica. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 240).

    59 FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual, p. 129.

    60 LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal: Introdução Crítica, p. 241-242.

    61 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal, p. 374-375.

    62 MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Introdução aos Princípios Gerais do Direito Processual Penal Brasileiro. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/SRC%2001_26.pdf. Acesso em: 20 mar. 2019.

    63 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal, p. 376-378.

    64 CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação Criminal. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 124.

    65 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, Tomo I, p. 9-11.

    66 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional, p. 63. No mesmo sentido Tucci, para quem a contraditoriedade deve ser "efetiva, real, em todo o desenrolar da persecução penal" (TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 159). Citando Pontes de Miranda, explica que a contraditoriedade elimina "qualquer possibilidade de expedientes inquisitoriais, com as características de opressão e consequentes parcialidades ou arbitrariedades. Seja judicial, seja judicialiforme, ou perante o juiz, ou perante a polícia, ou perante as autoridades administrativas, a instrução criminal tem de ser, por força da Constituição, contraditória".

    67 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional, p. 69.

    68 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro, 2011, p. 170. Conquanto o contraditório postergado ou diferido possa ser autorizado nos momentos em que a prova a produzir-se esteja na iminência de perder-se ou de restar inutilizável caso se pretenda aguardar a presença de ambas as partes (exemplo do exame cadavérico), ou até mesmo de inviabilizar-se sua produção caso a parte contrária seja informada de sua realização (exemplo da interceptação telefônica), não se pode admitir a incidência do contraditório postergado nas hipóteses de reconhecimento pessoal, a uma porque concebemos este meio de prova como sendo prova irrepetível, de modo que sua renovação ulterior não teria utilidade alguma (dentre outros fatores, já teria havido a contaminação do reconhecedor ao ser submetido à primeira identificação) e, a duas, porque embora admitamos que o contraditório postergado tenha cabimento em hipóteses excepcionalíssimas, tratando-se do reconhecimento de pessoas, a autoridade deve notificar o advogado para comparecer ao ato.

    69 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal, p. 143-144.

    70 CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal. Comentários Consolidados e Crítica Jurisprudencial, p. 306.

    71 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 44.

    72 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal, p. 71.

    73 QUEIJO, Maria Elizabeth. O Direito de Não Produzir Prova Contra si Mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal), p. 74-75. Como registra a autora, a autodefesa também abarca o direito de o sujeito passivo recusar-se em cooperar na produção probatória quando entender que esta pode prejudicar seu status libertatis. Nesse sentido, reputamos que a ampla defesa também deve abranger o direto de não comparecer ou direito de ausência, de modo que o acusado possa recusar-se a envolver-se em diligência que implique autoincriminação.

    74 O princípio também encontra previsão no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (Dec. 592/92) e na Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica (Dec. 678/92).

    75 No tocante à incidência do ônus probatório inteiramente sobre o acusador, Queijo informa existir doutrina que considera tratar-se de presunção iuris tantum, não se podendo exigir da defesa a prova da veracidade de eventuais causas de justificação arguidas ("a chamada probatio diabolica dos fatos negativos") (QUEIJO, Maria Elizabeth. O Direito de Não Produzir Prova Contra si Mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal), p. 77).

    76 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, p. 368-369. No mesmo sentido aponta Jardim, para quem, quando houver dúvida sobre algum fato relevante para o julgamento do caso penal, o juiz deverá absolver o acusado por insuficiência probatória (JARDIM, Afrânio da Silva. Direito Processual Penal. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 214). Entretanto, é possível encontrar na doutrina brasileira quem não considere a presunção de inocência equivalente ao princípio do in dubio pro reo, aduzindo que este recai necessária e exclusivamente sobre o âmbito processual, sendo seu significado e alcance mais restrito que os da presunção de inocência (TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 578).

    77 QUEIJO, Maria Elizabeth. O Direito de Não Produzir Prova Contra si Mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal), p. 78.

    78 MONTERO AROCA, Juan. Principios del Proceso Penal. Una Explicación Basada en la Razón, p. 152 e ss. Conforme explica, a presunção de inocência apenas poderá ser afastada quando houver sido praticada, durante o processo, prova válida, devendo ser feitas, segundo propõe, algumas distinções: a) necessidade de atividade probatória durante a etapa processual e com observância das normas constitucionais e legais reguladoras da admissibilidade dos meios de prova e sua prática; b) o conteúdo da atividade probatória (validamente realizada) deve ser incriminatório; c) o procedimento preliminar (inquérito) não produz provas em sentido estrito, mas unicamente atos de investigação, todavia, há exceções para os casos de provas cuja reprodução seja inviável, hipótese em que o contraditório deverá ser observado. Embora o autor, neste último ponto, faça a distinção entre diligências sumárias naturalmente irreprodutíveis (por exemplo, exame cadavérico) e irreprodutíveis em virtude de acontecimentos inesperados (por exemplo, morte de uma testemunha), entendendo que o contraditório apenas deve ser observado no primeiro caso, nosso posicionamento é no sentido de que o reconhecimento pessoal é meio de prova (ato de investigação que adquire esse status, se produzido na fase inquisitorial, por meio da observância de determinadas condições e critérios) cuja impossibilidade de repetição lhe é ínsita, de modo que a participação do imputado deve ser plenamente assegurada.

    79 BRENTEL, Camilla. As Provas Não Repetíveis no Processo Penal Brasileiro, p. 17.

    80 O Art. 369 do atual CPC contém a redação que segue: As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz..

    81 O Art. 295 do CPPM, que trata da admissibilidade da prova no juízo penal militar, contém a seguinte redação: É admissível, nos têrmos dêste Código, qualquer espécie de prova, desde que não atente contra a moral, a saúde ou a segurança individual ou coletiva, ou contra a hierarquia ou a disciplina militares..

    82 CAFFERATA NORES, José I. La Prueba en el Proceso Penal, p. 29.

    83 DEZEM, Guilherme Madeira. Da Prova Penal. Tipo Processual, Provas Típicas e Atípicas. Atualizado de acordo com as Leis 11.689/08, 11.690/08 e 11.719/08. Campinas: Millennium, 2008, p. 94-95.

    2. CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E ESPÉCIES DE RECONHECIMENTO

    Ao ingressarmos no tratamento de um instituto jurídico, devemos inicialmente conceituá-lo para que seja possível o diferenciar de outros institutos que com ele guardem alguma semelhança, mas que, contudo, dele diferem em razão do não compartilhamento de características específicas.

    Em relação ao reconhecimento, o art. 226 do CPP limitou-se a regulamentar seu procedimento, tendo relegado a definição desse meio de prova à doutrina. Atualmente, é possível afirmar-se que existe certa unanimidade doutrinária acerca da definição do reconhecimento.

    De acordo com Tomé Lopes⁸⁴, consiste o reconhecimento na identificação dos possíveis autores e partícipes do delito (em alguns casos, também das testemunhas e vítimas) e dos objetos que possivelmente foram empregados no fato delituoso, sendo esta identificação realizada perante o juiz a partir das declarações da testemunha, da vítima ou do corréu e subsidiada por um processo mnemônico, perfectibilizando-se quando o reconhecedor realiza um juízo de identidade entre uma percepção presente e uma antiga. Trata-se de um processo psicológico eminentemente recognoscitivo, em que se comparam informações atuais com outras obtidas em experiências pretéritas, tendo por escopo a eliminação de um estado subjetivo de incerteza⁸⁵. O método utilizado, portanto, é o comparativo e os materiais a serem comparados são as recordações de eventos passados juntamente com o elemento (pessoa, marca, característica física particular, dentre outros) apresentado presentemente⁸⁶.

    Ademais, como acentua Camargo Aranha⁸⁷, trata-se de ato eminentemente formal, cuja validade condiciona-se ao atendimento de pressupostos legais. Como consectário da necessidade de observância da formalidade, reputamos que apenas poderá ser chamado de reconhecimento o ato que seguir a disciplina constante do art. 226 (além de submeter-se a outros pressupostos, examinados alhures), de modo que, quando a prova for produzida em desrespeito ao que preconiza a norma, o ato não poderá amoldar-se ao conceito de reconhecimento⁸⁸.

    Não obstante o reconhecimento esteja previsto no Título VII do Livro I do CPP, enquadrando-se, juntamente com outros, na categoria de meios típicos de prova – fator que, num primeiro olhar, tornaria desnecessária para alguns a discussão acerca de sua natureza jurídica –, existe doutrina que entende não constituir-se o reconhecimento em meio de prova, mas unicamente em mero ato instrutório informativo⁸⁹, direcionado a aferir a credibilidade de determinado elemento probatório, de modo que, independentemente do seu resultado (positivo ou negativo), ele não se prestaria a provar nada do delito, prova esta que apenas poderia ser obtida pelo testemunho. Para essa doutrina, o reconhecimento seria apenas contraste ("controllo") entre as provas, servindo para melhor a avaliar.

    Todavia, uma vez que tanto o reconhecimento como o testemunho são meios de prova legalmente previstos, inexiste impedimento para que alguém proceda ao reconhecimento e, antes ou posteriormente, atue também como testemunha. Tanto o testemunho como o reconhecimento possuem autonomia probatória, não mais sendo este mero apêndice daquele. Essa autonomia foi obtida graças aos avanços dos estudos na área processual, os quais possibilitaram o delineamento de traços distintivos entre um e outro⁹⁰.

    No tocante às espécies, o reconhecimento pode ser pessoal ou de coisas. O reconhecimento pessoal, procedimento utilizado mais frequentemente, consiste na busca pela individualização do autor ou partícipe da prática de determinado delito (e, até mesmo, de uma testemunha ou vítima, caso esteja evitando manter contato com as autoridades por intimidação ou outra influência) quando as autoridades responsáveis pela investigação criminal ainda desconhecem ou alimentam dúvidas sobre quem seja o suspeito. Tem como principal consequência a convergência das investigações para uma pessoa, supondo-se que ela tenha sido identificada pela vítima, pela testemunha ou pelo corréu.

    A outra espécie de reconhecimento legalmente prevista é a de objetos ou de coisas, cujo tratamento está insculpido no art. 227 do CPP, o qual preconiza que a ele sejam aplicados, no que couber, as disposições concernentes ao reconhecimento de pessoas. Não obstante também seja um meio de prova que contenha determinadas problemáticas⁹¹, não constituiu objeto da presente pesquisa.

    2.1 Diferenças e Similaridades entre o Reconhecimento e o Testemunho

    A despeito de, atualmente, o reconhecimento gozar de autonomia como meio de prova em nosso ordenamento jurídico, ele teve sua origem na prova testemunhal, esta considerada sua figura mãe⁹².

    Durante a vigência do antigo Código Rocco, de 1930, existiam na Itália dois entendimentos acerca da natureza jurídica do reconhecimento. Para alguns autores, como visto anteriormente, tratava-se de elemento de prova testemunhal, constituindo tão somente ato instrutório informativo. Outros já lhe atribuíam um caráter autônomo, em virtude de o reconhecimento transplantar para o processo informações referentes à identidade de uma pessoa. O primeiro entendimento encontrou ressonância em parcela doutrinária que, na vigência do Código Rocco, atribuía ao reconhecimento valor de indício e reputava válido que o juiz se servisse de outros elementos voltados à identificação do indivíduo.

    Foi apenas em 1988, com a edição do novo CPP italiano, que a autonomia foi conferida ao reconhecimento, uma vez que passou a constar do catálogo dos meios de prova típicos. Essa alteração no tratamento conferido ao reconhecimento também foi observada em Portugal e no Brasil, sendo que, até o atual código pátrio ser promulgado (1941), havia lacuna legal quanto ao tratamento deste meio de prova⁹³. Quanto ao CPP português, por exemplo, a compreensão diversa (de que o reconhecimento seria um meio de prova meramente complementar do testemunho) tornaria também desnecessária sua autonomização, a qual atualmente pode ser verificada nos arts. 147 e ss., onde vislumbra-se esse meio de prova regulamentado separadamente do testemunho⁹⁴.

    Portanto, a despeito de existir doutrina estrangeira⁹⁵ que entenda ter o reconhecimento natureza de prova testemunhal (pois a identificação do suspeito seria resultado das percepções que a testemunha ou a vítima teve), o tratamento conferido a ambos os meios de prova na legislação brasileira é suficiente para dissipar este entendimento aglutinador⁹⁶.

    Desde então, o reconhecimento e o testemunho são tratados como meios de prova distintos, cada qual com suas especificidades. Embora possam ter semelhanças, porquanto ambos sujeitam-se à percepção que o indivíduo teve em determinado evento e ao impacto que a passagem do tempo exerce sobre o conteúdo conservado na memória, são institutos distintos, dado que relatar um episódio juridicamente relevante que tenha observado (testemunha) é diferente da tentativa de identificar determinada pessoa, a qual é posicionada diante de outras pessoas parecidas, o que significa dizer que o conteúdo armazenado, no segundo caso, será desafiado de forma mais intensa⁹⁷.

    Em outras palavras, a prova testemunhal requer uma organização espaço-temporal da recordação do depoente, ao passo que o reconhecimento requer uma reconstrução mnemônica de um retrato do passado⁹⁸. Ademais, o testemunho e o reconhecimento possuem finalidades distintas, sendo que o reconhecimento não tem natureza declarativa⁹⁹.

    Algumas diferenças que também merecem destaque dizem respeito ao fato de que (i) enquanto o testemunho envolve um terceiro desinteressado, o reconhecimento pode ser realizado tanto por um desinteressado como também pela vítima ou corréu; (ii) as declarações fornecidas pela testemunha são suscetíveis de um controle lógico intrínseco, dado que são realizadas indagações que permitem à testemunha ativar lentamente o conteúdo guardado, ao passo que o reconhecimento, embora seja precedido da prévia descrição, é feito

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