Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Justiça Terapêutica e Cortes de Drogas: elementos conceituais sob a perspectiva da Therapeutic Jurisprudence
Justiça Terapêutica e Cortes de Drogas: elementos conceituais sob a perspectiva da Therapeutic Jurisprudence
Justiça Terapêutica e Cortes de Drogas: elementos conceituais sob a perspectiva da Therapeutic Jurisprudence
E-book423 páginas5 horas

Justiça Terapêutica e Cortes de Drogas: elementos conceituais sob a perspectiva da Therapeutic Jurisprudence

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Os crimes relacionados ao consumo de drogas nunca deixaram de estar em evidência. A forma de abordagem a esse tipo de criminalidade é que vem sofrendo algumas transformações ao longo das décadas. No Brasil se ouve falar em Justiça Terapêutica, como sendo uma variante do modelo norte-americano das Cortes de Drogas, a qual reconhece que, afastando-se o uso de droga em relação ao infrator, ocorreria uma redução importante da criminalidade, trazendo ainda outros benefícios sociais e individuais. Ocorre, contudo, que existem inúmeras indefinições e incompreensões acerca do que constitui a Justiça Terapêutica e as Cortes de Drogas. Tais incertezas trazem consigo uma grande insegurança e uma série de críticas em relação à ideia. Diante disso, a obra "JUSTIÇA TERAPÊUTICA E CORTES DE DROGAS: ELEMENTOS CONCEITUAIS SOB A PERSPECTIVA DA THERAPEUTIC JURISPRUDENCE" propõe uma discussão a partir de elementos teóricos e práticos para chegar em um conceito mais claro desde a ótica da Therapeutic Jurisprudence, buscando lidar com a criminalidade associada ao uso de drogas de uma maneira mais humanizada, trazendo benefícios para a sociedade, mas sobretudo para o indivíduo. Diante disso, é proposto pelo autor um conjunto de princípios e um conceito que reúne uma série de características importantes sobre o que deve ser desenvolvido pela Justiça Terapêutica e pelas Cortes de Drogas para que possam ser reconhecidas como tal.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de abr. de 2022
ISBN9786525230795
Justiça Terapêutica e Cortes de Drogas: elementos conceituais sob a perspectiva da Therapeutic Jurisprudence

Relacionado a Justiça Terapêutica e Cortes de Drogas

Ebooks relacionados

Direito para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Justiça Terapêutica e Cortes de Drogas

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Justiça Terapêutica e Cortes de Drogas - Daniel Pulcherio Fensterseifer

    1. AS SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES: ELEMENTOS CONCEITUAIS E SUAS IMPLICAÇÕES NA ESFERA CRIMINAL

    Não é de hoje que as sociedades criam e reproduzem cerimônias ritualísticas, sendo que, muitas delas, utilizam substâncias que alteram o estado de consciência como forma de buscar se comunicar com o transcendental. Tais práticas continuam a ocorrer arraigadas na sociedade. Considerar seu manejo como imoral, abusivo ou autodestrutivo é sempre delicado e envolve grande polêmica na sociedade.

    O uso de substâncias entorpecentes encontra vestígios que datam desde a pré-história e se estende até os dias atuais. Pesquisas antropológicas encontraram que aborígenes de diversos locais ao redor do mundo fermentavam cereais com o intuito de produzir bebidas alcoólicas. Sabe-se, ainda, que diversas populações que habitaram as Américas, antes do seu descobrimento, também faziam uso de substâncias entorpecentes. Nesse contexto, contudo, o consumo ocorria em cerimônias ritualísticas, ligadas às crenças dos povos e enquadrava-se como normatização social dos grupos, não caracterizando um consumo abusivo³.

    Ocorre que, modernamente, o padrão de uso dessas substâncias entorpecentes vem mudando e, juntamente com isso, o seu significado vem sendo remodelado, de acordo com o tempo e a sociedade na qual a droga está inserida. O consumo adquiriu novos padrões de utilização, tanto em relação às quantidades, como à frequência. O uso de drogas pode não ter deixado de ser algo ligado a um ritual, mas a banalização do seu consumo associado a novas práticas ritualísticas – como a preparação para ir a uma festa, à religiosidade ou até mesmo para iniciar as atividades criminosas – fez despontar uma nova situação social que proporciona consequências indesejadas, ligadas à violência.

    Feitas essas breves considerações iniciais, estabelece-se que, neste primeiro capítulo, serão apresentados elementos relacionados à droga, ao seu consumo e às suas consequências, ligadas ao comportamento desviante, bem como argumentos relacionados à política criminal e de ordem criminológica, como forma de introduzir a abordagem de um dos fatores protagonistas no estudo da Justiça Terapêutica.

    1.1 CONSIDERAÇÕES NECESSÁRIAS SOBRE DROGAS E TRANSTORNO RELACIONADO A SUBSTÂNCIA

    Inicialmente, serão verificados aspectos conceituais sobre drogas entorpecentes e transtornos relacionados a substâncias, desenvolvendo-se o tema a partir de um diálogo com as áreas da saúde, até sua intersecção com o direito e as demais ciências criminais.

    1.1.1 ELEMENTOS CONCEITUAIS PRELIMINARES

    O termo droga é utilizado em diversas áreas do saber, adquirindo, de acordo com sua contextualização, contornos que podem divergir, dependendo do campo de conhecimento em que venha a ser empregado. Para fins do presente trabalho, evidencia-se a importância de estabelecerem-se os conceitos de drogas relativos ao mundo jurídico e da área da saúde, englobando a medicina e a psicologia, especialmente.

    Inicialmente, cumpre assinalar que, de acordo com a Lei n. 11.343/06, em seu Artigo 1o, parágrafo único, drogas são as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União. Tal conceito veio em substituição ao antigo que havia na Lei n. 6.368/76, em que era empregado o termo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, insculpido no Artigo 8o da referida Lei.

    No entendimento de Mendonça e Carvalho⁴, a alteração foi positiva, uma vez que se aproximou da terminologia já adotada pela Organização Mundial da Saúde e afastou a falsa impressão de que qualquer substância que causasse dependência poderia ser entorpecente, trazendo uma atualização em relação aos ditames da atual política criminal. Nesse mesmo sentido, Thums e Pacheco⁵ entendem que a modificação foi pertinente, uma vez que a expressão antiga excluía, em decorrência terminológica, as substâncias contidas nas Listas C e D da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, assim como outras substâncias que não eram entorpecentes nem psicotrópicas, mas estavam sob controle do Estado. A partir do ano de 2009 a ANVISA, por meio da Resolução RDC nº. 70, adequou suas listas à nova terminologia legal.

    No que diz respeito à classificação da norma contida no Parágrafo Único do Artigo 1o da Lei de Drogas, observa-se que se trata de uma norma penal em branco, ou seja, exige-se uma regulamentação independente, que materialize o significado conceitual da norma. Tal regulamentação é dada pela Portaria nº 344, de 12 de maio de 1998, da Secretaria de Vigilância Sanitária, do Ministério da Saúde. Dessa forma, para fins jurídicos-penais, drogas são as substâncias que lá se encontram elencadas.

    Na área da saúde, Saddock e Saddock chamam a atenção para a complexidade da terminologia relacionada ao uso de substâncias. Os autores referem que a nomenclatura sofre diversas alterações, parecendo mudar toda a vez que comitês profissionais e governamentais se reúnem para discutir o problema⁶. Contudo, entendem que o termo substância se mostra mais adequado, visto que droga implica em manufatura, enquanto que substância engloba aquelas que surgem naturalmente, como o ópio.

    Segundo Cazevane⁷, a Organização Mundial da Saúde, adota o conceito de que a droga é a substância que age nos mecanismos de gratificação do cérebro e que provocam efeitos estimulantes, euforizantes ou tranquilizantes, ou seja, a droga altera o funcionamento do cérebro, atuando diretamente no sistema nervoso central, causando sensações momentâneas relacionadas à obtenção de prazer. Aliás, justamente por essa característica é que o tratamento da dependência química se torna muito difícil, uma vez que busca interromper um comportamento que proporciona uma sensação agradável, de prazer.

    De acordo com José Eça⁸, droga é a substância que age no organismo, causando modificações no funcionamento de uma ou mais das suas funções, dividindo-se em drogas lícitas, drogas ilícitas e drogas psicotrópicas. Salienta o autor que a diferenciação entre drogas lícitas e ilícitas decorre, exclusivamente, da legislação, sendo, as primeiras de comercialização permitida, enquanto que as últimas, não. Quanto às drogas psicotrópicas, José Eça e Dalgalarrondo⁹ esclarecem que se configuram como aquelas que agem sobre o sistema nervoso central do sujeito, modificando seus processos mentais.

    Em outro sentido, entende-se que o termo droga é utilizado para definir qualquer substância não produzida pelo organismo e que atue de forma a modificar o seu funcionamento. Dessa forma, esse conceito, por si só, não agregaria valor à substância, no que se refere à sua potencialidade de fazer bem ou fazer mal. Isso porque a atribuição desses valores não ocorreria pela substância propriamente dita, mas, sim, pelo modo de uso que a pessoa faz dela¹⁰. Como consequência disso, a palavra droga poderia ser empregada para indicar tanto um medicamento quanto um veneno.

    Para o presente estudo serão empregados os termos drogas, substâncias entorpecentes e psicotrópicas, tendo em vista a dicção da Lei n. 11.343/06, considerando-se substâncias naturais e manufaturadas, bem como o fato de serem capazes de provocar estado de entorpecência em seu consumidor, o que não ocorre com todas as substâncias psicoativas.

    Para o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-V, as substâncias tratadas no capítulo referente aos transtornos relacionados a substâncias abrangem 10 drogas diferentes, quais sejam: álcool; cafeína; Cannabis; alucinógenos; inalantes; opioides; sedativos, hipnóticos e ansiolíticos; estimulantes; tabaco; e outras substâncias¹¹ .

    1.1.2 CLASSIFICAÇÕES NECESSÁRIAS A RESPEITO DAS DROGAS

    Diferentes tipos de drogas possuem diferentes tipos de características, sendo estas associadas às suas consequências, provocadas pela sua atuação no sistema nervoso central. Diante dessa circunstância, as drogas podem ser classificadas de inúmeras formas. Contudo, de acordo com uma visão clássica, podemos dividi-las em estimulantes, depressoras e perturbadoras (ou modificadoras¹²).

    As drogas estimulantes são aquelas que geram uma aceleração das funções cerebrais, deixando a pessoa mais alerta e, em algumas vezes, eleva a ansiedade, reduzindo a necessidade do sono e aceleram o pensamento, o que não significa a atividade maior ou melhor do cérebro¹³. Neste grupo das substâncias estimulantes podem ser englobadas a cocaína e as anfetaminas.

    Substâncias depressoras produzem um efeito contrário, ou seja, reduzem a velocidade das funções cerebrais, produzindo sonolência, redução na velocidade dos pensamentos e prejuízos na coordenação motora. Tais efeitos podem ser encontrados em drogas como os inalantes, os opiáceos, os barbitúricos, os benzodiazepínicos e o álcool.

    Por fim, as substâncias modificadoras, ou perturbadoras, não estimulam nem deprimem o funcionamento mental, mas causam uma alteração no funcionamento regular do sistema nervoso central (SNC). Tais alterações podem ser percebidas através de alucinações, delírios, fusão de sensações ou ainda distorções na avaliação de tempo e espaço. O LSD - dietilamida do ácido lisérgico, o Ecstasy, a maconha, os cogumelos alucinógenos e os anticolinérgicos são exemplos desse tipo de drogas¹⁴.

    Modernamente, essas classificações podem se apresentar de forma mais depurada. Ferreira et al.¹⁵, entendem que além das classificações vistas acima, existem as drogas classificadas como alucinógenas e as de ação mista. Para os autores, as substâncias depressoras poderiam ser exemplificadas pelo álcool, opiáceos, benzodiazepinas e barbitúricos, enquanto que as estimulantes pela cocaína, crack, anfetaminas, nicotina, cafeína e xantinas, e as perturbadoras pela maconha e seus derivados. A diferença encontra-se nas duas últimas classificações, em que se classifica o LSD e a Ayahuasca como substâncias alucinógenas e o ecstasy e os medicamentos colinérgicos como drogas de ação mista.

    Outra classificação que se verifica na doutrina sobre drogas é em relação à sua natureza, podendo elas ser naturais, semissintéticas ou sintéticas. As drogas naturais são aquelas obtidas a partir de uma fonte exclusivamente natural, geralmente uma planta, dentre as quais, pode-se citar a maconha, a cocaína e a morfina. Já as drogas semissintéticas são obtidas em laboratórios, mas a partir de uma matriz natural, tendo como exemplo a heroína, que deriva do ópio. Por fim, as drogas sintéticas são aquelas que provêm, exclusivamente, de laboratório, sem a utilização de matrizes naturais, como as anfetaminas, os barbitúricos e o ecstasy¹⁶.

    Pode-se inferir que a clientela consumidora de droga busca nela um meio de lidar com uma condição pessoal anterior, normalmente ligada a estados de ansiedade ou de depressão, sendo o uso da droga, nesses termos, conceituada pela doutrina especializada como comorbidade¹⁷ ou como patologia dual. Assim, com o uso da droga, encontram uma maneira rápida de amenizar seus sintomas, mas que, em decorrência do abuso ou do uso prolongado, acabam por trazer diversos inconvenientes à saúde, dentre eles a dependência química.

    1.1.3 PADRÕES DE CONSUMO E DEPENDÊNCIA QUÍMICA

    Nem todas as pessoas que consomem drogas se tornam dependentes químicos, e isso se deve a diversos fatores. Os padrões de uso das substâncias são variáveis, desde um consumo dito social até o consumo compulsivo, decorrente da dependência da droga. De acordo com o entendimento da Associação Americana de Psiquiatria, representado no DSM-V, indivíduos com baixo nível de autocontrole, o que pode ser reflexo de deficiências nos mecanismos cerebrais de inibição, podem ser particularmente predispostos a desenvolver transtorno por uso de substância. Ainda de acordo com o DSM-V, sugere-se ser possível verificar nos indivíduos, por meio de seus comportamentos, essa carência de inibição muito antes do uso da substância propriamente dita¹⁸. Nesse sentido, a característica essencial de um transtorno por uso de substâncias consiste na presença de um agrupamento de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos, indicando o uso contínuo pelo indivíduo apenas de problemas significativos relacionados à substância¹⁹.

    Passagili entende que a dependência química não é absoluta, no sentido de que seu diagnóstico é de difícil objetivação, uma vez que os sintomas de abstinência da droga – fator determinante para a síndrome de abstinência – se manifestam de formas diferentes em cada sujeito, havendo graduações perceptíveis, desde um nível mais brando, como ocorre com a maconha, até níveis mais severos, como ocorre com os usuários de heroína²⁰.

    Os conceitos que envolvem os usuários de drogas são dinâmicos e variados, empregados de forma, muitas vezes, vagas, mas, frequentemente, seguem uma graduação. Como dito, nem todo usuário de drogas apresenta complicações em decorrência desse uso, ao que se pode atribuir o nome de uso moderado. Contudo, essa nomenclatura não apresenta uma precisão técnica, embora seja empregado pela Organização Mundial da Saúde – OMS. Tendo em vista essa circunstância, diversas entidades buscam conceituar o termo, como, por exemplo, o Instituto Nacional Sobre o Abuso de Álcool e Alcoolismo dos Estados Unidos, que conceitua o uso moderado como sendo o consumo que não causa prejuízos individuais ao bebedor, nem problemas sociais. Em termos de unidades alcoólicas, o uso moderado é caracterizado pelo consumo de até 14 unidades semanais para homens, até 7 para mulheres e até 3 para sujeitos que contam mais de 65 anos de idade. Contudo, essas quantidades apresentam variações, de acordo com o país em que foram elaboradas²¹.

    Para visualizar de forma clara tais padrões de consumo, se faz importante conceituá-los de forma didática e progressiva. De acordo com Cetolin e Trzcinski²², tal conceituação apresenta diferenças no que toca ao consumo de álcool e de drogas ilícitas. Contudo, no presente trabalho, optou-se por priorizar as classificações relativas às drogas ilícitas, em razão de serem o grande mote das Cortes de Drogas, agrupando-as de forma pertinente e suficiente para dinamizar a compreensão do presente tópico no contexto desta pesquisa.

    De acordo com a doutrina²³-²⁴-²⁵, os graus de consumo podem ser divididos em experimentador; usuário ocasional; usuário regular; e dependente químico. Entende-se por experimentador a pessoa que tem seu primeiro contato com a droga, como o próprio nome diz, é aquele que está experimentando algo que não havia feito antes. A experimentação costuma ocorrer, principalmente, em razão da curiosidade do sujeito ou por incentivo dos amigos, como uma etapa de iniciação ou para ingressar em um grupo. Trata-se de algo que visa quebrar uma rotina, com o intuito de perceber novas sensações, não chegando, o usuário, a estabelecer uma relação com a droga.

    Já o usuário ocasional é aquele que faz uso recreativo da droga. O consumo ocorre quando a substância se encontra disponível e o ambiente é favorável para o entorpecimento. Contudo, não há uma busca ativa pela droga por parte do sujeito.

    Por seu turno, o usuário regular, ou habitual, é aquele que utiliza a droga ainda de forma controlada, mas já se torna possível observar alterações em seus relacionamentos afetivos, familiares, sociais e laborais. A busca pela droga passa a ser algo sistemático, mas, ainda, não se configura como prioridade na vida do indivíduo.

    Por fim, o dependente químico, ou toxicômano, é aquele sujeito que possui um funcionamento direcionado à obtenção da droga e de seu consumo. O indivíduo perde o controle sobre o uso, consumindo-a apesar da manifestação de consequências negativas, implicando em consequências físicas e/ou emocionais²⁶.

    Antonio José Eça classifica os usuários de substâncias entorpecentes em quatro graus: os experimentadores ocasionais, sendo aqueles que não costumam apresentar transtornos caso interrompam o uso, motivados, especialmente, pela curiosidade ou por pressão de grupos (especialmente de amigos); os usuários moderados, que apresentam um impulso já considerado anormal e que já podem apresentar leves alterações em seu comportamento; os usuários habituais, que apresentam modificações significativas em seu comportamento, buscando de forma mais incisiva o consumo da droga e apresentando prejuízos em suas relações e abandonando atividades como as escolares, esportivas e amorosas; e os dependentes, os quais fazem do uso da droga seu principal objetivo, abrindo mão das outras atividades em prol do consumo²⁷.

    Em relação ao álcool, embora outras escalas possam ser encontradas na doutrina²⁸, é possível fazer uma relação com a classificação acima exposta.

    Nota-se que o consumo da droga deixa de ser social, passando a um estágio de abuso que pode evoluir à dependência química no momento em que a pessoa não se mostra mais capaz de controlar a manutenção do padrão de uso da substância conforme o planejado. Ocorre aumento na periodicidade e na quantidade de consumo da substância ingerida, iniciando-se problemas relacionados a diversas situações na vida do sujeito como nos contextos familiar, social, de trabalho e, inclusive, na esfera jurídica-criminal.

    Nesse sentido, verifica-se que, tanto o abusar da droga, como o depender dela, possuem padrões patológicos. Entretanto, a dependência demanda tolerância à droga, que é entendida como a necessidade de consumi-la em doses cada vez maiores, em intervalos cada vez menores, para que haja a obtenção de efeito já percebido com doses menores antes administradas. Além disso, para caracterizar-se a dependência química, devem ser percebidos sintomas de síndrome de abstinência, tais como tremores, náusea, vômitos, nervosismo, perturbações no humor, sudorese, entre outros²⁹.

    Segundo Oga; Camargo; Batistuzzo³⁰, existe uma ideia equivocada de que a dependência consiste no uso intensivo da droga, em razão de que o dependente optou por consumi-la dessa forma e que, conforme os autores, há alguns anos atrás, se considerava um desvio de personalidade, próprio de pessoas fracas de caráter e com dificuldade para se relacionar socialmente. Contudo, atualmente, considera-se uma doença que conduz o sujeito ao consumo descontrolado da substância, fazendo-o, inclusive, afastar-se dos seus vínculos sociais e afetivos. A droga passa a ser o principal objetivo do sujeito e a vontade de uso sempre se sobrepõe à prudência.

    De acordo com o DSM-V, a característica essencial de um transtorno por uso de substância consiste na presença de um agrupamento de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos indicando o uso contínuo pelo indivíduo apesar de problemas significativos relacionados à substância³¹. Nesse mesmo sentido, Saddock e Saddock³² enfatizam que enquanto a dependência comportamental está associada à procura da substância e ao padrão de seu consumo, a física refere-se a seus efeitos fisiológicos, como a tolerância e a abstinência.

    Com efeito, a dependência química é considerada pela medicina como um transtorno mental e, sendo assim, possui elementos que possibilitam a formulação de um diagnóstico.

    O diagnóstico dos transtornos por uso de substância, conforme o DSM-V, diferencia-se de acordo com o tipo de droga, mas devem estar presentes as seguintes características, que se mostram comuns e auxiliam na detecção dos transtornos:

    A. O transtorno representa uma apresentação sintomática, clinicamente significativa, de um transtorno mental pertinente.

    B. Há evidências, a partir da história, do exame físico e dos achados laboratoriais de ambos:

    1. O transtorno se desenvolveu durante, ou no prazo de um mês após a intoxicação ou abstinência de substância, ou da administração do medicamente; e

    2. A substância ou medicamento envolvido é capaz de produzir transtorno mental.

    C. O transtorno não é mais bem explicado por um transtorno mental independente (i.e., que não seja induzido por substância ou medicamento). Tais evidências de um transtorno mental independente podem incluir as seguintes:

    1. O transtorno antecedeu o início de intoxicação, ou abstinência grave, ou a exposição ao medicamento; ou

    2. O transtorno mental completo persistiu durante um período considerável de tempo (p. ex., ao menos um mês) após cessar a abstinência aguda, ou a intoxicação grave, ou a administração do medicamento. Este critério não se aplica a transtornos neurocognitivos induzidos por substância, nem ao transtorno persistente da percepção induzido por alucinógenos, os quais persistem após cessar a intoxicação ou a abstinência aguda.

    D. O transtorno não ocorre exclusivamente durante o curso de delirium.

    E. O transtorno causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo funcional social, profissional, ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.

    Diferentemente do DSM-IV, no qual se verificava uma diferenciação entre usuário, abusador e dependente químico, o DSM-V trouxe outra classificação possível de ser verificada, de acordo com a quantidade de sintomas presentes no indivíduo. Diante da presença de dois ou três sintomas dos vistos anteriormente, entende-se como um transtorno por uso de substâncias leve. Diz-se moderado quando constatados quatro ou cinco sintomas; e grave quando presentes seis ou mais³³.

    Na Classificação Internacional de Doenças – CID-10³⁴, as diretrizes diagnósticas são as seguintes: (a) um forte desejo ou senso de compulsão para consumir a substância; (b) dificuldade em controlar o comportamento de consumir a substância em termos de seu início, término ou níveis de consumo; (c) um estado de abstinência fisiológico quando o uso da substância cessou ou foi reduzido; (d) evidência de tolerância, de tal forma que doses crescentes da substância psicoativa são requeridas para alcançar efeitos originalmente produzidos por doses mais baixas; (e) abandono progressivo de prazeres ou interesses alternativos em favor do uso da substância psicoativa, aumento da quantidade de tempo necessário para obter ou tomar a substância ou para recuperar de seus efeitos; (f) persistência no uso da substância, a despeito da evidência clara de consequências manifestamente nocivas. Para que haja o diagnóstico de dependência devem ter sido percebidos três ou mais dos requisitos vistos em algum momento do ano anterior.

    O adicto costuma possuir traços característicos, semelhantes em seu comportamento, como minimizar ou negar a existência de qualquer problema decorrente ao seu padrão de uso da droga; restringir seu uso a um determinado momento da vida, no sentido de que não seja algo duradouro, mas, apenas momentâneo; a crença de que os eventuais prejuízos que a droga possa causar são coisas muito distantes da sua realidade, pertencentes a um futuro nada próximo e que não ocorrerá no caso dele; a crença de que a droga é a substância suficiente e necessária para suprir todas as suas dificuldades e necessidades, a partir de uma idealização dessa droga, quase que de forma mística; enxerga na droga a solução imediata para problemas e angustias, sem perceber que mudanças no humor como irritabilidade, depressão e a timidez são decorrentes do próprio uso da droga³⁵.

    Retomando-se o entendimento de Saddock e Saddock³⁶fica estabelecido que a dependência química pode ser verificada sob duas condições, a dependência psíquica e a física. Dentre as substâncias que podem causar dependência psíquica, pode-se destacar a cocaína, a maconha, os alucinógenos e as anfetaminas. Deve ser destacado, contudo, que mesmo sem produzirem sintomas de síndrome de abstinência, essas substâncias podem gerar tolerância e, inclusive, algumas alterações de ordem física, como depressão e letargia, como costuma ocorrer com ex-usuários de cocaína e de anfetaminas.

    Já em relação à dependência física, a síndrome de abstinência é presente, podendo ocasionar irritação acentuada do sistema nervoso central, bem como tremores, inquietações, ataques de pânico e estados de delírio, como ocorre na interrupção do uso de álcool, barbitúricos, entre outras substâncias³⁷.

    1.1.4 INTOXICAÇÃO PELA SUBSTÂNCIA

    O uso de drogas causa, invariavelmente, a intoxicação do organismo, embora essa intoxicação possa ocorrer em graus bem diferentes.

    Do ponto de vista da toxicologia, a intoxicação pelo uso de drogas pode ser dividida em quatro fases distintas, quais sejam, a) a exposição, entendida como a maneira que o sujeito entra em contato com a substância, englobando a via de introdução da droga no organismo, a dose consumida e sua concentração, as características físico-químicas da substância, o tempo e a frequência de uso; b) a toxicocinética, em que são observadas a absorção e a distribuição da substância pelo organismo, as transformações biológicas decorrentes na interação com o corpo humano, seu armazenamento e forma de eliminação pelo corpo; c) a toxicodinâmica, que representa os mecanismos de ação tóxica, ou seja, o dano biológico gerado; e d) a fase clínica, neste momento são percebidos os sintomas psíquicos e físicos, a partir dos quais se estabelecem limites de tolerância no ambiente e limites de tolerância biológicos.³⁸

    Nesse sentido, a intoxicação propriamente dita, configura-se como a manifestação dos efeitos tóxicos da substância, que causa um desequilíbrio fisiológico e alterações bioquímicas no organismo³⁹. Essa intoxicação pode apresentar variações, de acordo com as características do consumidor e da droga.

    Sabendo-se que cada droga possui características próprias e que produzem efeitos próprios, importa delimitar essas variações como ponto de partida para o estabelecimento do marco inicial do estudo sobre a criminalidade associada ao consumo de drogas, uma vez que nem todas as substâncias entorpecentes possuem a capacidade de facilitar a ocorrência de comportamentos violentos, mas, mesmo assim, podem desencadear atos de desatenção que podem resultar na tipificação de um crime culposo, os quais, também, podem ser objeto do Programa de Justiça Terapêutica.

    1.1.5 NOCIVIDADE DO USO DA DROGA

    Como já referido, essas substâncias entorpecentes atuam no indivíduo sobre o sistema nervoso central, trazendo outras consequências, que vão além do prazer experimentado, tais como alteração do humor, da consciência e o do senso de percepção⁴⁰. Tal circunstância, no presente contexto, configura-se como fator de especial relevância, tendo em vista que as três consequências apontadas podem conduzir o sujeito a uma conduta desviada, considerada, muitas vezes, como crime. A alteração de humor, em diversas oportunidades, é responsável por comportamentos agressivos, podendo ser apontado como exemplo os casos de violência doméstica perpetrados por maridos alcoolizados. Além disso, a alteração da consciência do sujeito, embora nem sempre interfira na perda momentaneamente da sua potencial consciência da ilicitude, pode fazer com que a percepção acerca dos desdobramentos da sua conduta seja alterada, minimizando a relevância de seus atos e das respectivas consequências. Em terceiro lugar, tem-se que a diminuição do senso de percepção seja um elemento de grande importância, no que diz respeito ao cometimento de delitos culposos ou preterdolosos. Quanto aos crimes culposos, pode-se afirmar que, embora o resultado não querido pudesse ser previsto pelo agente, não o foi, concretizando-se tal desfecho pela diminuição do senso de percepção sobre as consequências de seus atos. Mesma coisa pode ocorrer com os delitos preterdolosos, uma vez que o resultado mais grave – culposo – decorre de uma conduta antecedente dolosa. Ou seja, ao desejar um resultado, o autor entorpecido pode não estar plenamente consciente dos possíveis desdobramentos da sua conduta, ou até mesmo incidir em erro quanto a um dos elementos que compõem o contexto fático, a exemplo do que ocorre nas descriminantes putativas.

    Certamente, aumentando a quantidade e a frequência do uso dessas substâncias entorpecentes, elevam-se, de forma progressiva, as chances de ocorrência das circunstâncias descritas acima.

    Nesse contexto, salienta-se que o referido consumo, de forma prolongada, traz danos ao sujeito – e aqui englobam-se, também, os danos relativos a outras áreas, alheias à física e mental, podendo ser enquadrado o consequente envolvimento com a justiça criminal –, é denominado de uso nocivo⁴¹.

    O conceito de uso nocivo está diretamente ligado às consequências negativas do uso da droga. Certamente, as consequências ligadas à saúde física e mental do indivíduo são importantes do ponto de vista médico, contudo, não são as únicas que comportam o estabelecimento do referido padrão de consumo. O fato de uma pessoa praticar uma conduta tipificada como crime em razão do seu estado de intoxicação,

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1