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Do dependente ao traficante de drogas ilícitas: estudo comparado (Brasil – Uruguai – Colômbia – Portugal)
Do dependente ao traficante de drogas ilícitas: estudo comparado (Brasil – Uruguai – Colômbia – Portugal)
Do dependente ao traficante de drogas ilícitas: estudo comparado (Brasil – Uruguai – Colômbia – Portugal)
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Do dependente ao traficante de drogas ilícitas: estudo comparado (Brasil – Uruguai – Colômbia – Portugal)

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Sobre este e-book

Poucos temas provocam tantas reações, diversificadas e contraditórias, quanto a questão das drogas ilícitas. Uma multiplicidade de pontos de vista alimenta o debate, colocando em campos opostos posições conservadoras e progressistas, cientistas e negacionistas, realistas e sonhadores, punitivistas e garantistas, céticos e pragmáticos, religiosos e laicos. Em resumo, não há consensos e menos ainda esforços efetivos de buscas de soluções.

A consideração das drogas como um problema de natureza individual e social é um passo necessário, mas insuficiente. O enfrentamento do problema exige vários outros movimentos. Certamente, os mais importantes, dentre eles, são: a coragem de analisar a situação; livrar-se de pré-noções; examinar a legislação vigente, sua aplicação e o comportamento dos operadores do Direito; observar diferentes soluções adotadas em outros países; elaborar um diagnóstico preciso e oferecer propostas. A pesquisa empreendida enfrenta, com primor, todos esses desafios.

O autor não se contenta em descrever as leis, mas elabora uma minuciosa análise de sua aplicação, as consequências dos distintos entendimentos. É um estudo jurídico, mas no sentido mais amplo e avançado do termo, já que incorpora parâmetros sociológicos e de saúde, apresenta comparações com modelos internacionais e propõe um conjunto de soluções.

Maria Tereza Aina Sadek
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jun. de 2023
ISBN9786525286037
Do dependente ao traficante de drogas ilícitas: estudo comparado (Brasil – Uruguai – Colômbia – Portugal)

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    Pré-visualização do livro

    Do dependente ao traficante de drogas ilícitas - Marcos Henrique Machado

    1 AS DROGAS E O PROIBICIONISMO

    O proibicionismo impelido pela guerra às drogas ilícitas, notadamente assumido pelo governo dos EUA e seguido por outros países como base para suas políticas de drogas, entende o uso dessas substâncias como crime que deve ser punido. Na presente seção, serão abordados aspectos desse modelo, tais como suas origens e as primeiras regulamentações adotadas nesse âmbito, assim como as políticas sobre drogas das Nações Unidas e os caminhos seguidos pelos países americanos para o controle de tais substâncias.

    1.1 AS DROGAS NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE

    Historicamente, a modificação de comportamento, humor e emoção por meio do uso de drogas tem sido prática comum. Relativamente a esse uso, o historiador David Courtwright (2002, p. 4) pontua que todas as sociedades, em larga escala, diferenciaram de alguma maneira, o uso médico e o abuso ‘não-médico’ de drogas, e eventualmente fizeram com essa distinção as fundações morais e legais do sistema internacional de controle de drogas. É dele um dos principais trabalhos sobre a história das drogas, o livro Forces of Habit (COURTWRIGHT, 2001), no qual faz uma distinção entre diferentes tipos de substâncias que se encaixariam no termo droga, separando-as em duas categorias: as maiores no mercado, que são as mais consumidas/comercializadas (álcool, tabaco e cafeína); e as menores no mercado (ópio, cannabis e coca) – coincidentemente, as lícitas e as ilícitas.

    A utilização de plantas psicoativas e alucinógenas pelos nativos em cultos indígenas e pagãos era comum nos primórdios da colonização, tanto nas Américas como na Europa. Antropólogos afirmam que a questão do uso de drogas pode ser considerada universal, uma vez que são pouquíssimas as culturas que não se utilizam de alucinógenos, aos quais se atribui um papel importante em experiências religiosas (GAUER, 1990, p. 60).

    Segundo Labate et al. (2008), essa noção parte do desenvolvimento de uma mentalidade historicamente construída ao longo do tempo, haja vista que o consumo de substâncias psicoativas pode ser identificado entre variadas culturas há milhares de anos. Diferentes fatores como a economia, a ciência e os hábitos culturais podem moldar as visões e a seletividade das sociedades com relação a determinadas drogas, o que permite compreender por que o status de certas substâncias psicoativas mudou com o passar dos anos. Há vários exemplos de drogas que foram incorporadas a diferentes lógicas econômicas e culturais, o que necessariamente cria novas questões e significados para seu uso.

    O convívio entre seres humanos e substâncias psicoativas, sejam elas derivadas de plantas e animais ou criadas sinteticamente, é milenar. Entretanto, a distribuição e a história das drogas ao redor do mundo não são homogêneas, uma vez que a maioria das drogas é originária do continente americano e/ou esteve diretamente ligada à sua história. Além disso, ressalta-se que a hegemonia científica e médica sobre o uso de drogas se sobressaiu, por muitos anos, entre as demais abordagens sobre essa questão.

    Ao pesquisar sobre a história das drogas, há, inicialmente, a impressão de que as fontes primárias seriam o maior obstáculo a ser superado, considerando-se que tudo o que se sabe sobre o passado das drogas nas culturas das sociedades originais da América provém dos relatos de colonizadores. Foi principalmente a partir da abertura da historiografia aos temas culturais, a diferentes fontes e a novas possibilidades de objeto que outras perspectivas sobre as drogas tomaram corpo, observando as circunstâncias que levaram determinados sujeitos ao local que ocupam nesse debate. É importante considerar que as ciências médicas não estiveram estagnadas em uma mesma lógica de operação enquanto outras áreas passavam por mudanças, mas suas transformações também são historicizáveis, o que por sua vez constitui parte do campo de estudo da história das ciências (CAMPOS; GOOTENBERG, 2015).

    Virginia Berridge (2013, p. 3), em seu livro Demons. Our changing atitudes to alcohol, tobacco e drugs, afirmou que a "história é central para uma compreensão das posições e respostas em relação às substâncias [...] este enfoque nos permite identificar as questões que levaram estas diferentes substâncias ao seu status atual na cultura e sua regulação na sociedade". Independentemente da mensagem médica, jurídica ou política prevalecente, as implicações morais e éticas que costumam acompanhar a historicidade das drogas transcendem sua conceitualização originária. Por isso, sua valorização positiva, negativa ou neutra depende de outras circunstâncias totalmente alheias à sua natureza.

    Segundo Santana (2004, p. 33-34), a droga, atualmente:

    [...] adquiriu outra conotação que figura um amplo horizonte ideológico-social do mundo como um novo fenômeno econômico, político e cultural, [mas] é preciso lembrar que a presença das drogas ou as substâncias psicotrópicas não é nova na história, independentemente do nível de consumo que alcançaram.

    Nesse contexto, não pretendemos, superficialmente, reforçar uma ideia de que a função da História seria apenas a de nos fazer aprender com os erros do passado, mas reconhecer a existência de processos históricos que privilegiaram políticas proibicionistas sobre determinadas drogas.

    1.1.1 O SIGNIFICADO DE DROGA

    Etimologicamente, o termo droga provém do árabe hatrúka, que significa, literalmente, charlatão, o que se deve, em boa medida, à utilização majoritária de drogas por curandeiros, magos e feiticeiros, em todas as culturas. Em outra versão, a palavra se identifica com a anglo-saxão; drogue, em francês; droga, em italiano; droge, em alemão, cuja origem encontra-se na palavra holandesa droog, que significa seco, árido, e faz referência ao estado em que chegavam antigamente na Europa as plantas medicinais procedentes de América (PRIETO RODRIGUEZ, 1986, p. 12).

    Em termos atuais, o vocábulo droga possui vários sentidos que geram diversificadas incompreensões e, por consequência, preconceitos e discriminações. Esses sentidos, entretanto, foram alterados com o passar do tempo e, hoje, a palavra droga é comumente utilizada com sentido negativo, relacionada a problemas sociais – como o vício, problemas de saúde e violência – ou a práticas governamentais que buscam resolver problemas supostamente causados por determinadas substâncias psicoativas. No dicionário da língua espanhola²³, por exemplo, o vocábulo droga é definido como substância mineral, vegetal ou animal, que se emprega na medicina, na indústria ou nas belas artes; substância ou preparado medicamentoso de efeito estimulante, deprimente, narcótico ou alucinógeno. O dicionário traz, ainda, a distinção entre a droga leve – aquela que não é aditiva, ou é em baixo grau, como as variedades do cânhamo índico –; e a droga pesada – aquela que é fortemente aditiva, como a heroína e a cocaína.

    Cruz Magallanes (1988) define a droga como todo agente químico (que não água, oxigênio ou alimento) que, ao ser introduzido no organismo, modifica uma ou mais de suas funções normais, produzindo alterações fisioquímicas que, em alguns casos, podem provocar efeitos psicológicos. Patricia Caro (1997, p. 17) refere-a como tudo aquilo que introduzido ao organismo provoca alguma modificação. Para Velasco Fernandez (1999, p. 187), é qualquer substância química ou mistura de substâncias distintas das que precisam para a conservação da saúde em condições normais, cuja administração modifica as funções biológicas, e possivelmente também a estrutura do organismo. Ronald Smith (1986, p. 11) considera droga como qualquer substância que, introduzida no organismo, produza uma mudança anatômica ou fisiológica. Edith Massün (1991, p. 14) aponta que se trata de um nome genérico que designa qualquer substância que, ao ser introduzida no organismo vivo, produz alterações na estrutura ou no funcionamento normais (mudança física ou mental). Segundo a autora, as drogas distinguem-se dos alimentos que não são nutritivos, porém, podem ter em alguns casos propriedades curativas, como é o caso dos medicamentos.

    Com base nessas definições, podem ser identificados três elementos básicos relacionados à droga: (a) é uma substância de qualquer natureza; (b) produz algum efeito no organismo; (c) carece de valor nutritivo, não sendo indispensável para a subsistência, em condições de normalidade. Como resultado desse amplo sentido, droga se utiliza comumente como sinônimo de fármaco, sendo considerada uma substância que efetivamente provoca um efeito no organismo, não devendo este efeito causar, entretanto, uma alteração psíquica ou anímica. Em síntese, o termo droga é muito problemático, em parte devido a suas conotações de abuso e de vício (COURTWRIGHT, 2002, p. 20).

    As definições atuais seguem, em larga medida, os critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS), que, em 1969, mediante um critério clínico, definiu droga como qualquer substância que, introduzida em organismos vivos, tem o poder de modificar uma ou várias de suas funções. No contexto das definições médicas, a mais citada é a de droga como qualquer substância diferente dos alimentos e que, por natureza química, afeta a estrutura e a função de um organismo vivo (HUSAK, 2001, p. 54). Em 1982, a OMS intentou delimitar quais substâncias produziam dependência, declarando como droga toda substância de uso não médico, com efeitos psicoativos (capaz de produzir mudanças na percepção, no estado de ânimo, na consciência e no comportamento) e susceptível de ser autoadministrada (LORENZO et al., 2003, p. 4).

    Como referido anteriormente, o vocábulo droga, na atualidade, relaciona-se de maneira automática com a dependência e com o tráfico, fenômenos que, no entanto, apresentam-se pela conjunção de fatores de outro cariz, que transcendem a mera natureza da substância. É difícil, porém, escapar de valorizações políticas, morais ou de outra espécie quando se tenta definir o que vem a ser droga. Segundo o conceito científico fornecido pela medicina ou pela farmacologia, ela não é diferente dos medicamentos que se vendem em farmácias, ao ponto de estas serem denominadas nos Estados Unidos como drugstores e como drogarias em alguns lugares da América Latina. Assim, a droga não é só a substância definida com rigor científico, posto que sua conceitualização também inclui circunstâncias sociais, políticas ou econômicas.

    Em última análise, o conceito de droga acompanha a multiplicidade de qualificativos, tornando-se, assim, referência automática à dependência química e às drogas ilícitas. Essas últimas noções são subclassificações que atendem a um discurso médico e jurídico, respectivamente. Ressalte-se que a não dependência e a determinação legal de catalogar as drogas como lícita ou ilícita são meros critérios classificatórios da medicina e do sistema legislativo de cada país.

    1.1.2 O USO DE DROGAS

    Segundo Silveira e Moreira (2006, p. 3), o consumo de drogas não é algo novo, um mal contemporâneo, mas [...] sempre acompanhou a história da humanidade, assim como a busca do prazer e da necessidade de satisfação dos instintos.

    O uso de drogas remonta aos primórdios da civilização, precisamente ao período Neolítico, quando abundavam na natureza plantas contendo substâncias venenosas, como os espinhos usados contra a voracidade dos animais (ESCOHOTADO, 1996).

    O ópio, obtido da papoula, considerada a planta da alegria, foi provavelmente a primeira droga descoberta pela humanidade, entre 5.000 e 6.000 a.C. Entre seus principais alcaloides, encontram-se a morfina, a codeína e a tebaína (paramorfina), sendo vários os seus derivados, dentre eles a heroína. Sua disseminação como medicamento ampliou-se por toda a Europa, tornando-se uma panaceia do século XVII em diante devido às suas virtudes como antitussígeno, antidiarreico e analgésico, além de outros fins (RODRIGUES, 2006).

    O uso das drogas para fins medicinais prosseguiu na Idade Média, encontrando-se inúmeras referências a esse respeito em documentos da época. Atente-se que civilizações da Antiguidade – incluindo Egito, Grécia e Roma – não viam o ópio como produto comerciável importante. Foram os árabes os primeiros a identificar seu elevado potencial mercantil, com valor relativamente elevado, volume compacto e prazo de validade longo. Paralelamente à expansão de seus domínios, organizaram a produção e o comércio dessa droga. Ressalte-se que as restrições do Corão a substâncias causadoras de intoxicação não se aplicavam ao ópio, que era visto unicamente como produto medicinal, sobretudo analgésico (SILVA, 2013).

    Em meados do século XIX, após a descoberta de seus princípios ativos, o comércio da folha de coca se internacionalizou. Era barato, acessível e eficaz, servindo como analgésico, sedativo, remédio contra a febre e outros males. Era suave, não produzia maiores desconfortos para o paciente, era autoministrável e podia ser receitado grátis pelos boticários, dispensando consultas médicas. A partir do século XVIII, iniciaram-se as proibições ou imposições de taxas mais pesadas à sua comercialização. No final do século XIX, o uso abusivo e a dependência do ópio começaram a ser considerados problemas graves, de caráter transnacional e passível de controle internacional (SILVA, 2013).

    Também a cannabis, planta terapêutica de uso amplo e diversificado, passou a ser vegetal proibido, com seus usos industriais e alimentícios suprimidos, embora a proibição global se consolidasse apenas na segunda metade do século XX. A legalização do seu uso, tanto medicinal como recreativo, ocorreu no século XXI, iniciando-se no Uruguai, no ano de 2013.

    A dependência, frequentemente resultante do uso indiscriminado, era aceita como o preço pela supressão da dor e, portanto, raramente tratada, por atingir, sobretudo, as classes mais favorecidas. Em outras palavras, a dependência não se configurava como um problema social, não despertava o interesse da opinião pública ou dos governos, não obstante os riscos para a saúde – ainda pouco conhecidos – e seu consumo, mesmo para uso recreativo, era socialmente aceito sem discriminação.

    1.1.3 AS FORMAS DE CONSUMO E A DIFUSÃO DAS DROGAS

    A primeira droga a ser consumida em larga escala e tornar-se objeto da atenção internacional foi o ópio, cuja forma de consumo evoluiu, contribuindo muito para a sua disseminação. Durante a Idade Média, seu uso recreativo era restrito à nobreza e às elites, sendo estimulado, ainda, entre as concubinas como forma de manter sua submissão.

    O problema da dependência envolvia uma minoria e não tinha repercussões sociais, pois as drogas que provinham de plantas não refinadas geralmente eram consumidas, até meados do século XIX, por via oral. Ingerir folhas ou infusões oferecia certa margem de segurança, posto que a baixa concentração dos componentes biologicamente ativos dificultava a possibilidade de superdose ou overdose no físico humano, situação que logo se modificou com a difusão da prática de se inalar a fumaça, hábito derivado do tabagismo ocidental (emulado, por sua vez, das tribos indígenas norte-americanas). Assim sob a forma inalada e com fins recreativos, o consumo do ópio logo atingiu proporções preocupantes no Reino Unido, nos Estados Unidos da América (EUA) e, sobretudo, na China, em meio ao total desconhecimento de sua capacidade de criar dependência (SILVA, 2013).

    No Ocidente, especialmente nos EUA e no Reino Unido, a dependência iniciou-se no século XIX de duas formas: pela rápida popularização do uso recreativo entre intelectuais e donas de casa de classe média; e pelo uso medicinal dos chamados paregóricos e elixires – substâncias frequentemente preparadas com ópio cru, morfina ou cocaína, amplamente disponíveis e vendidas como cura para todos os males. Na Europa e nas Américas, em meados do século XIX, boticas vendiam cerca de 70 mil remédios de fórmula secreta (Tônico do Dr. X, Água Milagrosa de Z), quase invariavelmente contendo substâncias psicoativas e amplamente anunciados em publicações e revistas (ESCOHOTADO, 1996).

    A conscientização das elites acerca dos efeitos do ópio sofreria grande impulso em 1821, com a obra autobiográfica de Thomas De Quincey, Confessions of an English Opium Eater, publicada inicialmente na London Magazine e posteriormente em forma de livro.

    Nos EUA, o ópio já era usado medicinalmente nos tempos coloniais, tendo sido amplamente utilizado pelos exércitos coloniais britânicos durante a Guerra de Independência nos anos 1770. Seu uso continuou restrito até meados do século XIX, quando, então, sucessivas levas de trabalhadores do sul da China, atraídos pela corrida do ouro na Califórnia e pela construção ferroviária, começaram a difundir pela Costa Oeste o hábito de fumo recreativo de ópio cru, aspirados com cachimbos. Tal hábito, a princípio, era restrito à comunidade chinesa. Pouco a pouco, ambientes que eram um misto de local de fumo, jogo, prostituição e restaurante, configuraram-se como verdadeiros centros comunitários do submundo, em que se drenavam os recursos dos imigrantes e retardavam seu retorno à China, detendo-os no exílio, em um círculo vicioso. As casas de ópio (opium dens) foram o berço da subcultura da droga no país e contribuíram para aprofundar o preconceito da sociedade norte-americana contra os imigrantes chineses ao associá-los às drogas, ao crime e à depravação (SILVA, 2013).

    A Guerra Civil (1861-1865) contribuiu igualmente para reforçar a dependência de drogas nos EUA. Durante o conflito, os hospitais – sobretudo do Norte – fizeram uso liberal de ópio e morfina (no sul confederado, era comum a escassez da substância, com sua substituição por uísque), sendo a papoula cultivada nos dois lados do front. Frise-se que o ópio foi ministrado oralmente para curar disenteria e malária, e a morfina, para aliviar a dor. A ampla disponibilidade dessas drogas e o desconhecimento sobre suas consequências levou muitos veteranos de guerra, tratados medicamente com elas, a se tornarem dependentes, condição que passou a ser conhecida, na época, como a doença do soldado. Também viúvas e parentes enlutados fizeram amplo uso de tais substâncias para melhor suportar seu sofrimento. Em 1860, o ópio passou a ser reconhecido como um problema social e de saúde e, poucas décadas depois, passaria a ser também um problema de segurança pública (SILVA, 2013).

    No Reino Unido, no período da Revolução Industrial, popularizou-se o uso das drogas para fins relaxantes entre o novo operariado, formado de ex-camponeses subitamente proletarizados e refugiados nos subúrbios miseráveis das grandes cidades (SILVA, 2013).

    Quanto à cocaína, esta foi sintetizada nos anos 1860 e introduzida inicialmente como uma substância maravilhosa, considerada pelos médicos um remédio antidepressivo, alimento para os nervos e forma inofensiva de curar a tristeza. Por volta de 1885, a Companhia Parke-Davis já a fabricava sob diversas formas (para ser bebida, fumada, inalada, injetada ou aplicada sobre a pele), tendo como garoto-propaganda o jovem Sigmund Freud. A popularização do seu consumo recreativo nas décadas seguintes foi logo seguida da conscientização sobre seus efeitos colaterais. Nos EUA, o uso de cocaína foi acompanhado da estigmatização social e racial decorrente da prevalência do consumo entre as populações afro-americanas do sul do país. Em pouco tempo, a substância passou a ser associada à violência urbana e familiar, à degradação moral e ao desequilíbrio mental, desencadeando uma onda legiferante no país para seu controle (SILVA, 2013).

    No tocante à cannabis, seu prestígio entre a comunidade médica não chegou a firmar-se em medida remotamente parecida à do ópio e à da morfina. Sempre pareceu uma substância tosca, própria de medicinas primitivas, sendo recomendada apenas esporadicamente como analgésico, hipnótico e antiespasmódico. Sua primeira proibição ocorreu em 1800, quando Napoleão Bonaparte baniu o uso do haxixe em todo o Egito para evitar delírios violentos e excessos. Como resultado, a medida despertou a curiosidade de alguns médicos e intelectuais franceses, levando à criação do Club des Haschischiens, composto por personalidades como Baudelaire, Victor Hugo e Balzac (ESCOHOTADO, 1996).

    1.1.4 A CLASSIFICAÇÃO DAS DROGAS

    As drogas possuem diversas classificações na literatura científica. Sob a ótica dos seus efeitos, podem ser especificadas como: (a) narcótico – substância que produz sonolência, relaxamento muscular e embotamento da sensibilidade, como o clorofórmio, o ópio, a beladona etc.; (b) enervante – substância que debilita ou tira as forças, que excita os nervos ou deixa nervoso; (c) entorpecente – substância narcótica que faz perder a sensibilidade, como a morfina ou a cocaína; (d) psicotrópico – substância psicoativa que produz efeitos em geral intensos, até o ponto de causar mudanças profundas de personalidade; (e) psicoativo – substância que atua sobre o sistema nervoso, alterando as funções psíquicas; (f) alucinógeno – drogas que produzem alucinação; (g) fármaco – definido simplesmente como medicamento²⁴.

    Essas noções semânticas não são claras o suficiente para diferenciar os termos narcótico e entorpecente, que podem, em uma primeira leitura, ser entendidos como substâncias análogas, pois, segundo suas definições, ambas provocam perda da sensibilidade. Pelos exemplos fornecidos pelos dicionários (morfina e cocaína), entorpecente pode ser também entendido como um subtipo de narcótico já processado. Enervante possui dois significados díspares: é assinalado como algo debilitante e, ao mesmo tempo, como excitante, estimulante. Psicotrópico e psicoativo fazem referência a uma atuação sobre o sistema nervoso, com o entendimento de que psicotrópico causa maior efeito ou intensidade que psicoativo. Alucinógeno é simplesmente aquilo que produz alucinações, ou seja, falsas impressões sobre a realidade. E fármaco é identificado como um medicamento que, em sentido amplo, significa droga.

    Recorrendo a Shultes (1993), verifica-se que o autor considera, como narcóticos, os opiáceos – o ópio, seus componentes ativos, seus derivados, como a morfina, a heroína, a codeína e outras substâncias de efeitos afins ou substitutivos, como a petidina e a metadona. Identificam-se assim por produzirem um efeito de sonolência, de adormecimento, induzindo o usuário a um estado de sono e de perda de sensibilidade diante da dor. Quanto a entorpecente, por ser palavra com etimologia ligada ao latim stupeo e facere, é aquilo que induz ao estupor, que atordoa ou provoca inconsciência, tendo expressão análoga a narcótico (o vocábulo narcotic, de origem inglesa, passou para o francês como estupéfiants, e deste ao espanhol, como entorpecente).

    O autor informa que, apesar de, em geral, o conceito de entorpecente se vincular a produtos químicos e sintéticos que podem não induzir à sonolência ou ao sono, ele possui maior potência que o ópio em estado natural. No tocante a psicotrópico e psicoativo, o autor pontua que são noções amplas, pois referem-se a substâncias que atuam concretamente sobre as funções do sistema nervoso central, sem importar a natureza do dito efeito. Quanto a enervante, é um conceito igualmente vago, usado quando se trata de substância que excelia, ou seja, que atua sobre os nervos. Por fim, em relação aos alucinógenos, Shultes (1993) refere tratar-se de outra categoria de drogas, que, embora usualmente sejam narcóticas (induzem a um estado de sonolência ou inconsciência), distinguem-se pela geração de impressões sensoriais não vinculadas à realidade, isto é, sensações alucinantes, dentre as quais o tipo mais comum e corrente é a alucinação visual, com frequência em cores. Outras alucinações, no entanto, podem ocorrer, como as auditivas, as táteis, as olfativas e as gustativas.

    De acordo com a OMS (1981, apud CARLINI et al., 2001, p. 11), droga é qualquer entidade química ou mistura de entidades (mas outras que não aquelas necessárias para a manutenção da saúde, como água e oxigênio) que alteram a função biológica e possivelmente a sua estrutura; drogas psicoativas são aquelas que alteram comportamento, humor e cognição, o que significa dizer que elas agem preferencialmente nos neurônios e afetam o Sistema Nervoso Central (SNC); e drogas psicotrópicas²⁵ são as que atuam diretamente no SNC e produzem alterações de comportamento, humor e cognição, possuindo grande propriedade reforçadora, sendo, portanto, passíveis de autoadministração.

    Entre as classificações doutrinárias, a do pesquisador francês Chaloult (1971) é usada por Carlini (1994) por ser a mais didática e por dividir as drogas em três grandes grupos: (1) o das depressoras; (2) o das estimulantes; e (3) o das perturbadoras, conforme detalhamento a seguir:

    1) depressoras: diminuem a atividade do SNC, que passa a funcionar mais lentamente. Entre os sintomas/sinais dessa diminuição, encontram-se a sonolência e a lentificação psicomotora. Algumas dessas substâncias são úteis como medicamentos nos casos em que o SNC da pessoa esteja funcionando acima do normal, como em epilepsias, insônias, excesso de ansiedade etc. Entre os meninos em situação de rua, as drogas depressoras mais consumidas são álcool, inalantes e benzodiazepínicos;

    2) estimulantes: estimulam atividade do SNC, fazendo com que o estado de vigília aumente (diminuindo o do sono). Há também nervosismo e aumento da atividade motora. Em doses mais elevadas, chegam a produzir sintomas perturbadores do SNC, como delírios e alucinações. A droga estimulante mais usada por meninos em situação de rua é a cocaína e seus derivados, como cloridrato, crack, merla, pasta etc.;

    3) perturbadoras: produzem mudança qualitativa no funcionamento do SNC. Assim, alterações mentais que não fazem parte da normalidade, como delírios, ilusões e alucinações, são produzidas por essas drogas. Por essa razão, são chamadas de psicotomiméticas, ou seja, drogas que mimetizam psicoses. Entre meninos em situação de rua, as drogas perturbadoras mais usadas são maconha e medicamentos anticolinérgicos, dentre os quais o triexifenidil (Artane®) é o mais consumido.

    Segundo Shultes (1993), esses conceitos estão estreitamente relacionados entre si, sendo difícil estabelecer claras distinções entre eles. Os critérios diferenciais utilizados costumam derivar não de tratados médicos ou de outras disciplinas afins, como o Direito. Nesse campo, obedece-se a definições políticas e interpretações jurídicas sem afastamento da matriz científica. Assim, em um mesmo conceito, incluem-se substâncias com efeitos diversos no organismo, observadas as contextualizações médica, farmacológica ou química. Assim sendo, valora-se a droga simplesmente como legal ou ilegal, lícita ou ilícita. Nessa dicotomia (proibida e permitida), a droga é classificada pela natureza de cada substância, envolvendo não apenas o volume de consumo, mas também critérios objetivos de maior ou menor nocividade, toxicidade ou potencial de criação de dependência.

    1.1.5 O NARCOTRÁFICO

    O termo narcotráfico provém do inglês narcotrafic, traduzido como tráfico de narcótico. Tal como ocorreu na classificação de drogas como drogas ilícitas, o neologismo decorre de uma impressão semântica, pela qual um termo utilizado originariamente para fazer referência ao tráfico de um tipo de substância em específico (os narcóticos) se generalizou até alcançar a totalidade das drogas, inclusive aquelas cujo efeito no organismo está muito longe de narcotizante. Narco serve como prefixo para fazer referência a tudo aquilo que se queira vincular com o mundo das substâncias proibidas (RAMIREZ MONAGAS, 1880).

    Assinala Del Olmo (1992, p. 75) que, em linguagem cotidiana, o termo narcotráfico se transformou:

    [...] em um conceito abstrato e homogêneo, sinônimo de tudo que tem a ver com drogas ilegais, mas, especialmente, cada dia mais com a cocaína. Curiosamente, este neologismo se construiu com a raiz da palavra narcótico e o substantivo tráfico, mas narcótico significa adormecimento, enquanto a cocaína produz todo o contrário. Esta imprecisão se podia justificar quando foram escritas as primeiras leis nos Estados Unidos devido às confusas classificações que existiam. Atualmente não se justifica, mas segue-se empregando para se referir à cocaína e, principalmente, como sinônimo de um ameaçante fantasma invasor dotado de vida

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