Lady Power - Um Mundo sem Dono
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Sobre este e-book
Um livro sobre poder, política, sexo, religião, ciência e os limites morais da inteligência artificial. Ele apresenta um mundo futuro onde a economia está em declínio e várias corporações lutam entre si pelo domínio global. Ao mesmo tempo, uma nova e revolucionária tecnologia antigravitacional nasce ao lado de uma divindade feminina artificial disposta a ajudar as pessoas a lutar contra aqueles que controlam o capital e o planeta.
Se Deus não existe, devemos criá-lo.
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Lady Power - Um Mundo sem Dono - Anthony Koontz
Retrato dos fins dos tempos
Um elogio frequente ouvido nos conselhos internacionais era a inexistência de muçulmanos famintos. Nessas regiões, mais do que em países ou nações, a caridade não sofria monopólio estatal ou institucional, era uma obrigação direta do cidadão e pedir esmolas se tornara um ofício respeitável.
No ocidente, uma maioria de Estados falidos, mas plenos de aristocracias milionárias confiava a administração da economia a uma entidade supranacional. A Fundação Jus. Ela não tinha acesso a qualquer um dos muitos organismos filantrópicos do Islão, e nenhum controle direto das fortunas sob os olhos de Maomé.
Enquanto no Islão havia concorrência entre as instituições de caridade, a América Continental e Europa enchiam os cofres de um Estado paralelo que impedia o fim dos bolsões de miséria do hemisfério sul. Seu poder chegava a tanto que William F. Jus havia conseguido pessoalmente a aprovação nos congressos dos Estados Unidos, Canadá e México de leis que isentavam do pagamento de imposto de renda os cidadãos que contribuíssem para a Fundação.
Dos nove bilhões e meio de pessoas que habitavam o mundo mais da metade vivia com problemas nutricionais sérios. A expansão demográfica havia se tornado negativa uma década atrás e os mais favorecidos admitiam que essa era a melhor resposta natural para a sobrevivência da espécie.
Mas a redução da população perdia a corrida para a redução da produção de bens. A Fundação Jus se alimentava da proliferação da miséria e conduzia a distribuição de riqueza através da seleção de famílias remanescentes dos conglomerados evangélicos e católicos. Seu poder vinha muito dos fundos privados de proteção à herança familiar, invenção empresarial que surgira para proteger filhos e netos diante da falência crescente dos Estados e suas moedas em decadência.
Substituindo as leis e os poderes de Estado de diversos países, a moral e a justiça nas ruas, a Fundação Jus concordava que a redução da natalidade contribuiria para o equilíbrio ecológico, mas não apoiava financeiramente seu controle com métodos anticoncepcionais bioquímicos ou físicos. Os pobres têm direito de nascer
era um de seus bordões publicitários.
E num mundo dividido desde o colapso financeiro de 2027, seu domínio era quase total. Quase porque se limitava aos países de tradição cristã. Devido à expansão islâmica, as nações teocráticas sob o domínio da Sharia estavam livres dos programas da Fundação, mas à mercê dos experimentos genéticos de massa desenvolvidos na China e no Japão. Do paraíso não havia restado nem a lenda.
Assim, no final do Século XXI, o hemisfério ocidental mantinha suas ruínas, o Oriente Médio estava em paz, grande parte da Ásia e Oceania em equilíbrio econômico. A história do mundo corria em seu fluxo normal. Mas num tempo próximo, sete porta-aviões gigantescos e completamente armados estariam paralisados no Oceano Pacífico diante de uma frota, flutuando no céu, de esferas blindadas e escuras. E a história seria outra.
Anno Domini, 2045
Mantendo as pernas abertas, suadas, molhadas ao pelo, Melina Evren deu o melhor de si a Juan, a Carlos, a Castañeda, a Péricles, a Hugo, a Smith, a Mussolini e a quem mais importasse desde os treze anos. Bumbum para cima, mamilos esculpidos. Sua boca larga e prestativa fazia de seus amantes, idiotas. Alguns, mais submissos, sucumbiam a um simples olhar. E assim ela havia conseguido o posto de primeira-dama no último 8 de agosto, aos 38 anos de idade sem celulite, rugas, estrias ou sinal de barriga.
Nova Iorque
Descendo o zíper das calças, Juan Canarió afrouxou a cinta sobre o estômago flácido enquanto se lembrava do dia em que decidiu ser Melina a mulher de sua vida. Ela mesma, que ora estava no banheiro enchendo as bochechas de água e pasta de dente, esborrifando espuma sobre o enorme espelho da parede. O mármore polido do chão refletindo sua beleza nua, vermelha, deliciosa... Que delícias!
Que delícias o esperariam após aquela tarde. Juan ditou o número do consulado, e do outro lado uma voz feminina, secretarial e velha atendeu educadamente. Anotou as ordens de Juan e desligou o telefone. Por sua vez, a secretária, olhando para si mesma diante da janela de vidro, retocou o batom, limpou a mancha vermelha que borrara o microfone e vislumbrou sua panorâmica do sétimo andar até o horizonte cinza azulado. Mais um
, pensou a mulher esquecida pelo tempo, entre um cacoete e outro. Juan havia pedido a confirmação de seu encontro com Hervé e também das reservas para o vôo de partida.
Japão
Do outro lado do mundo, mas não muito, Kiruo terminava sua experiência de número 76 do ano, sem auxiliares há dois meses, sem verba, contrato vencido com a agência espacial japonesa e num laboratório de terceira classe no prédio mais antigo da universidade. Com metal intrapolido e elétrons nos lugares certos, a carcaça supercondutiva com 150 kg de massa e peso negativo se ergueu a meio metro do chão. Ela conferiu alterações de massa, temperatura, registrando as alternativas de potência em relação aos movimentos horizontal e vertical. A carcaça assim oscilava para frente, para trás e para os lados obedecendo a focos de laser de diferentes cores e graduações. Um sorriso nipônico brotou da boca feminina.
Nova Iorque
Aquilo acontecia todas as manhãs. O sol se abria e, como todas as mulheres, ela fechava as pernas. A luz entrava iluminando grãos de poeira e o homem que deixava o leito tentava apanhá-los nas mãos. Ser o centro do universo era o limite máximo. A angústia matinal o tirou da cama e, ainda nu, escancarou as janelas e aspirou a brisa do mar. Jus, fecha isso!
, ela murmurou escondendo a cabeça sob o travesseiro. Jus se voltou, viu a beleza exagerada no dorso da criança e sorriu. Sentiu uma onda de ternura. Da qual ele tinha consciência de que duraria apenas um instante, mas era satisfatória. Felicidade era coisa efêmera em sua vida.
Pronto. O instante acabara. O display do criado-mudo piscou e a voz de soprano da assistente individual UVC[1] anunciou um novo dia. Sete e meia, primeiro de fevereiro. A fome continuava no mundo e Jus tinha o que fazer. Às oito em ponto, Ketrin-IA utilizava seu código de acesso à rede mundial permitindo o universo entrar no escritório. Alguns segundos depois centenas de canais de comunicação exibiam a voz e as imagens sintetizadas de Ketrin-IA atendendo todas da mesma maneira: Fundação Jus, Bom dia. Aguarde um momento, por favor.
A central identificava a origem de cada ligação e repetia a frase no idioma mais adequado, dirigindo em seguida a ligação para o interlocutor da Fundação Jus para o assunto requerido, às vezes um humano, às vezes apenas uma unidade UVC. A maioria das ligações partia de empresas coligadas e instituições filantrópicas, o que provocava um círculo vicioso entre acordos operacionais e barganhas, sob a intermediação da Fundação Jus. A sede central da indústria da miséria, da fome e da caridade havia se desenvolvido e encontrado seu mais poderoso benfeitor. William F. Jus era responsável pela manutenção dos sistemas de equilíbrio.
Seu talento principal era ter se transformado no símbolo máximo da caridade cristã no hemisfério ocidental após a expansão árabe sobre a Europa mediterrânea. Ex-padre, pastor evangélico aos quarenta anos, ele começou a carreira de personalidade internacional liderando as primeiras das muitas passeatas transcontinentais, levando grupos humanos a pé através de fronteiras de países inimigos, unindo miseráveis e ricos, pagãos e religiosos. Reunindo centenas de milhares de cristãos africanos, russos, turcos, eslavos e latino-americanos para exigir melhores condições de saúde e trabalho nos piores anos da crise.
O Primeiro Mundo ficara mais pobre e o império dos desassistidos pela sorte floresceu. Em menos de uma década, William F. Jus capitalizava cento e trinta bilhões de eurodólares ao dia. Mais que suficiente para se orgulhar cada vez que atravessava o portal eletrônico do Christmas Building, ponto nevrálgico da Fundação Jus – mantenedora de mais de cem mil agroindústrias de produção alimentar, administradora majoritária em 14 transnacionais, englobando a indústria aeroespacial, petróleo e redes de telecomunicações, colaborando com auxílio financeiro e tecnológico de países inteiros como também dando suporte ao poder eclesiástico remanescente, aglutinando sob a mesma bandeira as centenas de seitas e cultos evangélicos e sincréticos. Enfim, era a mantenedora das forças armadas da América Continental e representante oficial do bloco ocidental norte. A verdadeira raiz de um império.
Bom dia, Ketrin.
Bom dia, Jus. O representante do comitê internacional das crianças carentes está à sua espera tem uns vinte minutos. Eu tomei a liberdade de permitir que ficasse em seu escritório. Ele está possesso e não vi outro jeito de tranquiliza-lo.
Ketrin-IA terminou de falar erguendo as sobrancelhas e os ombros translúcidos e bem torneados de seu holograma. Jus esticou os lábios, passou as mãos pelas têmporas, respirou fundo e entrou no escritório. A porta mal havia se fechado e ele ouviu o forte sotaque do homem: Filho da Puta!
Foram as primeiras palavras de Herculano Valente, europortuguês de tendências maniqueístas e deputado eleito pelo partido cristão popular com apoio da Fundação. Diante dele estavam alguns macroposters 3-D, emoldurados em vidro, de crianças pálidas e pardas. Em cada pôster lia-se Feed Me, e logo abaixo o codenúmero de uma conta bancária internacional com as iniciais FJ. Nós tínhamos feito um acordo a respeito, Jus. E você o quebrou. Eu consegui a verba a fundo perdido, a impressão e a distribuição de mais de doze milhões de mídias iguais a estas em treze idiomas diferentes. O Congresso Livre Europeu me deu carta branca confiando no sucesso do empreendimento. Eu contribuí para o rejuvenescimento desta campanha. Apostei minha carreira nisso. E agora, vejo este codenúmero absurdo impresso no meu pôster! A conta original deveria ser 315597-81, aqui está escrito 315597-91! Como eu vou explicar uma coisa dessas ao corpo de deputados?
Diga a verdade
, disse Jus, apertando os ombros de Herculano, num gesto fraternal, antes de se sentar. Nós trabalhamos em nome do Bem e não em nome de lucros. Um número diferente de uma conta bancária não vai trazer alterações a nossos objetivos principais. Use isso para você se afirmar diante da opinião pública caso seus companheiros tentem minar alguma de suas ações. Você os têm nas mãos e a Fundação não irá cobrar por este presente. Aliás, a Fundação nunca cobra. Apenas dá o que recebe.
Presente?!
Reagiu Herculano a ponto de balançar o enorme papo e as bochechas. Mudar o número da conta bancária nos pôsteres, impedindo o meu acesso às contribuições não foi um presente, foi uma traição. Todos os contratos que fechei contavam com o meu gerenciamento desta conta. Você amarrou minhas mãos. Com os diabos, afinal a ideia foi minha. A Fundação teria 60% dos fundos. Era mais do que merecido, era mais do suficiente.
Jus respondeu com as mãos postas em oração: Suficiente? O que é suficiente para os pobres deste planeta? Eles precisam de tudo. Cem por cento de tudo. Você devia se dar por contente em ajudá-los. Eu tenho sido um bom provedor nos últimos anos. Leve minha garantia. Quando você precisar de dinheiro para manter seu status, você o terá...
Herculano baixara os olhos e apertava os punhos de encontro a mesa. Jus continuou em um tom mais afável: Bem, com este assunto resolvido, por que não aproveitamos e fazemos o registro da primeira contribuição agora? Com a divulgação da lista de samaritanos o seu nome estará no topo... Quanto você tem no banco?
Existe uma coisa que supera sua inteligência, Jus – seu cinismo.
Herculano levantou-se rápido para os seus 76 anos e tomou a direção da porta que se abriu sem ruído. Antes que a porta deslizasse de volta, Herculano ainda teve tempo de se voltar e ver Jus esboçar um sorriso, aproveitar as mãos unidas e levá-las para trás até apoiar a nuca e se recostar na cadeira macia. A porta se fechou antes de Jus colocar os pés sobre a mesa e falar para si mesmo: Vá em paz.
Martírio
Na Quinta Avenida Hugo jogou um dólar de papel perto de uma mulher gorda e negra sentada na calçada e entrou em um velho táxi com motor movido a hidrogênio. O motorista fez questão de sair do carro e fechar a porta para aquele garoto cheio da nota. Naqueles tempos de dinheiro eletrônico-digital, papel-moeda se tornara um souvenir para bilionários e um privilégio para os pobres. Ligou o rádio e perguntou qual estação o moço queria ouvir. Hugo apenas disse um endereço sem olhar para o homem. O carro partiu num solavanco. O garoto bem vestido olhou a gola puída do motorista e lembrou que teria de dar uma gorjeta caprichada quando chegasse. Da janela ele assistia a cidade velha passar até surgirem as construções reluzentes da Nova Manhattan. Abriu sua Bíblia de bolso e leu com o dedo o Eclesiastes. Exultante, começou a rasgar as páginas e atirar os pedaços pela janela. O motorista espiava pelo retrovisor e se pôs a calcular o tamanho da multa por jogar papel nas ruas que poderia vir para o seu táxi. Se ele queria jogar ouro fora fizesse dentro do carro. Mesmo sem registro, qualquer dia desses, seu táxi poderia ser localizado pelo sistema. Na certa um policial qualquer iria anotar aquilo.
Quando o carro parou em frente à igreja, Hugo pediu para esperar e lhe deixou uma carteira cheia. O suficiente para não dar para contar quanto dinheiro tinha sem perder alguns minutos. Hugo subiu as escadas até ter à sua frente uma visão de todo o interior de um templo lotado de fiéis. Lá dentro as pessoas levantavam os braços, fechavam os olhos e esqueciam de si mesmas. O assistente do pastor fazia sinais para o DJ subir ou descer o volume, aumentar a equalização e achar o equilíbrio do canto entre os efeitos especiais de ecos e luzes. O homem no púlpito gritava pelos nervos da garganta: Jesus é o Senhor! Aleluia! Jesus é Amor! Jesus é Caridade! Jesus é Liberdade! Entregue seu coração. Deixe o amor de Deus entrar dentro de você e saciar a sede da alma. Jesus quer você. Agora! Aleluia!
Aleluia!
Hugo gritou alucinadamente sem ser notado. Gritou mais uma vez e mais uma vez, colocando os pulmões para fora e por alguns momentos interrompendo a onipresença do Senhor. Os braços dos fiéis continuaram levantados e os olhos fechados enquanto Hugo caminhava pela nave em direção ao Pastor. A saliva brotava branca pelos cantos da boca do orador. O suor escorria da testa do jovem Hugo. De cada palavra a náusea sem vômito se espalhava na plateia. Hugo engolia em seco, sob as axilas o suor encharcava, esfriado pela brisa vinda das portas da igreja. Ele ergueu os braços e apertou os olhos – Aleluia! Aleluia!
Ninguém notou, ninguém desviou a atenção do próprio êxtase. O jovem que caminhava pela nave do templo emudeceu contrito, fixou os olhos nos olhos do pastor que percebeu o brilho nas mãos do penitente, bem que esse poderia ser o exemplo de conversão do dia. O pastor preparou o abraço