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Barthes em Godard: Críticas suntuosas e imagens que machucam
Barthes em Godard: Críticas suntuosas e imagens que machucam
Barthes em Godard: Críticas suntuosas e imagens que machucam
E-book379 páginas3 horas

Barthes em Godard: Críticas suntuosas e imagens que machucam

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Sobre este e-book

Citam-se aqui os Cahiers du Cinéma através de duas fontes principais. Uma delas é a versão digitalizada da coleção completa da revista, disponibilizada em seu site pelo atual detentor dos direitos, que, desde 2008, não é mais o grupo Le Monde, que os havia adquirido da primeira editora, a Édition de l´Étoile, mas a tradicional editora de livros de arte Phaidon. A outra fonte é a coletânea em dois volumes Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard, organizada por este eterno perseguidor de Godard que é o crítico e professsor francês Alain Bergala, que seleciona e estabelece o principal das contribuições críticas godardianas dos anos 1950-1984 e 1984-1998. O recurso à antologia de Bergala rende, aqui, por vezes, citações "apud", o que se explica. Seja pelo estilo suntuoso, seja pela proporção do corpus em que se constitui, já que Godard segue escrevendo depois de passar à realização, o conjunto da obra do cineasta de À bout de souffle é de tirar o fôlego. Incluem-se aí as muitas entrevistas em que essa crítica continua, já que Godard é também um intenso pensador oral.
Os títulos dos filmes da Nouvelle Vague e daqueles outros filmes que integram o cânone da escola são aqui sempre citados no original. Os títulos brasileiros, quando existem, estão relacionados em apêndice.
Isso resolve grandes e pequenos problemas. Problema menor: se a tradução "Acossado" para "À bout de souffle" (literalmente: no limite do fôlego) encerra um perfeito comentário acerca da alma do herói em fuga de Godard, deixa intocada as insinuações vanguardistas dessa fórmula-manifesto. De fato, o famoso enunciado também se refere ao esgotamento das artes, principalmente, ao envelhecimento do romance realista, muito prezado pelo cinema francês da "Tradição da Qualidade", que vive de adaptá-lo prudentemente, tendência que os Cahiers desocultarão. Mas os realizadores saídos da escola dos Cahiers sentem-se igualmente retardatários em relação ao próprio cinema, quando o interceptam, nos meados do século XX, vendo-o já sem força. Desse modo, é também de um certo "regret" (saudade, nostalgia) do cinema, na expressão mesma de Godard crítico, que "à bout de souffle" fala. Tudo isso fica perdido na tradução.
"Barthes em Godard" inspira-se no título de um livro de Éric Rohmer musicólogo: De Mozart em Beethoven. Ensaio sobre a noção de profundidade na música (1998). Barthes foi um crítico musical extremamente atuante, como é bem sabido, e a erudição musical de Godard deixa-se apreciar em muitos de seus filmes – por exemplo, em Prénom Carmem, em que tudo se passa ao som de quartetos de Beethoven –, mesmo que seja jazzística a trilha sonora de seu primeiro e mais cultuado longa- metragem. Se é principalmente a pintura que os guia a ambos em sua verificação apaixonada do poder de convicção de certas imagens – sendo esta revolta lógica uma de suas cumplicidades ocultas aqui perseguidas –, a música não pode deixar de interessá-los já que as imagens que contam,
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de jan. de 2019
ISBN9788594850690
Barthes em Godard: Críticas suntuosas e imagens que machucam

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    Barthes em Godard - Leda Tenório da Motta

    Sumário

    CAPA

    CONSELHO EDITORIAL

    FICHA CATALOGRÁFICA

    NOTA PRÉVIA

    APRESENTAÇÃO: NÃO JUSTO IMAGENS, IMAGENS JUSTAS

    CAPÍTULO 1 – A CRÍTICA CHEGA A SI MESMA

    OS CAHIERS E OS SOCIÓLOGOS

    PAULO EMILIO FRANCÊS

    CAPÍTULO 2 – AS IMAGENS GANHAM ROLAND BARTHES

    ANTECIPANDO CHRISTIAN METZ

    O CINEMA DE EISENSTEIN MENOS A POLÍTICA

    CAPÍTULO 3 – A FÁCIES GODARDIANA E A CÂMARA CLARA

    ISSO ACONTECEU, ISSO ACONTECE

    CICLO NEGRO

    CAPÍTULO 4 – VANGUARDA E MELANCOLIA

    OBJETOS PERDIDOS

    CENTÍMETROS QUADRADOS DE PINTURA

    A TÍTULO DE CONCLUSÃO: OVELHA NEGRA E GUARDADOR DE REBANHO

    TÍTULOS DOS FILMES CITADOS EM PORTUGUÊS DO BRASIL

    BIBLIOGRAFIA

    OBRAS COMPLETAS DE ROLAND BARTHES EM EDIÇÕES FRANCESAS

    OBRAS DE ROLAND BARTHES EM EDIÇÕES BRASILEIRAS

    OBRAS SOBRE ROLAND BARTHES & IMAGEM

    OBRAS SOBRE A NOUVELLE VAGUE E O CINEMA

    COLEÇÕES DIGITAIS & DOCUMENTÁRIOS SOBRE A NOUVELLE VAGUE E GODARD

    Leda Tenório da Motta

    BARTHES EM GODARD

    CRÍTICAS SUNTUOSAS E IMAGENS QUE MACHUCAM

    São Paulo | Brasil | Janeiro 2019 – Ebook

    1ª Edição

    Big Time Editora Ltda.

    Rua Planta da Sorte, 68 – Itaquera

    São Paulo – SP – CEP 08235-010

    Fones: (11) 2286-0088 | (11) 2053-2578

    Email: editorial@bigtimeeditora.com.br

    Site: bigtimeeditora.com.br

    Blog: bigtimeeditora.blogspot.com

    Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos do Código Penal), com pena de prisão e multa, busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

    Conselho Editorial:

    Ana Maria Haddad Baptista (Doutora em Comunicação e Semiótica/PUC-SP)

    Catarina Justus Fischer (Doutora em História da Ciência/PUC-SP)

    Lucia Santaella (Doutora em Teoria Literária/PUC-SP)

    Marcela Millana (Doutora em Educação/Universidade de Roma III/Itália)

    Márcia Fusaro (Doutora em Comunicação e Semiótica/PUC-SP)

    Vanessa Beatriz Bortulucce (Doutora em História Social/UNICAMP)

    Ubiratan D’Ambrosio (Doutor em Matemática/USP)

    Ficha Catalográfica

    MOTTA, Leda Tenório da. Barthes em Godard. Críticas Suntuosas e Imagens que Machucam. 152 pp. – São Paulo: BT Acadêmica, 2019.

    ISBN 978-85-9485-069-0 | 1. Educação 2. Cinema 3. Crítica e Interpretação I. Título

    Capa: Big Time Editora, a partir de imgens cedidas pela autora.

    Diagramação: Marcello Mendonça Cavalheiro

    Revisão: Autora

    Todo Anjo é terrível.

    Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno, Primeira Elegia.

    NOTA PRÉVIA

    Citam-se aqui os Cahiers du Cinéma através de duas fontes principais. Uma delas é a versão digitalizada da coleção completa da revista, disponibilizada em seu site pelo atual detentor dos direitos, que, desde 2008, não é mais o grupo Le Monde, que os havia adquirido da primeira editora, a Édition de l´Étoile, mas a tradicional editora de livros de arte Phaidon. A outra fonte é a coletânea em dois volumes Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard, organizada por este eterno perseguidor de Godard que é o crítico e professsor francês Alain Bergala, que seleciona e estabelece o principal das contribuições críticas godardianas dos anos 1950-1984 e 1984-1998. O recurso à antologia de Bergala rende, aqui, por vezes, citações apud, o que se explica. Seja pelo estilo suntuoso, seja pela proporção do corpus em que se constitui, já que Godard segue escrevendo depois de passar à realização, o conjunto da obra do cineasta de À bout de souffle é de tirar o fôlego. Incluem-se aí as muitas entrevistas em que essa crítica continua, já que Godard é também um intenso pensador oral.

    Os títulos dos filmes da Nouvelle Vague e daqueles outros filmes que integram o cânone da escola são aqui sempre citados no original. Os títulos brasileiros, quando existem, estão relacionados em apêndice.

    Isso resolve grandes e pequenos problemas. Problema menor: se a tradução Acossado para À bout de souffle (literalmente: no limite do fôlego) encerra um perfeito comentário acerca da alma do herói em fuga de Godard, deixa intocada as insinuações vanguardistas dessa fórmula-manifesto. De fato, o famoso enunciado também se refere ao esgotamento das artes, principalmente, ao envelhecimento do romance realista, muito prezado pelo cinema francês da Tradição da Qualidade, que vive de adaptá-lo prudentemente, tendência que os Cahiers desocultarão. Mas os realizadores saídos da escola dos Cahiers sentem-se igualmente retardatários em relação ao próprio cinema, quando o interceptam, nos meados do século XX, vendo-o já sem força. Desse modo, é também de um certo "regret (saudade, nostalgia) do cinema, na expressão mesma de Godard crítico, que à bout de souffle" fala. Tudo isso fica perdido na tradução.

    Problema maior: a tradução Os incompreendidos para "Les quatre-cents coups (literalmente: Os quatrocentos golpes) sentimentaliza o garoto de Truffaut. Assim fazendo, compromete o novo realismo da Nouvelle Vague, que vem suplantar o neorrealismo italiano, acrescentando-lhe, justamente, a complexidade de um mundo já previamente esquadrinhado pelo cinema americano, e por isso mesmo vivido, de um só golpe, como autêntico e inautêntico. Os mil golpes do pequeno desajustado mal-amado, meio comovente, meio criticamente distanciado, que é Antoine Doinel adolescente talvez pudessem ter sido alcançados, em nossa língua, por algo como Aprontando todas. Mas a solução teria aculturado Truffaut. Já pintando o sete, como preferem alguns, simplesmente, equivaleria a devolver a Nouvelle Vague à literatice que ela primou por recusar. É à literatice, precisamente, que a devolvem traduções romanescas como Nas garras do vício para Le beau Serge de Claude Chabrol e Um só pecado para La peu douce" de Truffaut. Daí o interesse dos enunciados estrangeiros.

    Barthes em Godard inspira-se no título de um livro de Éric Rohmer musicólogo: De Mozart em Beethoven. Ensaio sobre a noção de profundidade na música (1998). Barthes foi um crítico musical extremamente atuante, como é bem sabido, e a erudição musical de Godard deixa-se apreciar em muitos de seus filmes – por exemplo, em Prénom Carmem, em que tudo se passa ao som de quartetos de Beethoven –, mesmo que seja jazzística a trilha sonora de seu primeiro e mais cultuado longa- metragem. Se é principalmente a pintura que os guia a ambos em sua verificação apaixonada do poder de convicção de certas imagens – sendo esta revolta lógica uma de suas cumplicidades ocultas aqui perseguidas –, a música não pode deixar de interessá-los já que as imagens que contam, de algum modo, além de pintura, são música.

    APRESENTAÇÃO

    NÃO JUSTO IMAGENS, IMAGENS JUSTAS

    Quando se entra para Legião, perde-se a honra.

    Jean-Luc Godard,entrevista a Alain Bergala[1].

    Situada entre Genebra e Lausanne, a pequena cidade suíça de Rolle fica à beira do lago Léman e paira à sombra de castelos medievas antigos e um porto lacustre desativado. Tendo se sentido sempre suíço na França e francês na Suíça[2] e sustentado sempre que nenhum dos dois lugares me convém inteiramente[3], ali vive, presentemente, o cineasta de À bout de souffle, como o ermita que, segundo seu biógrafo e estudioso Antoine de Baecque, nunca deixou de ser[4]. Antes de terminar aos pés dos Alpes suíços – por onde Barthes começou, nos anos 1940, escrevendo sobre Albert Camus, na revista do sanatório de tuberculosos da também pequena estação suíça de Leysin – essa batida em retirada rumo ao país da infância começa pelo interior da França, em Grenoble, onde, em 1970, em sua fase mais militante, impregnada do espírito da Revolução de Maio, ele se insatala. Autor de um dos volumes chamados Jean-Luc Godard de que podemos dispor, hoje, o crítico de cinema do jornal Le Monde Jacques Mandelbaum repassa toda essa paradoxal trajetória de avanço e fuga falando-nos numa eterna oscilação de Godard entre o retiro e a presença ao mundo[5]. Efetivamente, se parte importante das entrevistas em que se prolonga interminavelmente sua crítica e dos trabalhos caseiros, movidos a tecnologia leve de ponta, em que seu cinema continua briosamente tem sido realizada em Rolle, esta segunda existência é monacal. Godard não foi a Hollywood, em 2010, para receber um Oscar Honorário pelo conjunto de sua obra, nem a Cannes, em 2014, para receber o Prêmio do Júri, (o mesmo que Truffaut conquistara com Les quatre-cents coups, em 1959) por Adeus à linguagem.

    Na assim chamada civilização da imagem – para Roland Barthes nem tão livre de palavras quanto supomos, como se verá mais adiante – tudo isso está devidamente documentado. Há uma fartura de registros em vídeo do Godard do retiro suíço, inclusive, todos aqueles elaborados em complemento à exposição Voyage (s) em Utopie. Desses documentos, um dos mais comovedores é talvez um flash de uma caminhada do cineasta de À bout de souffle por uma rua de Rolle, que pode ser acessada no Youtube. Nesse registro, evolui com alguma dificuldade pela neve que lhe entrava o passo um sujeito todo encasacado, de botas e cachecol de lã, que acena conformado para a câmera que o flagrou. Descobrindo com certo pasmo quem é o sujeito por baixo de seus agasalhos, o navegador da internet que porventura o visualize não poderá deixar de notar a solidão que agora cerca o homem que – para dizê-lo ainda como Mandelbaum –, esteve um dia no centro nevrálgico do cinema francês[6]. Nesse rápido plano-sequência, o fundo atmosférico é não apenas glacial mas brumoso. Bonnard dizia que em Rolle o azul vira cinza, escreve Godard, numa carta datada de 1985 – do arquivo da correspondênca da época do filme Le Détective, tão voltado para a cidade de Paris –, comprazendo-se com o nevoeiro de seu interior natal[7].

    Evolui pela neve que lhe entrava o passo um sujeito todo encasacado.

    Esse caminhante solitário que marcha sobre a neve propôs-nos pensar, um dia, que o cinema é a arte do século XX, o substituto do romance realista à bout de souffle, porque os traços que ali se imprimem já não são mais da mão do pintor, como os pode preferir, em seu tempo, Baudelaire, que reputa a exatidão da fotografia obscena[8], mas são rastros da referencialidade, capazes de nos fazer ver o mundo como pela primeira vez. Insistir nessa mutação das artes é dogma fundador dos Cahiers, como veremos dizer Baecque, com a experiência de quem conhece não apenas todos os meandros da história da revista mas todos os meandros da vida de Godard (e de Truffaut).

    Coincidentemente, é a imagem de um homem que anda sobre a neve que ocorre a Roland Barthes evocar, para assinalar a diferença entre o significante verbal e o significante fílmico. Ele escreve: "No cinema, o significante em si está sempre presente, por natureza, seja qual for a retórica dos planos; trata-se, sem remissão, de uma continuidade de imagens; a película (de justo nome: é uma pele sem iância), prossegue, como uma fita tagarela: impossibilidade estatutária do fragmento, do haiku. Coerções representativas (análogas às rubricas obrigatórias da língua) obrigam a tudo receber: de um homem que anda sobre a neve, antes mesmo que ele signifique, tudo me é dado."[9]

    O acompanhamento dos fatos e o cotejo das ideias mostra que há muitas outras cumplicidades, por ora intocadas, entre estes dois contemporâneos que são ainda dois importantes intelectuais públicos do século XX e, certamente, dois dos mais instigantes e inquietantes deles. Tendo também estado no centro da vida intelectual francesa, pela mesma ocasião, Roland Barthes também peregrina, desde os anos 1970. Seu lugar de ancoragem também é o domínio provincial infantil, neste caso, a também antiga e portuária pequena cidade de Urt, no sudoeste francês, ao lado de sua Bayonne natal, para onde também volta ritualmente, enquanto que Paris também vai se tornando para ele um lugar de desolação. E isso também se acha devidamente registrado, principalmente nos muitos carnês de seu período triste, em que temos relances de cenas de suas movimentações solitárias e, mais que isso, de um desterro dentro de seus próprios domínios. Vejam-se estas duas anotações elegíacas de Incidentes: Voltei para casa sozinho. Tudo estava deserto nesse domingo de agosto, às onze horas da noite; Volto para casa tristemente, abobado, com enxaqueca, e continuo Dante[10]. A gravidade dessa introspecção prolonga-se na escritura, definida e vivida como solitária: Por mais refinado que seja o estilo, tem sempre algo de bruto: é uma forma sem destinação, é o produto de um impulso, não de uma intenção, é como uma dimensão vertical e solitária do pensamento. Suas referências estão no nível de uma biologia ou de um passado, não de uma História: é a coisa do escritor, seu esplendor e sua prisão, sua solidão[11].

    O protestantismo não seria estranho a esse intimismo nem às artes do contratempo que, nois dois casos, providencia.

    Uma adolescência protestante pode dar um certo gosto ou uma certa perversão da interioridade, da linguagem interior, aquela linguagem que o sujeito dirige incessantemente a si mesmo, confessava Barthes a Bernard-Henry Lévy, em 1977[12]. Vinte anos antes disso, já se descobria protestante lendo André Gide: Os homens de educação protestante se comprazem com o diário e a autobiografia, notava a propósito do diário monumental de Gide[13]. Acontecia-lhe então de associar-se, ainda, através de Gide, à grande interiorização de Montaigne. "No Journal de Gide, o leitor encontrará [...] confissões que fazem dele o homem por excelência, como o foi Montaigne[14]. Nascido de uma mãe que conserva a religião da Reforma", como formula seu biógrafo Louis-Jean Calvet[15], Barthes terá sido um desses homens[16].

    Dá-se o mesmo com Godard, que vem da mesma infância interiorana e religiosa de Barthes, como admite aqui: Nasci numa família antigamente muito protestante. Não me sinto de nenhuma confissão mas, quando se vai ao fundo das coisas, se é forçado a voltar à infância[17]. Também seu biógrafo fala-nos de seu protestantismo: A relação de Godard com a espiritualidade, mas também com o pudor, com o dinheiro, com a Suíça, com a natureza, com o isolamento e a retirada do mundo (seu deserto de Rolle), com o irrespeito e a iconoclastia, tudo isso é influenciado pela cultura e pela profunda identidade protestante de que a casa de Anthy é o centro do cerimonial[18]. Anthy-Sur-Léman é a região suíça, à beira do lago, em que os Monod, o rico e letrado ramo materno da família, fértil em intelectuais, pastores e teólogos, se radicaram. Teólogo, filósofo e amante das artes, de ativa participação na imprensa à época da Nouvelle Critique e da Nouvelle Vague, o pastor francês André Dumas debruçou-se sobre os caminhos da teologia protestante na produção godardiana pós-Nouvelle Vague, em artigo para os Cahiers, do ano de 1990. Ele põe aí em termos bíblicos o que nós pomos em termos estéticos. Em Prénom Carmem e Je vous salue, Marie, toma a banda sonora dissociativa de Godard como sinal e instrumento de seu pudor religioso, precisamente. Se a Carmem e a Maria de Godard são extremamente pudicas – pensa ele – é porque as palavras recobrem a sua nudez"[19].

    O conhecimento do homem pelo cinema, em que insistiria por toda a vida, tem tanta parte com esse protestantismo que ele vê o cinema como missionário. A coisa mais importante é conhecer o próximo. Antes de amá-lo, é preciso conhecê-lo. Acusam-me de fazer cinema como um franco-atirador. Mas é justamente por isso: eu parto em busca do conhecimento. Um missionário é, antes de tudo, um explorador, logo, um cineasta. [...] Um cineasta é também um missionário[20].

    Claro que não se é protestante da mesma forma no país basco francês, quando se nasceu numa classe de pequenos católicos, como Barthes descreve a sua procedência, e num cantão da Suíça calvinista, quando se cresceu no seio de uma classe abastada. Entretanto, Godard não apenas nasceu em Paris, onde seus pais estavam instalados em 1930 (e ele é de 1930), mas frequentou os Monod, que tinham residência em Paris, e cursou o liceu e a universidade na capital da França, fazendo ali experiências incomuns, inclusive furtando para sobreviver longe das asas da família[21]. É como o herdeiro extravagante que tudo fez para ser – na bela expressão de Baecque_ um deserdado simbólico[22] que participa do espírito dos mil golpes de Truffaut marginal e da gaucherie do Barthes que, no carnê Roland Barthes por Roland Barthes, exclama: "quem não sente quanto é natural na França ser católico, casado e bem diplomado?[23]

    Além de fazê-la desaguar nos diários, que se multiplicam nos últimos anos, a confidencialidade protestante dotou a obra e o ensino de Barthes de inaudito traço subjetivo, de que dão provas, em sua época atordoantes, livros como O prazer do texto, Roland Barthes por Roland Barthes e Fragmentos de um discurso amoroso, mas também um curso como A preparação do romance, que é uma história existencial da literatura francesa contada por um observador dos bastidores dessa mesma criação, reivindicadamente não isento. Do mesmo modo, dotou a obra de Godard de caráter autobiográfico, como verificam muitos godardianos, a começar por Baecque: Sua postura é sempre autobiográfica e essa postura afirma-se com a idade. De certa forma, ele conta sua vida em seus filmes, relatos e anedotas inclusos, aparece compondo neles uma figura de idiota revelador[24]. Tudo isso se reflete no cinema de Godard, assim, outro desses alter ego idiossincrásicos é a personagem Pierrot le Pierrot le fou, que, tão logo se põe em fuga da vida em sociedade, começa a escrever um diário, de que somos insistentemente convidados a ler os excertos, cravados na tela. Sua primeira anotação é: Comecei a escrever meu diário. Diante da natureza, que ser humano não experimenta a força de escrever? Ademais, quando o reverendo Dumas põe-se no encalço do protestantisno de Godard, está pronta a Introdução a uma verdadeira história do cinema (1980), livro que transcreve um programa de sete conferências feitas por Godard em Montreal, em 1978. Todas as falas dessa prestação canadense são em primeira pessoa, daí Godard chamá-las viagens. A cada viagem eu trazia um pouco de minha história e nela mergulhava, ao ritmo de dois de meus filmes por mês. Comentava tudo diretamente, diante de três ou quatro canadenses tão perdidos como eu nisso tudo, lemos no prefácio[25]. Trata-se de mais um carnê de notas íntimas. Beacque apresenta o livro como uma arqueologia do cinema que se confunde com uma autobiografia fílmica e com uma genealogia dos meios técnicos de representação[26]. O mesmo cunho pessoal seria impresso, mais tarde, à série em vídeo Histoire (s) du cinéma (1980-1998), que tornaremos a mencionar. Trata-se de um "Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard", desta vez assinado pelo próprio Godard.

    Diante de tantas e tais coincidências e afinidades, o que aqui se pretende é examinar um insuspeito diálogo entre esses dois contemporâneos que começam protagonizando dois importantes movimentos de reforma da crítica e seguem reeducando nosso olhar para o fotográfico e o cinematográfico, quando aceitam que o olho da lente das caixas pretas é capaz de ver longe ou, dito de outro modo, que a fotografia pode agarrar a vida ou agarrar-se à vida. A hipótese mais geral com que aqui se trabalha é a de que, por sob a capa tênue da diferença do crescente engajamento de Godard – que o põe na urgência de fazer politicamente filmes políticos, segundo o lema soixante-huitard que vibra na tela de Le vent d´est (1969)[27], e da crescente impassibilidade de Barthes – que lhe pede a distância do grau zero, isto é, mobiliza nele a paixão final do neutro, como desde sempre chama os discursos não persuasivos[28] –, insinua-se a homologia.

    Trata-se de mostrar que a crítica lhes deve ter-se libertado de seus papéis utilitários menores – quando jornalística, informar cada vez mais velozmente o homem cada vez mais veloz e comum, quando universitária, formar tratadistas cada vez mais munidos de parafernália técnica marxista aborrecida –, para recobrar seu antigo valor de arte. É como uma das musas que Godard prefere vê-la, ao dizer de Truffaut isto que poderíamos dizer dele mesmo: Truffaut era um crítico da linhagem dos grandes críticos de arte franceses, de Diderot a Malraux, uma gente que tinha estilo[29]. Aliás, essa volta à crítica de velha cepa mediada pela literatura é tão mais interessante quanto parece ser inseparável do movimento que estão fazendo, pela mesma ocasião, as próprias artes novecentistas, aí incluído o cinema, que os Cahiers passam a tomar como não menos que poesia, pintura, música: ganhar autoconsciência, responsabilizar-se por suas próprias formas, discutir-lhes os limites, chegar a si mesmas.

    Certamente, não se pode pretender tratar de Godard crítico-escritor sem referência à escola dos Cahiers e ao modelo de comentário inaugurado por André Bazin e continuado por François Truffaut – que chega aos Cahiers primeiro –, nem da revolução crítica de Barthes, sem referência às linguísticas gerais que inflexionam as humanidades, na França, desde os anos 1960 (fato que os Cahiers acompanham, aliás, convocando Barthes, Lévi-Strauss e Foucault a depor, como veremos). Mas é principalmente pelas mãos de Godard e de Barthes – parece-nos –, até porque os dois são menos homens de escola que de livre movimento, nesse sentido mais próximos da matriz dadaísta que da surrealista (mesmo que citem tanto os surrealistas), que a crítica mais se repropõe como arte plena e se constitui como campo autônomo, no meio século XX.

    Outra hipótese é que são igualmente instigados pelas imagens e sustentam a mesma dupla posição diante delas. De fato, ambos são eternos detratores do que é justo imagem, para lembrar a fórmula godardiana lançada em Le vent d´est, em princípio para denunciar que, no capitalismo em estágio espetacular, não há imagens acima da luta de classes, nem imagens que não não futilizem o mundo que selecionam: "ce n´est pas une image juste, c´est juste une image. Nesse sentido, são eternos ironizadores de um mundo contemporâneo doente de imagens. Toda a vida das sociedades em que reinam as condições modernas de produção anuncia-se como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação", assim principia A sociedade do espetáculo de Guy Débord[30]. Sem confiná-la à representação visual, até porque, metodologicamente, e até prova poética em contrário, está disposto a ver na linguagem verbal a mediadora fatal de todas as transações comunicativas, a primeira análise semiológica de Barthes, a dos mitos e seu tráfico de associações, joga com essa mesma suspeição.

    De fato, muito do mito barthesiano – entendido como quantum ou cota a mais de sentido que vem exceder o valor nominal de uma mensagem – vale para o que Godard chama "juste image", com isso assinalando idêntico excesso. Prova dessa sua primeira disposição é seu comprometimento cada vez maior com a questão do figurável, a exigência cada vez maior de suas imagens experimentais, que revisitam toda a nossa cultura visual[31]. No entanto, sendo menos ideólogos das artes de que cuidam e mais artistas apaixonados por formas, ambos são igualmente capazes de render-se ao apelo de certas imagens que, de repente, preenchem-se de poderes inquietantes, produzindo espanto e aparições. A foto me toca se eu a retiro do seu blá-blá-blá ordinário [...] e deixo o detalhe afluir à consciência afetiva[32], admite Barthes. Esse processo feito ao blá blá blá é antilogocêntrico avant la lettre e essa consciência é, no fundo, a morte. Assim, para ele, o repórter fotográfico que se contorce diante dos acontecimentos, no afã de "tornar a cena viva" está denegando o caráter sinistro de sua ação: Todos esses jovens fotógrafos que se agitam pelo mundo afora, devotando-se à captura da atualidade, não sabem que são os agentes da Morte[33]. Quanto a Godard, sabe bem de que verdadeira reportagem, no fundo, o cinema se encarrega: "O cinema é a única arte que, segundo a frase de Cocteau (em Orfeu, creio), filma a morte em ação (em francês: au travail). A pessoa que filmamos está envelhecendo e vai morrer. Filmamos, portanto, um momento da morte em ação. A pintura é imóvel, o cinema é interessante porque capta a vida e o lado mortal da vida"[34].

    Ambos concordam em ver nas imagens técnicas um objeto de novo tipo – um gene novo na família das imagens, viria a lançar A Câmara clara[35] – quer dizer, um pleno objeto antropológico. Essa nova visão desativa o horror sagrado que o século XIX se

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