Descartes entre o Possível e o Necessário: Sobre a Livre Criação das Verdades Eternas
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Descartes entre o Possível e o Necessário - Otávio Luiz Kajevski Junior
Descartes entre o possível
e o necessário
sobre a livre criação das verdades eternas
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2022 do autor
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.
Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Este livro é baseado na Tese de Doutorado 'Entre o possibilismo e o necessitarismo: livre criação das verdades eternas segundo Descartes' apresentada ao Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a qual contou com financiamento tanto da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) quanto da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ)
.
Editora e Livraria Appris Ltda.
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Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Otávio Luiz Kajevski Junior
Descartes entre o possível
e o necessário
sobre a livre criação das verdades eternas
Ao meu amigo Felipe Martynetz, que foi embora cedo demais.
AGRADECIMENTOS
À minha família, por estar ao meu lado mesmo quando distante; Em particular, à minha mãe, Jaci Luzia de Vargas; ao meu pai, Otávio Luiz Kajevski, à minha irmã; Samara Zelina Kajevski; e aos meus primos e bons interlocutores, Allan Melnik e Júlio Kajewski.
À minha orientadora de doutorado, Ethel Rocha, pelo incentivo dado à escolha do tema de pesquisa que serve de base a esta obra, bem como pelas incontáveis intervenções pontuais.
Ao Tad Schmaltz, de quem tive a coorientação em minha visita à Universidade de Michigan, pela hospitalidade e paciência na discussão de vários assuntos relativos à tese, bem como ao Louis Loeb, que, na mesma universidade, acolheu-me em suas aulas.
Ao Ulysses Pinheiro e ao Rodrigo Guerizoli, pelas inúmeras críticas feitas a versões anteriores deste texto, as quais foram fundamentais tanto do ponto de vista das considerações teóricas quanto do ponto de vista da motivação.
Aos professores Marcos Gleizer, Alice Bitencourt Haddad, Edgard Marques e Antonio Saturnino Braga, por gentilmente aceitarem participar da banca de defesa de doutorado.
Ao Marco Antonio Valentim, por me incentivar a dar continuidade à minha formação acadêmica, iniciada na Universidade Federal do Paraná.
Aos amigos da Filosofia, em especial ao Marcio Zabotti e à Juliana Martins, por contribuições pontuais valiosas; ao Max Costa, pelo grupo de estudos de lógica modal que mantivemos por algumas semanas; bem como ao Raphael Zdebsky, Fellipe Oliveira, Maria Cecília Barbosa, Louis Blanchet e Rejane Schneider.
Aos amigos de trabalho, em especial a André Souza, Luiz França, Celso Oliveira, Adriana Stefanello, Roseleine Nunes, Jehanne Schroder, Kátia Lamberti, Cezar Fonseca, Gustavo Rahal, Halisson Couto, José Victor de Medeiros, Reginaldo Araújo, Luciane Alves, Manoel da Silva, entre tantos outros.
Aos amigos de outros carnavais, Felipe Martynetz, Valdinéli Martins, Giuliano Gimenez, Tullio Sartini, Rodrigo Madeira, Iriene Borges, bem como à gatinha comunista
, Natália Redígolo, que me incluiu em seus planos quinquenais.
À CAPES, pela bolsa do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior.
À FAPERJ, pelo financiamento da pesquisa que deu origem a esta obra.
No céu também há uma hora melancólica.
Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas.
Por que fiz o mundo? Deus se pergunta
e se responde: Não sei.
(Carlos Drummond de Andrade)
Haverá talvez aqui pessoas que preferirão negar a existência de um Deus tão poderoso a acreditar que todas as outras coisas são incertas. Mas não lhes resistamos no momento e suponhamos, em favor delas, que tudo quanto aqui é dito de um Deus seja uma fábula. Todavia, de qualquer maneira que suponham ter eu chegado ao estado e ao ser que possuo, quer o atribuam a algum destino ou fatalidade, quer o refiram ao acaso, quer queiram que isto ocorra por uma contínua série e conexão das coisas, é certo que, já que falhar e enganar-se é uma espécie de imperfeição, quanto menos poderoso for o autor a que atribuírem minha origem tanto mais será provável que eu seja de tal modo imperfeito que me engane sempre.
(René Descartes)
PREFÁCIO
O ponto de partida do livro Descartes entre o possível e o necessário, de Otávio Luiz Kajevski Junior, é a tese sustentada por Descartes de que as verdades eternas são livremente criadas por Deus. Essa tese não aparece em nenhum livro de Descartes publicado, mas entre 1630 e 1649 (um ano antes de sua morte) está presente em sua correspondência (em oito cartas) e em suas respostas a duas das objeções feitas às Meditações Metafísicas. Além disso, aparece em L’entretien avec Burman, que consiste em notas de Frans Burman sobre sua conversa com Descartes, que data de 1648. A tese cartesiana não é apenas a de que tudo (inclusive as verdades eternas) depende de Deus, como sustenta a tradição escolástica, mas que tudo (inclusive as verdades eternas) depende da livre vontade de Deus, de tal modo que, prima facie, Deus poderia ter criado as coisas diferentemente. Em oposição às teses escolásticas, Descartes afirma que Deus é livre criador da existência (o que é assumido também pelos autores escolásticos) e das essências das coisas (o que caracteriza a originalidade de Descartes nesse contexto). As essências das coisas são livremente criadas por Deus e, nessa medida, porque são criadas, podem ser consideradas contingentes e, porque são essências, podem ser consideradas necessárias, isto é, verdades necessárias.
Com base em sua tese de doutorado, em que discute detalhadamente a doutrina cartesiana da livre criação das verdades eternas, Otávio, agora em seu livro, apresenta uma análise refinada e original da questão consequente a essa doutrina, a saber, se Descartes defende, como a tradição escolástica, que há mais de um mundo possível ou se, ao contrário, rompendo com a tradição, Descartes admite haver um único e necessário mundo. Nessa análise refinada que apresenta, Otávio discute em detalhes diversas leituras de consagrados intérpretes do pensamento de Descartes, autores como Frankfurt, Cunning, Plantinga e Curley, que se debruçaram sobre a questão. Essa discussão oferece, ao leitor, um amplo panorama do estado da questão, o que leva a um aprofundamento muito proveitoso. Além da discussão com autores, Otávio apresenta e discute possíveis objeções e expressa possíveis reações à tese e aos argumentos de Descartes, estabelecendo assim diálogo tanto com o leitor conhecedor do pensamento de Descartes quanto com o leitor ainda não familiarizado com as teses e o vocabulário cartesianos, diálogos marcados pela clareza e precisão da escrita. Ganha muito o leitor que acompanhar com atenção as objeções e reações apresentadas nesse diálogo.
Será que faz sentido falar em mundos possíveis? O mundo em que vivemos é o único possível? O mundo em que vivemos é necessariamente o único? Essas são algumas das questões discutidas no livro adotando uma perspectiva da História da Filosofia. A questão fio condutor de toda a análise de Otávio é o, ao menos aparente, embaraço entre admitir a livre criação das verdades eternas e, ao mesmo tempo, admitir a necessidade e a imutabilidade dessas verdades.
No decorrer dos capítulos, Otávio apresenta em detalhes a tese da livre criação das verdades eternas, discutindo, entre outras teses envolvidas, as da eternidade das verdades criadas e da imutabilidade dessas verdades livremente criadas, que, como ele mostra, parecem colidir com a tese da dependência das mesmas em relação a Deus. A discussão desse embaraço, juntamente a outras consequências da tese cartesiana da livre criação das verdades eternas, leva Otávio a concluir com uma interpretação original de que se segue delas a necessidade de se admitir que, para Descartes, Deus é contingência, e não tem natureza alguma: Deus é pura vontade.
É uma grande alegria apresentar o livro Descartes entre o possível e o necessário, uma versão revista da tese de doutorado do autor Otávio Luiz Kajevski Junior, de quem fui orientadora. Sem dúvida, é uma felicidade ver que a tese resultou no livro ora publicado, podendo circular para além do meio estritamente acadêmico. Com certeza, o livro alcançará um público amplo, o qual será cativado pelas questões discutidas e pelo estilo leve, claro e preciso do autor.
Ethel Menezes Rocha
Doutora em Filosofia pela Boston University (1991), com pós-doutorado na Yale University (2006/2007) e estágio sênior na University of Toronto (2013/2014).
Atualmente é professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
APRESENTAÇÃO
Descartes entre Eutífron e Münchhausen
Ser honesto é bom e agrada a Deus. Mas ser honesto é bom porque agrada a Deus ou agrada a Deus porque é bom? Pode-se ver aí uma variante de um dilema que devemos a Platão. Na sua pena — após as tergiversações do personagem que dá nome ao diálogo, Eutífron —, Sócrates questiona: Considera o seguinte: o que é pio é amado pelos deuses por ser pio, ou é pio porque é amado pelos deuses?
(PLATÃO, 2015, p. 137). O diálogo platônico termina em aporia, isto é, sem uma solução, sem uma saída: [...] não percebeste que nossa conversação, depois de uma volta completa, veio parar no ponto de partida?
(PLATÃO, 2015, p. 155).
É verdade que, em Platão, o dilema é basicamente moral. Sócrates e Eutífron concordam que os deuses não brigariam, como os homens não brigam, por questões cujo acesso epistêmico parece haver consenso: Se eu e tu discordássemos a respeito de números, sobre qual fosse o maior, semelhante divergência nos faria inimigos e viria a suscitar a cólera entre nós? Ou de preferência, recorreríamos ao cálculo [...]?
(PLATÃO, 2015, p. 129). Não obstante, a maior contribuição do diálogo sobre a piedade é estabelecer os termos do dilema. Transpondo-o para o século XVII, ele nos ajuda a entender a oposição entre René Descartes e o jesuíta Francisco Suarez, este seguindo de perto Duns Scotus. Podemos dizer que, para Descartes, dois mais dois é igual a quatro
é verdade porque é pensado por Deus; e para Suarez (como para Scotus), dois mais dois é igual a quatro
é pensado por Deus porque é verdade.
Com a extrapolação da moral (ou deontologia), que trata do que deve ser, para isso que podemos chamar de ontologia, que trata do que é, os medievais distinguem entre a vontade divina, que quer, cria, quiçá pune ou recompensa por um lado, e o intelecto divino, que contempla, observa, sabe por outro. Nesse sentido, o dilema de Eutífron desdobra-se em pelo menos duas versões: uma sobre se, e por que, algo é bom, e outra sobre se, e por que, algo é verdade. Ora, as respostas a essas questões são diferentes na medida em que o objeto de que tratam dependa da vontade ou do intelecto divino. Se Deus quer que sejamos honestos, e por isso ser honesto é bom, ele não quer, exatamente, que dois mais dois seja igual a quatro, antes o aceita com certa indiferença, assim como nós.
Na transição para a Modernidade, o que era um dilema por si só, já no antigo politeísmo grego, encontra-se agora com a noção monoteísta, cristã, de onipotência. Deus poderia fazer tudo aquilo que nós só podemos, quando muito, pensar. Ora, longe de se contentar com essa noção de onipotência, Descartes defende que Deus pode fazer inclusive o que nós não podemos sequer pensar. A onipotência, sendo divina, não está limitada pelo que é possível, ela é divina porque se estende até o impossível, isto é, a tudo aquilo que não podemos pensar, como que (1) dois mais dois não seja quatro, ou que (2) uma proposição e sua negação sejam ambas verdadeiras ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. O Deus cartesiano faz jus ao Deus do impossível de que fala a Bíblia, pois nada é impossível a Deus
(BÍBLIA, Lucas, 1, 37).
Por aí se vê que passamos do dilema a um paradoxo. Com efeito, mais do que implicar que (1’) dois mais dois poderia ser cinco, por exemplo, (2’) dizer que tudo depende de Deus seria uma afirmação aparentemente tão válida quanto a de que nem tudo depende de Deus, se assim Deus quisesse. Isso é em alguma medida exemplificado pelo paradoxo da pedra: se Deus é onipotente, então poderia criar uma pedra tão pesada que Ele não pudesse levantar? Paradoxo que, se tem — como veremos — uma solução tomista (FRANKFURT, 1964), é reconduzido ao status de paradoxo pela tese cartesiana em questão. Em termos mais diretos: como pode ser que Deus estabeleça a verdade de que Deus existe: uma verdade que, como qualquer outra, depende d’Ele? Isso faz lembrar o relato das aventuras do Barão de Münchhausen, história de ficção em que, após cair e afundar numa lagoa, o personagem narrador — reconhecidamente um mentiroso — puxa-se pelos próprios cabelos para fora da água (RASPE, 1866, p. 58).
Tudo se passa como se fôssemos levados a desistir de entender tais questões, atribuindo-as a uma espécie de misticismo, que aliás é a arte dominada por Eutífron. E às vezes, de fato, Descartes parece esquivar-se como o personagem de Platão. Por exemplo, sua afirmação a Mesland, segundo a qual se soubéssemos a imensidade de seu poder [de Deus], não consideraríamos estes pensamentos diante de nossas mentes...
(AT IV: 119), lembra a esquiva de Eutífron: Já te disse há pouco, Sócrates, que seria por demais cansativo aprenderes com minúcias tudo isso.
(PLATÃO, 2015, p. 151). Cabe a nós a insistência socrática: se não pelo interesse histórico de uma tese que intriga comentadores de Descartes, ao menos pelo desafio de perscrutar os limites da razão, ao supor para ela um fundamento fora dela, o que contrasta com o uso meramente instrumental que, normalmente, fazemos da razão.
O autor
NOTA SOBRE SIGLAS E TRADUÇÕES
As referências à obra de Descartes são feitas de acordo com a seguinte edição:
As citações são feitas, quando aí disponíveis, de acordo com:
DESCARTES, R. Discurso do método, Meditações, Objeções e respostas, As Paixões da Alma, Cartas. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Em particular, para as traduções do texto francês das Meditações).
DESCARTES, R. Meditações sobre filosofia primeira. Trad. Fausto Castilho. Edição bilíngue em latim e português. Campinas: Ed. UNICAMP, 2004. (Para eventuais comparações com o texto latino das Meditações).
DESCARTES, R. Princípios da Filosofia. Trad. Guido Antônio de Almeida (coord.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
DESCARTES, R. Regras para a orientação do espírito. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Quando não disponíveis nas edições supracitadas, as citações são feitas com base em:
Table of Contents
INTRODUÇÃO
1
VERDADES ETERNAS
1.1. Axiomas ou noções comuns
1.2. Naturezas verdadeiras e imutáveis
1.3. Escopo das verdades eternas
2
LIVRE CRIAÇÃO: CONSEQUÊNCIAS
2.1. Livre criação e eternidade
2.2. Livre criação e imutabilidade
2.3. Livre criação e necessidade
2.3.1. Possibilismo universal
2.3.2. Possibilismo limitado
2.3.3. Possibilismo moderado
2.3.4. Necessitarismo
3
LIVRE CRIAÇÃO: RAZÕES
3.1. Simplicidade divina
3.1.1. Teoria das distinções e simplicidade
3.1.2. Simplicidade e criação ex nihilo
3.2. Liberdade divina
3.2.1. Em torno do por que
3.2.2. Em torno do se
3.3. Consequências à luz das razões: resultados
3.3.1. Possibilismo limitado revisitado
3.3.2. Liberdade humana e predestinação
4
ESCOPO DA LIVRE CRIAÇÃO
4.1. Escopo restrito versus escopo irrestrito
4.2. Causa sui: causa eficiente ou causa formal?
5
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
Apêndice
Descartes entre Espinosa e Leibniz
INTRODUÇÃO
De 1630 a 1649, um ano antes da morte de Descartes, há evidência de que ele mantém uma tese que, em certos aspectos, é completamente nova à história da filosofia. Trata-se da tese cartesiana da livre criação das verdades eternas por Deus (doravante, apenas livre criação
). Tal tese é a