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Críticas Medievais à Causalidade: Al-Ghazali e Nicolau de Autrécourt
Críticas Medievais à Causalidade: Al-Ghazali e Nicolau de Autrécourt
Críticas Medievais à Causalidade: Al-Ghazali e Nicolau de Autrécourt
E-book340 páginas4 horas

Críticas Medievais à Causalidade: Al-Ghazali e Nicolau de Autrécourt

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Sobre este e-book

Nicolau de Autrécourt (ca. 1300-1369) foi um filósofo francês que ensinou na Universidade de Paris no século 14. Autor controverso, vítima de um processo inquisitorial estabelecido por uma comissão papal que durou cerca de seis anos - período no qual ficou preso nos calabouços papais sob como acusações de ateísmo, atomismo, ceticismo e heterodoxia - e resultou na perda de seus títulos acadêmicos e um exílio silencioso por motivos de disputas de poder, inveja, ciúmes e intrigas universitárias.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de ago. de 2021
ISBN9786525007793
Críticas Medievais à Causalidade: Al-Ghazali e Nicolau de Autrécourt

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    Críticas Medievais à Causalidade - Jeferson da Costa Valadares

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Para meus pais, Gilson Valadares e

    Marilza Valadares, ex toto corde.

    Para Rosalie Helena de Souza Pereira e Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento,

    por terem me apresentado à Idade Média.

    Agradecimentos

    Este livro é o resultado das minhas pesquisas durante o mestrado em Filosofia na Universidade Federal Fluminense (UFF), com período do estágio na Université de Paris 1 – Panthéon Sorbonne, entre 2012 e 2015. Durante todo o período de pesquisa, tive a oportunidade de estabelecer inúmeras relações de grande importância na minha formação intelectual e acadêmica, além de estabelecer boas e verdadeiras amizades.

    Por isso, em primeiro lugar, agradeço à Capes pelo financiamento desta pesquisa, mediado pela UFF.

    Em segundo lugar, agradeço ao Prof. Dr. Guilherme Wyllie, pela amizade e pela orientação sempre competente durante o mestrado.

    Em terceiro lugar, agradeço ao Prof. Dr. Christophe Grellard (École Pratique des Hautes Études – EPHE) pelo diálogo sobre Nicolau de Autrécourt e o convite para realizar um estágio de pesquisa na Université Paris 1 – Panthéon Sorbonne, no segundo semestre de 2013.

    Ao Prof. Dr. Jean-Baptiste Brenet (Université Paris 1), pelas aulas e pelas contribuições sobre al-Ghazālī e a História da Filosofia Árabe na Sorbonne.

    Ao Prof. Dr. Adriano Oliva, OP (LEM/CNRS e Commissio Leonina de Paris), pela acolhida na Bibliothèque du Saulchoir, em Paris, e ao Prof. Dr. Régis Morelon, OP (SPHERE/CNRS), pelo diálogo sobre astronomia árabe e al-Ghazālī.

    Ao Prof. Dr. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento (PUC-SP), pelo incentivo aos estudos medievais, que na minha vida começaram em 2006, antes mesmo da graduação.

    À Prof.ª Dr.ª Rosalie Helena de Souza Pereira (PUC-SP), pelo diálogo constante sobre o pensamento islâmico e pela enorme generosidade com este livro.

    Ao Prof. Dr. Hilton Japiassu (UFRJ), in memoriam, pela amizade e pelo incentivo.

    Ao Fr. Bruno Palma, OP, pela amizade e revisão cuidadosa de alguns dos meus textos e pelo exemplo de vida e trabalho intelectuais.

    Ao Fr. Marcello Neves, OP, pela participação na minha defesa.

    Ao Prof. Dr. Alexander Fidora (UAB/Icrea), pelo fornecimento de material e pela acolhida em minha passagem pela Universitat Autònoma de Barcelona, e à Prof.ª Dr.ª Paloma Pérez Ilzarbe (Unav), pelo diálogo sobre Jean Buridan e acolhida na breve passagem na Universidad de Navarra.

    Ao Prof. Dr. Dominik Perler (Humboldt-Universität zu Berlin), pelo diálogo e pelas indicações sobre a epistemologia autrecuriana e as teorias da causalidade na Idade Média.

    Ao Prof. Dr. Claude Panaccio (Université du Québec à Montréal-UQÀM), pelo envio de material e pelo diálogo sobre o método de reconstrução em filosofia.

    Ao Prof. Dr. Sergio Salles (UCP), por ter lido e sugerido mudanças no meu trabalho.

    Ao Prof. Dr. Danilo Marcondes (UFF/PUC-Rio), pelas aulas sobre Ceticismo durante o mestrado.

    Ao Prof. Dr. Celso Martins Azar Filho (UFF), pela amizade e orientação durante o meu doutoramento na UFRJ e na ENS-Lyon, com quem aprendi, além de outras, valiosas lições de organização de livro e publicação.

    Ao Prof. Dr. Gustavo Fernández Walker (University of Gothenburg, Suécia), pela generosidade em aceitar ler e apresentar o meu livro.

    Ao Dr. Gustavo B. Vilhena de Paiva (USP), pelo envio de cópia do Exigit ordo da Biblioteca Florestan Fernandes.

    Aos amigos atomistas Rhamon Nunes e Mauro Araújo, pelos tempos de UFF e pelas boas partidas de bilhar (sinuca), quando surgiu a observação da causalidade!

    À Amanda Gomes Lanzillotta, pelo amor, pela carinhosa convivência e pela chegada do nosso filho, Inácio Lanzillotta Valadares!

    Por fim, ao meu irmão Matheus C. Valadares e aos meus pais, Gilson R. Valadares e Marilza C. Valadares, pela amizade e pelo apoio incondicionais.

    O conteúdo do princípio de causalidade é constituído

    manifestamente pela afirmação de que tudo no universo

    acontece segundo a lei. É uma e mesma coisa afirmar

    a validade do princípio da causalidade ou da

    existência do determinismo.

    [Moritz Schlick, A causalidade na física atual, §2]

    Há algumas causas que produzem um certo efeito de maneira

    inteiramente uniforme e constante, sem que jamais se tenha encontrado

    nenhum exemplo de falha ou irregularidade em sua operação. [...]

    mas há outras causas que se têm mostrado irregulares e

    incertas: o ruibarbaro nem sempre funcionou como purgante

    ou ópio como um soporífero para todos os que ingeriram esses medicamentos.

    [David Hume, Uma investigação sobre o

    Entendimento humano, Sec. VII, §4]

    [...] Na mesma proporção em que a credulidade, enquanto cabedal

    da mente, é mais tranquila que a curiosidade, a sabedoria

    que discorre sobre a superfície é de longe preferível

    àquela filosofia pretensa que entra na profundidade

    das coisas e depois volta gravemente com

    informações e descobertas de que

    por dentro elas não servem para nada.

    [Jonathan Swift, Uma história de um tonel, Sec. IX]

    Suspirava atiçando o fogo com o cabo da quenga de coco.

    Deus não permitiria que sucedesse tal desgraça.

    [Graciliano Ramos, Vidas secas]

    – Dieu tout-puissant a fait les planètes, et

    nous, nous faisons les plats nets.

    [François Rabelais, Gargantua, Chap. 5]

    Prefácio

    Não parece exagerado sugerir que a primeira aproximação à figura e à obra de Nicolau de Autrécourt está marcada pela curiosidade ou surpresa. E isso, tanto a nível individual quanto coletivo. No primeiro caso, o leitor curioso, mas casual, sente um leve abalo em suas certezas ao ler sobre a existência de um pensador catalogado como cético em uma época geralmente considerada dogmática; de um feroz antiaristotélico condenado por uma comissão papal (uma instituição medieval mais inclinada a censurar os seguidores de Aristóteles do que seus críticos); finalmente, de um filósofo escolástico defensor do atomismo. Em nível coletivo, basta observar que o primeiro artigo dedicado a Autrécourt em uma publicação científica, no início do século XX, apresenta-o a partir do título como um Hume medieval, enquanto seu autor anuncia que está prestes a oferecer um capítulo esquecido na história do pensamento.¹

    Pouco a pouco, porém, cada uma das facetas que foram apresentadas inicialmente como anomalias começaram a adquirir um perfil mais familiar: graças aos esforços de pesquisadores como Z. Kaluza, Ch. Grellard, J.M.M.H. Thijssen, D. Perler e W. Courtenay, para citar os principais responsáveis por essa segunda etapa dos estudos autrecurianos,² as arestas céticas foram suavizadas, o seguidor aparente do nominalismo ockhamista revelou-se um realista (que nunca visitou a corte de Luís da Baviera, como se acreditava), e o conhecimento mais completo que temos hoje das discussões tardo-medievais em torno do atomismo fizeram que Nicolau de Autrécourt mostrasse um perfil que é menos o de um enfant terrible e mais o de um mestre universitário do século XIV: original, certamente, mas não necessariamente uma rara avis no colorido bestiário da universidade medieval.

    Este livro, de certa forma, consolida então uma terceira etapa, mais madura, na assimilação das ideias desse notável intelectual do século XIV. Superada a surpresa inicial da descoberta, esclarecido os mal-entendidos sobre as principais linhas de sua filosofia, é hora de lidar com a abordagem sistemática de suas principais ideias. Para povoar, por assim dizer, a prateleira superior de uma biblioteca imaginária composta por todas as páginas escritas sobre o filósofo loreno. Uma etapa que é, aliás, um fenômeno relativamente recente: pode-se dizer que essa nova prateleira da biblioteca foi inaugurada por Christophe Grellard em 2005, com sua análise dos fundamentos da epistemologia de Nicolau de Autrécourt.³ Assim, Jeferson contribui agora com o segundo volume dessa terceira etapa, abordando em seu caso um conceito central que funciona nos textos de Nicolau de Autrécourt, como o que em sueco é chamado de fio vermelho (röd tråd) que dá um sentido coeso a toda uma história, a toda uma vida. E, como Ch. Grellard no caso da epistemologia, Jeferson também teve que empreender, partindo da noção de causalidade, uma delicada tarefa de reconstrução de um pensamento conservado de forma dispersa e fragmentada.

    Essa dispersão, por outro lado, não é uma característica do autor ou de seu pensamento, mas é um efeito direto da condenação pronunciada em 1346 pela comissão papal e tornada efetiva em Paris um ano depois. É verdade que, ao contrário de outras famosas condenações de pensadores em séculos posteriores, Autrécourt não pagou pela censura com sua vida. Não sabemos muito sobre seus últimos vinte anos em Metz, embora saibamos que ele não os passou completando o tratado inacabado Exigit ordo. A rigor, ele não tinha motivos para fazê-lo: o pensamento de Nicolau de Autrécourt, como o da maioria dos autores escolásticos, está tão intimamente ligado às práticas institucionais da universidade que a exclusão daquela esfera pode não ser equivalente à morte, mas ao fechamento da atividade intelectual, já que o acesso ao universo de disputa que a constituía foi cortado.

    E como Jeferson aponta no início deste livro, a metodologia de Nicolau de Autrécourt é eminentemente dialética, no sentido de que esse termo foi dado nas leituras medievais dos Tópicos de Aristóteles. Longe da imagem moderna do filósofo que medita na solidão de seu estudo, a prática medieval da filosofia (nisto, como em tantas coisas, herdada das tradições da Antiguidade) tomou forma em espaços abertos, em diálogo e discussão entre pares que ocupam posições opostas com argumentos com maior ou menor grau de probabilidade.⁴ Na medida em que a própria noção de causalidade é, para Nicolau de Autrécourt, o resultado de uma operação dialética – e, portanto, provável – a escolha desse conceito como uma porta de entrada para seu pensamento é mais do que justificada.

    Uma consideração semelhante se aplica ao capítulo dedicado à causalidade divina e à influência do pensamento árabe⁵ em Autrécourt, em particular por meio da figura de Al-Ghazālī. Assim, nesse capítulo e desde o início da pesquisa, dois traços são evidentes que fazem de Nicolau um representante completo da escolástica medieval: como em todos os seus colegas universitários, a influência do pensamento árabe é inescapável. Mas, além disso – embora aqui o panorama universitário seja mais variado⁶ –, não se deve esquecer que o horizonte intelectual de Nicolau de Autrécourt contemplava uma carreira como teólogo que foi abruptamente cortada pela condenação, deixando-nos apenas alguns testemunhos.

    Outro acerto do livro é mostrar, por meio de suas páginas centrais, que crítica e teoria não se excluem; que é possível ser tenaz em atacar as posições dos adversários (mesmo quando eles têm a estatura de Aristóteles) e nem por isso renunciar à elaboração de uma doutrina alternativa para substituir aquela que foi total ou parcialmente derrubada. Portanto, Jeferson não aceita o rótulo de antiaristotélico que geralmente é aplicado a Nicolau de Autrécourt.⁷ É também por isso que a busca de um pensamento sistemático não só é possível, mas até mesmo desejável. Como Aristóteles aponta no início dos Tópicos, a dialética ensina não apenas a atacar a posição do adversário, mas também a cuidar da própria para não afirmar nada que seja contrário a ela.⁸

    E, em certo sentido, o contexto dialético no qual o próprio Nicolau inscreve sua obra – e que Jeferson apropriadamente chama de quadro probabilista – nada mais é do que a implementação da disputa dialética como descrita nos Tópicos de Aristóteles. Com a particularidade de, nessa ocasião, os participantes nessa disputa, a séculos de distância, serem os próprios Aristóteles e Nicolau de Autrécourt, cada um oferecendo seu arsenal de prováveis argumentos diante dos olhos vigilantes de nós, seus leitores.

    Não queria concluir esta breve apresentação sem manifestar a importância da tradução incluída no final do volume. Afinal, esse universo medieval que fascina a todos nós que dedicamos tempo e esforço ao seu estudo, nada mais é que o resultado de uma fenomenal tarefa de tradução de fontes e a elaboração de uma biblioteca comum para o desenvolvimento do conhecimento. Nós que somos provenientes de universidades latino-americanas sabemos o quanto é valioso ter, nessas etapas formativas, uma bibliografia em nosso próprio idioma – permitam-me aqui considerar dessa forma o português brasileiro e a variante rio-platense do espanhol que cultivamos na Argentina. Por outro lado, a tradução de um texto, e em particular de uma obra filosófica, concede um tratamento e uma familiaridade com seus conceitos que não podem deixar de resultar em um conhecimento mais completo do pensamento do autor. Este livro é um magnífico exemplo disso.

    Gotemburgo, dezembro de 2020.

    Gustavo Fernández Walker (FLoV, Göteborgs Universitet)

    Notas às traduções

    Para elaborar este livro, utilizei diferentes versões das obras de Nicolau de Autrécourt e de al-Ghazālī. O uso dessas diferentes versões está organizado na forma que se segue, de acordo com os quatro capítulos.

    No Capítulo 1, adotei a versão arabo-inglesa de Michael Marmura da Incoerência dos filósofos. Minha leitura e tradução dos excertos tomaram como base a versão inglesa oferecida por Michael Marmura: AL-GHAZÂLÎ, M. E. M. Tahâfut al-Falâsifah. (The Incoherence of the philosophers). A parallel English-Arabic text translated, introduced, and annotated by Michael E. Marmura. Utah: Provo, 1997.

    No Capítulo 2, servi-me da versão latino-francesa de Christophe Grellard das Correspondências e artigos condenados de Nicolau de Autrécourt. Minha leitura e tradução dos excertos tomaram como base um cotejamento do latim com o francês, sendo na maioria dos casos traduzidos diretamente da versão francesa estabelecida por Grellard: AUTRÉCOURT, Nicolas. Correspondance. Articles condamnés. Paris : Vrin, 2001. (Collection Sic et Non).

    Nos Capítulos 3 e 4, escolhi a versão latino-italiana de Antonella Muso e a versão crítica original latina de O’Donnell, do Tractatus Exigit ordo executionis. Minha leitura e tradução dos excertos do Exigit ordo procederam tomando como base o texto latino em cotejo com a versão italiana elaborada por Antonella Muso e da versão castelhana de Gustavo Walker. As versões são as seguintes: AUTRECOURT, N. Exigit ordo executionis et Quaestio Utrum visio creature rationalis beatificabilis per Verbum possit intendi naturaliter. In: O’DONNELL, J. R. Nicholas of Autrecourt. Mediaeval Studies, [s.l.], v. 1, p. 179-280, 1939. Especialmente para o Capítulo 4, traduzi a partir de AUTRECOURT, N. Il Trattato. Firenze: Edizioni ETS, 2009.

    Lista de abreviações

    Sumário

    Introdução

    1

    Teorias medievais da causalidade 39

    1.1. Causalidade natural 41

    1.2. Causalidade divina 46

    1.2.1. O ocasionalismo islâmico medieval 48

    1.2.2. Al-Ghazālī 50

    1.2.3. O argumento da causalidade em al-Ghazālī 53

    2

    A crítica epistemológica à causalidade 69

    2.1. O fundacionalismo epistêmico 71

    2.1.1. O Primeiro Princípio 73

    2.2. A evidência 84

    2.2.1. A certeza da evidência 88

    2.3. Inevidência da causalidade 90

    2.3.1. Crítica ao princípio de causalidade 91

    2.3.2. A indução: as opiniões de Ian Hacking e o Exigit ordo de Autrécourt 98

    2.3.3. Acidentes e substância 106

    3

    A teoria atomista da causalidade 117

    3.1 O atomismo 119

    3.2. O princípio de conveniência 131

    3.3. As duas regras da causalidade 138

    3.3.1. R1: uma única causa não pode ter efeitos diversos 138

    3.3.2. R2: um único efeito é produzido por uma única causa 139

    3.4. A lei da causalidade 140

    3.5. A lei de efetuação 151

    3.5.1. Efetuação 1: a causa do fogo 153

    3.5.2. Efetuação 2: a causa da alma humana 157

    3.5.3. Efetuação 3: a causa dos atos do conhecimento 159

    4

    Tradução do último capítulo do Tractatus

    Exigit ordo 165

    5

    Conclusão 189

    6

    Referências 201

    Index de nomes 215

    Introdução

    I.

    Nicolau de Autrécourt⁹ foi um personagem singular no pensamento filosófico do século XIV em Paris. Sua importância na História da Filosofia¹⁰ tem sido resgatada basicamente pelas pesquisas no campo da epistemologia, filosofia da linguagem (semântica), história da lógica escolástica, ceticismo na Idade Média, atomismo medieval e história da ciência. Quanto à epistemologia e à história da ciência, pode-se destacar o tema da causalidade, o qual, aliás, é um dos objetos de análise deste livro.

    A área de concentração de seu pensamento é, sem dúvida, o campo da epistemologia. Seus trabalhos também versam sobre áreas como filosofia da natureza, ontologia, política e ética. Seus escritos (comentários) sobre política foram perdidos.

    Quanto a suas reflexões sobre a ética¹¹, há muito o que ser descoberto e analisado, sobretudo no campo de uma moral laica, na qual o autor pode ser considerado como sendo um dos precursores medievais do assunto. No campo da teologia, ao que tudo indica, sua atenção foi bastante secundária, deixando apenas um pequeno escrito chamado Quaestio, que trata da visão beatífica.

    Segundo Gustavo Walker – quem dedicou interessantes estudos sobre esse texto –, a Quaestio de intensione visionis trata-se de um texto que foi transmitido em duas versões distintas. Seus manuscritos sobreviveram na Bibliothèque Nationale de France, sendo habitualmente denominados de A e B. O manuscrito (A), Utrum visio creature rationalis beatificabilis per Verbum possit intendi naturaliter, tem caráter teológico, conforme salientei anteriormente, e o manuscrito (B), Utrum visio alicuius rei naturalis possit naturaliter intendi, é escrito do ponto de vista natural.¹²

    Nicolau nasceu em Autrécourt, diocese de Verdun, França, aproximadamente em 1300 e morreu em 1368. Estudou na Universidade de Paris e foi membro do colégio da Sorbone entre os anos 1320 e 1327. Sua formação universitária é típica de um estudante medieval, com a diferença de também ter realizado estudos jurídicos.

    Sua formação está organizada de forma tríptica: é mestre em artes (Magister in artibus) e bacharel e licenciado em teologia e em direito (baccalarius et licenciatus in theologia et in legibus). Em 4 de março de 1338, recebeu uma prebenda e tornou-se deão do Cabido dos cônegos da Catedral de Metz em 1350.

    Autrécourt sofreu um processo inquisitorial que durou pelo menos seis anos. Em 21 de novembro de 1340, o Papa Bento XII o convocou à Avignon por intermédio do bispo de Paris para responder a respeito de seus ensinamentos. Bento XII, entretanto, faleceu em 25 de abril de 1342, e seu sucessor foi Clemente VI, eleito em 19 de maio de 1342, quem assumiu e retomou o processo.

    Autrécourt foi condenado de fato em 1346 e, em 1347, abjurou e viu suas obras queimadas publicamente. Parte delas, no entanto, estão conservadas, como partes de sua correspondência com o franciscano Bernardo de Arezzo e Gilles de Van Faeno; um Tratado útil, chamado de Exigit ordo; e alguns fragmentos de cartas e artigos condenados a Quaestio. Ao todo, há quatro cartas preservadas.

    Segundo Paul Vignaux¹³, a análise do documento que expõe as informações sobre os escritos de Autrécourt é o Chartularium Universitatis Parisiensis de 1891, que apresenta quatro tópicos:

    Uma prima cedula, que a Discussio chama devido ao seu incipit, cedula "Ve michi", endereçada ao Papa Clemente VI. Nesse documento, Autrécourt declara-se pronto para reprovar 32 proposições, da quais 27 são expressamente tiradas das cartas escritas ao franciscano Bernardo de Arezzo.

    No próximo texto, alia cedula, Autrécourt explica, a pedido dos teólogos, qual foi o motivo que o inspirou em suas cartas contra Bernardo de Arezzo.

    Na Discussio e na reprobatio, o Cardeal Guilherme Curti, a quem o caso foi confiado, toma a palavra; a Discussio recorda a cedulaVe michi e nos traz dois grupos de proposições confessadas por Autrécourt, seguidas de 19 artigos, quorum aliquos simpliciter, et aliquos sub forma qua ponuntur se dixisse negavit, cuja enumeração é a seguinte: omnes predicti articuli extracti fuerint de libelo qui incipit: Exigit ordo (1330)etc.; em seguida, secuntur articuli missi de Parisius, ao todo, traz 10 artigos.

    O fim do documento é preenchido pela reprobatio errorum;os escritos de Nicolau de Autrécourt foram queimados publicamente em Paris, em 1347. Em decorrência desse rígido processo inquisitorial, ele foi destituído de seus títulos, sobretudo o de mestre em artes, e declarado inapto ao ensino da teologia. Sua carreira acadêmica é bruscamente interrompida. Autrécourt desaparece da vida universitária parisiense.

    Quanto a sua obra, as referências são a Discussio e a reprobatio errorum, as quais de fato nos atestam a atividade doutrinal de Autrécourt, a saber: professor na Faculdade de Artes; comentador das Sentenças de Pedro Lombardo, ao menos do livro I; remetente de nove cartas (da quais conservaram-se apenas quatro) contra Bernardo de Arezzo, teólogo da Ordem dos Frades Menores; um tratado chamado Exigit ordo executionis, sendo seu título completo Incipit tractatus utilis magistri Nicholai de Ultricuria ad videndum an sermones peripateticorum fuerint demonstrativi (Tratado útil para ver se os discursos dos peripatéticos são de fato demonstráveis); um comentário sobre a Política de Aristóteles; e questões sobre o justo e o injusto. Quanto aos sermões e às disputas, as informações são imprecisas e não se sabe com certeza se ele deixou de fato algum escrito e/ou se eles foram preservados.

    Após ter realizado uma apresentação geral do perfil biográfico de Nicolau de Autrécourt, cumpre a mim apresentar os objetivos deste livro.

    II.

    Este livro tem como principal objeto o tema da causalidade de acordo com Nicolau de Autrécourt. No entanto, esse tema não é abordado de maneira sistemática na obra do autor. Partindo dessa não sistematicidade no pensamento do mestre parisiense, tentei reconstruir sua concepção de causalidade apresentando-a como uma teoria da causalidade, concebida aqui como um conjunto de regras e princípios que regulam a relação que há entre causa e efeito. Essa abordagem, por sua vez, constitui-se em uma estratégia ad hoc, tendo como base os seus pressupostos epistemológicos.

    Ao reconstruir a concepção autrecuriana da causalidade, é possível inferir que se trata de uma doutrina bastante refinada, comprometida em constituir uma ontologia, atuando como mecanismo explicativo sobre a hipótese autrecuriana da eternidade das coisas e a eternidade do universo, como a ordem pela qual os entes se constituem (seu surgimento, sua produção e seu desaparecimento).

    A princípio, a causalidade estaria relacionada com o comportamento ontológico dos entes sujeitos ao aparecimento e ao desaparecimento, o que implica mostrar, por exemplo, que sua concepção da causalidade é atomista, claramente mecanicista e se subscreve no quadro de uma epistemologia fundacionalista, ao mesmo tempo que possui relação direta com a justificação da ordem

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