Morrer De Velho
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Morrer De Velho - Ricardo Teixeira
Morrer de Velho
Romance
Ricardo Teixeira
image.pngTítulo: Morrer de Velho
Autor: Ricardo Teixeira
Capa: Nuno Henriques/Monstro Criativo
® Todos os direitos reservados ao autor
Contatos: ricardo.teixeira@beasii.com
Prefácio do autor
Este é um romance sobre morte! E sobre velhos. E sobre a morte de velhos. E velhos que afinal não estão assim tão velhos e que não querem morrer. Que me perdoem os mais velhos, por usar a palavra velho
nesta estória. É difícil encontrar uma palavra que exprima sábio, experiente, vivido e idoso - não gosto desta palavra - em uma única expressão. Pensei muito sobre usar a palavra velho
, afinal velhos são os trapos, é o que dizem por aí, e eu não queria usar a palavra com essa conotação. Mas este romance é também sobre decisões difíceis que têm de ser tomadas. Poucas palavras são tão poderosas e tão claras no que eu queria dizer, como a palavra velho
. A decisão estava tomada. Não só usaria a palavra no livro, como faria questão de usá-la também no título. Este livro, poderia chamar-se certamente Este país não é para velhos
. Faria todo o sentido. Mas não podia, já existe uma obra assim, uma grande obra, diga-se de passagem. E apesar de uma história não ter nada a ver com a outra, daria um bom título para ambas. Contudo, acho que Morrer de Velho
também lhe assentou bem. Esta é uma estória de personagens sem nome. Dizem que os mortos não têm nome. Este é um romance sobre morte! E sobre velhos. E sobre a morte de velhos. E velhos que afinal não estão assim tão velhos e não querem morrer. E sobre decisões difíceis. Sobre decisões que influenciam grandemente a vida dos outros e a nossa. É um livro que nos faz refletir sobre a morte, e sobre a velhice, afinal duas coisas completamente inevitáveis para cada um de nós, mais tarde ou mais cedo, mais novos ou mais velhos. Este é um romance que certamente o vai fazer pensar, apenas isso!!!
Abraço,
Ricardo Teixeira
Narrador 1
O relógio marca uma hora e vinte e três minutos. Um, dois, três, tal e qual como se estivesse a contar, os números marcados no relógio digital que projeta as horas no teto branco da sala. Fico a olhar para o teto durante alguns segundos até que as horas avançam vagarosas a uma e vinte e quatro e o momento não tem já toda aquela magia de há uns segundos atrás. Desvio as minhas atenções para a televisão ligada em silêncio, o item sem som
a aparecer no canto inferior esquerdo do ecrã LED de marca japonesa, a publicidade a um carro alemão que percorre sozinho as curvas e contracurvas de uma montanha bem alcatroada, sem nunca perder o controlo. Prefiro sempre os anúncios em que os carros surgem no meio de outros carros, em ambientes mais realistas, as pessoas querem ver qual o comportamento do seu automóvel no meio dos outros, no seu habitat natural, não no meio de uma montanha vazia de carros, pessoas e ideias. Sou publicitário, e na maioria do tempo sou publicitário de bancada, invento escalas de um a cinco ou de um a dez para avaliar as propagandas dos outros, passo o tempo a auto-avaliar a minha capacidade de fazer melhor, a pensar no que mudava e no que acho que está ótimo e que não me importava nada de ter sido eu a projetar. Vejo mais dois ou três anúncios e canso-me das minhas próprias avaliações, mudo de canal para ver se no silêncio descubro algo que me apele aos sentidos visuais. Paro o zapping num programa legendado de um canal da tv por cabo, em que uma senhora de idade avançada, na casa dos seus sessenta anos, cabelos brancos e óculos a dar-lhe um ar de professora primária, parece estar a ensinar algo a alguém que ligou para o programa. Acompanho o raciocínio das legendas e compreendo que a senhora está a explicar que colocar um piercing nas zonas genitais masculinas pode trazer algumas contrariedades e é mesmo preciso ter imenso cuidado para que não se corram riscos de infeções e de rasgar a pele com a prática de sexo mais vigoroso. A senhora aconselha que estes fatores sejam tomados em conta quando o senhor do outro lado do telefone escolher o tipo de piercing que quer usar no seu órgão sexual. Deixo a senhora a falar e a responder aos seus telefonemas de sábado à noite e vou até à cozinha procurar algo para beber ou comer, sendo que estou um pouco indeciso se tenho fome ou se tenho sede. Levo o gargalo do garrafão de água à boca enquanto o seguro com as duas mãos e bastam dois goles para compreender que não é sede que tenho. Pelo menos, de água. Vou à procura de uma cerveja. Encontro. Abro um frasco de azeitonas verdes, médias , pelo menos na informação do rótulo. A mim parecem-me grandes. Regresso à sala de estar. Enquanto divido as atenções entre a cerveja, as azeitonas e os caroços destas últimas, vou emprestando um olho a um programa de conteúdo humorístico que passa num canal temático, ao qual assisto sem nunca me render à tentação do som. No meio daquilo, tento imaginar o discurso, os diálogos e as piadas que ocorrem. Arranjo texto para duas ou três piadas engraçadas e escrevo meia dúzia de gatafunhos num bloco de papel só para não me esquecer das principais ideias, posso sempre desenvolver mais tarde e enviar os textos para uma produtora de programas deste tipo, ou fazer uns vídeos caseiros com estas piadas, quem sabe?! No meio dos apontamentos, surge uma ideia para um anúncio de um carro. Começo a escrever a ideia para não me esquecer, numa espécie de guião para curta-metragem. Um carro a andar sozinho no meio de uma cidade normalmente lotada de pessoas e carros, o condutor a respeitar os sinais de trânsito, a aproveitar o conforto dos bancos de pele e a gozar o leitor de áudio do automóvel. Parado num sinal vermelho, o sinal passa a verde e o condutor mantém-se intacto e tranquilo a ouvir a sua música por mais uns segundos. No instante seguinte ouve-se um estrondoso buzinão e a imagem fora do carro transformou-se numa cidade lotada de carros, pessoas e barulho. O condutor, olhando o espelho retrovisor faz sinal a pedir desculpa aos condutores que estão parados atrás de si e dá ordem de marcha ao automóvel. A imagem volta a aparecer com o veículo a percorrer sozinho e tranquilo a cidade segundos antes sobrepovoada e barulhenta. O slogan final será certamente no meio dos outros, você vai sentir-se único
. Sinto de imediato aquela sensação fantástica de quando achamos que estamos a fazer algo inteligente e original. Penso que podia apresentar a ideia a uma marca de automóveis, através da agência de comunicação onde trabalho, mas fico sempre com a sensação de que não me iriam ligar nenhuma, haviam de me pedir para arranjar o local ideal para filmar a ideia que um outro qualquer criativo inventaria em cima da minha, e passariam uns oito a dez meses até aparecer um anúncio muito idêntico na televisão, através de uma outra agência, numa outra marca de automóveis, e a mesma questão de sempre a atormentar-me: será somente coincidência? Tenho sempre alguma dificuldade em levar as minhas ideias e os meus projetos até ao fim, mas a verdade é que essas ideias e esses projetos parecem arranjar sempre forma de se manifestar por outros meios, noutras dimensões da teia do espaço e do tempo, e eu arranjo sempre forma de reconhecê-las como minhas ideias e meus projetos e de lhes atribuir o título de puras coincidências. Olho para o teto e as luzes vermelhas marcam duas horas e dez minutos. Dois, um, zero, tal e qual como se estivesse a contar, de uma forma decrescente, para o final de ano ou para outro acontecimento importante. Conto em voz alta para me ouvir a mim mesmo no meio de tanto silêncio, dois, um, zero!!! E coincidência das coincidências, todas as luzes se apagam quando eu chego ao zero, a televisão está negra, a sala está escura e até no curioso espreitar da janela consigo perceber uma imensa cidade às escuras. O apagão é geral. Não vou esperar que a energia volte. Vou aproveitar para me deitar e dormir, já que parece não haver muito mais ideias de como fazer passar o tempo… Lá fora, o silêncio e a escuridão são imensos. Vou-me deitar e imaginar que o mundo acabou! O mundo acabou...
Narrador 2
Existem tantos mundos no mundo. Quando um acaba, por certo outro começa. Os fins são tão fundamentais quanto os inícios. Todos os dias vejo pessoas que não aceitam os fins, como se de aberrações se tratassem. Rejeitam a morte de entes queridos, arrastam relações de falsos carinhos e abraços e de beijos sem sentimento algum, lutam contra o abandono de um projeto que não lhes traz nada de novo ou seguram a vida de alguém que nada de novo trará ao mundo, à sociedade ou a si mesmo. São pessoas que preferem suportar forçosamente os meios a aceitarem um fim. Mal nascemos, começamos a morrer, e mesmo assim não aceitamos que assim seja. Hoje é o dia dos meus setenta anos e estou certo de uma coisa, não pagarei para viver. Tinha já cinquenta e cinco anos, quando há quinze anos atrás fiz a proposta mais polémica que alguma vez um governo teve de assumir. Não sendo de todo uma ideia minha, tive de a assumir como tal, ou não fosse eu o comandante da tripulação. Três anos depois, o primeiro-ministro que me substituiu não assumiu a sua promessa de acabar com o projeto 70, porque o fim da segurança social não o permitiria, não haveria mesmo outra forma de tornar esta sociedade funcional relativamente à economia que possui, resultado da grande crise económica que abalou os países mais desenvolvidos do mundo, naquela época.. Sou julgado nas ruas como o mau da fita e hoje milhares de pessoas festejam nas ruas do país por eu ter chegado finalmente aos setenta anos, mesmo que não me reconheçam dada a minha mudança de visual. Mas lembram-se da promessa que fiz, que quando chegasse a minha hora, eu assumiria a decisão que tinha tomado e entraria como voluntário nos corredores do projeto 70. Sabia que estava a caminho quando tomei as minhas decisões. Tomei as minhas decisões em democracia, num governo minoritário, com o projeto a ser recusado por duas vezes, primeiro pelo presidente da república, depois pelo próprio parlamento, o mesmo que perante o cenário de falência da segurança social, dos bancos e dos seguros, do fim das reformas e do crescimento da decadência nas ruas, acabou por aprovar o projeto com a maioria dos votos a favor da nova lei. Uma lei que obrigaria a testes anuais a partir dos setenta anos, com fim anunciado àqueles que não passarem na avaliação. São três os elementos fundamentais testados nestes exames. Primeiro, capacidade mental e motora para seguir vida de uma forma digna sem depender de terceiros. Segundo, capacidade de auto-sustento financeiro, sem depender de ajudas humanitárias ou de familiares diretos ou indiretos que não possuam rendimentos declarados acima da média. Terceiro, ter ou não recebido a medalha de mérito nacional e de vida prolongada, entregue pelo presidente da república a figuras notoriamente reconhecidas pelo préstimo que deram ao país e à sociedade. Existem apenas três formas de contornar a lei e apenas uma delas salvaguarda verdadeiramente a vida do reformado, se assim lhe quisermos chamar. Uma, o reformado falta ao exame