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O Caso De Vincent Rairin Parte 3 - A Descoberta
O Caso De Vincent Rairin Parte 3 - A Descoberta
O Caso De Vincent Rairin Parte 3 - A Descoberta
E-book656 páginas10 horas

O Caso De Vincent Rairin Parte 3 - A Descoberta

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Sobre este e-book

A noite passada revelou a Vincent que os assassinatos dos Imoladores e sua estranha condição contém uma íntima ligação. E mesmo com o grande erro que ele cometera, sua vontade de saber o que o assola o guiará até o fim, até a face daquele que o fez ser o que odeia. Para Claire, a destruição da noite passada parecia ter acabado, mas uma vida inteira a espera no dia seguinte. Na última parte de O Caso de Vincent Rairin, o inominável se revela, destruindo todos ao seu redor, pelo motivo mais insano. É nesse momento que Vincent entende seu propósito.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de abr. de 2016
O Caso De Vincent Rairin Parte 3 - A Descoberta

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    O Caso De Vincent Rairin Parte 3 - A Descoberta - L. L. Pradela

    A descoberta (A noite que você me perdeu?)

    Capítulo I – O fim

    Pressiono o botão do bebedouro e vejo a água gelada tocar o fundo do copo de plástico. O relógio do hospital marcando quase seis da manhã. Se hoje não fosse domingo, eu já teria que estar me levantando para o trabalho. Sinceramente, não dá pra pensar em trabalho numa hora dessas, não depois da noite que eu tive. Só de pensar em ir trabalhar depois de tudo o que aconteceu na noite passada…

    Tento não sentir a dor que estou sentindo em cada centímetro do meu corpo, mas confesso que é bem difícil. Melissa, minha heroína, me deu um analgésico, mas creio que ainda não fez efeito. Eu já tomei esse tipo de remédio antes, sei que o efeito demora um pouco a vir. Lembro-me de ter roubado uma vez uma caixa fechada de um remédio maluco pra um sujeito que me disse que dava uma grana por aquele tipo de medicamento, por causa da pseudoefedrina, que eles usam pra fazer metanfetamina. Foi a primeira e única vez que eu mexi com drogas pesadas na minha vida. Me senti um lixo naquele dia, sabendo que aquele sujeito ia usar aquilo pra fazer cristal e espalhar aquela merda pra um monte de viciados. Lucrar com o desespero de pessoas que já não são mais donas de seus próprios narizes. Me senti pior naquele dia do que estou me sentindo agora:

    – Tá bom, dona moralista. Quer dizer que roubar por outras razões era certo?

    Termino de encher o copo de água. Acho melhor levá-lo para Gaia. Coitada. Ela estava em choque quando nos encontramos do lado de fora do orfanato. Eu tentei conversar com ela, tentei tudo o que dava, mas ela não me deu ouvidos, mesmo comigo gritando na cara dela, perguntando o que tinha acontecido. O que será que ela viu que a deixou assim? Onde será que está Vincent? Será que aconteceu algo com ele, tão horrível que deixou a doutora paralisada? Deus, não quero nem pensar numa coisa dessas.

    Caminho em direção de onde deixei Gaia. Meu corpo estrala conforme dou os passos. Estou toda arrebentada! Fazia muito tempo que eu não recebia uma surra dessas. Achei que esses dias tivessem ficado pra trás, os dias que eu tinha que fechar minhas feridas sozinha depois de um quebra pau. Ainda tenho algumas cicatrizes de surras que levei, mas acho que o que Ryan me fez deixará muito mais que cortes e contusões. Vai ser foda apagar da minha mente a imagem dele tentando me estuprar. Nada, absolutamente nada do que ele podia fazer, mesmo as pancadas, poderia ter sido pior que o que ele tentou. Só de pensar em Ryan arrancando minha roupa já faz meu estômago vazio embrulhar.

    Mas por que será que ele tentou me estuprar? Será que tem algo em mim que desperta isso nesses homens? Outros caras já tentaram fazer isso antes… e um certo cretino até conseguiu. Será que eu sou o problema?

    Isso é ignorância, Claire. Pensar que a vítima tem culpa é ridículo. Eles eram os culpados. Ryan, Norman e mais um monte de babacas que eu roubei. Eles eram tarados que achavam que podiam se aproveitar de uma menina que se parecia frágil. Acho que foi minha mãe quem disse que homens sobrepujam mulheres devido a uma imagem de força que eles precisavam mostrar pra eles mesmos, até mesmo por medo de algum sentimento homo... de acabar gostando de homens, sei lá. Ryan também foi abusado quando mais novo, talvez isso fez ele acreditar que tinha que provar alguma coisa a ele mesmo.

    Sinceramente, não quero ficar pensando no que motivou Ryan a fazer aquilo tudo, matar um monte de gente e depois tentar me violentar. Vou levar logo essa água pra coitadas da Gaia.

    Mas como não pensar nisso? Eu vi como Ryan estava, ouvi as coisas que ele disse, e acima de tudo isso, vi como ele não era a mesma pessoa, não a toda hora. Era como se várias pessoas estivessem habitando o mesmo corpo. Hora ele chorava, hora ele ficava com raiva, hora ele falava com ele mesmo. Que diabo foi tudo aquilo? Será que apenas o trauma que ele passou foi suficiente para desencadear tudo aquilo? Se bem que ele disse que eu o tinha abandonado, e que eu não o tinha protegido. Será que ele ficou daquele jeito por minha culpa, por ter deixado ele sozinho naquele lugar horrível? Pobre do meu antigo amigo, ter ficado sozinho naquele lugar.

    Caramba, realmente aquele orfanato é amaldiçoado! Bem, era, porque aquele incêndio destruiu por completo minha antiga moradia. Não sei como aquele lugar pegou fogo rápido daquele jeito, mas eu me sinto totalmente vingada, e gostaria de agradecer quem fez aquilo. Não sei por quê, mas quando senti o calor das chamas no meu rosto, senti como se eu estivesse concluindo um capítulo de minha vida, como se eu tivesse fechado um livro e tivesse aberto outro, e esse sentimento de recomeço é ótimo.

    Ando em direção de onde deixei Gaia e Ana. Com toda essa confusão em minha cabeça eu acabei me esquecendo de Ana. Não que eu tenha me esquecido de minha filha, já que ela povoa meus pensamentos quase que todo tempo, mas eu havia mesmo me esquecido do que havia pensado sobre ela na noite passada, aquela cretinice de que eu era mais realizada quando não tinha ninguém. Coisa mais estúpida de pensar! Como que uma merda dessas passou pela minha cabeça? Como pude ser tão idiota?

    – Como que essa merda ainda está na minha cabeça?

    Será que ela realmente é feliz comigo? Será que ela não sente o mesmo, que sou uma porcaria de mãe por pensar nesse tipo de coisa? Inteligente como ela é, talvez ela sabe o que se passa na minha cabeça. Tenho medo de que ela me olhe e veja essa Claire babaca e individualista que ontem eu pensei em ser. Não quero perdê-la.

    Se acalme Claire. Respire fundo e esqueça dessa merda de uma vez por todas. As duas estão logo ali, virando aquele corredor.

    Dou mais alguns passos, viro o corredor a esquerda e vejo a historiadora sentada no banco, com Ana deitada com sua cabeça em seu colo. Essa é uma visão estranha, ver minha filha no colo da historiadora. Sinceramente, eu não esperava ser ajudada pela doutora peituda. Eu não devia pensar isso dela; ela ajudou minha filha na noite passada e ser sacana com ela é mau carma, mas é bem difícil olhar pra ela sem reparar no seu busto. Eles são lindos mesmo:

    – Ela é linda – diz Gaia, passando a mão nos cabelos castanhos claros de Ana – e extremamente inteligente. Posso conseguir uma bolsa pra ela na South Side, quando ela tiver a idade certa.

    Parece que Gaia já recobrou sua consciência:

    – Isso seria bom – digo a ela, sentando ao seu lado e lhe dando o copo d’água – não sei se conseguiria colocá-la naquela escola sendo uma contadora júnior.

    Vendo-a sorrir, posso acreditar que ela não irá mais ignorar minhas perguntas como fez antes. Vamos lá:

    – Er… noite maluca essa, não?

    Gaia vira o copo d’água em sua garganta e me responde:

    – Nem me fale.

    Gaia me olha de uma forma diferente, mais adulta:

    – Você está bem, Claire? Tem um inchaço no seu rosto.

    – Vou sobreviver. Já passei por coisas piores. Obrigada por perguntar. Aliás, obrigada por ter cuidado de Ana.

    – Não precisa me agradecer. Ela é uma boa menina.

    Acho que tá na hora de responder minhas perguntas, doutora:

    – Achei que Vincent estaria com Ana. Foi uma surpresa ver você com ela.

    – Vincent… e você eram bastante próximos, não é mesmo, Claire?

    Ela me perguntou de um jeito estranho:

    – Acho que sim. Ele me ajudou quando eu precisei, e acho que também o ajudei, de certa forma. Ele te disse alguma coisa? Aliás, cadê ele?

    Gaia não me responde, mas continua com o mesmo olhar e jeito estranho. Os seus olhos olham para mim como se estivessem procurando algo:

    – Vocês dois já tiveram alguma coisa? Sabe, tiveram algum caso?

    Ela pareceu um pouco ciumenta agora:

    – Não, doutora, nós nunca tivemos nada. Eu sei o que você tá pensando, que ele é lindo e coisa e tal, mas nunca rolou nada.

    Gaia não move nem mesmo um músculo de seu belo rosto. Acho que não disse o que ela queria ouvir. Vou tentar arrumar o que eu disse:

    – O que eu queria dizer é que ele sempre me viu mais como amiga, e eu também o vejo assim. Não gostaria de jogar nossa amizade no lixo, e sinceramente, não é por mim que ele atravessou a cidade pra entregar aqueles papéis velhos.

    – Esses? – diz Gaia, retirando de sua bolsa uma pasta laranja – Ele havia te mostrado isso antes?

    Espera um pouco: se ela está com esses papéis, então eles estavam juntos nessa última noite. Mas onde está meu amigo?

    – Gaia, onde está Vincent? Você estava com ele na noite passada. O que aconteceu?

    Ela abaixa os olhos e não me diz nada, mas tá na cara que aconteceu alguma coisa:

    – O que aconteceu pra te deixar daquele jeito, doutora?

    Os olhos dela estão lutando dentro da órbita. Por que ela está esquisita desse jeito?

    – Eu… não sei. Não sei dizer.

    Não sabe dizer?

    – Como assim, Gaia? Me explique.

    Ela fecha os olhos mas vejo-os ainda se mexendo por detrás das pálpebras. Ela parece sofrer com as memórias:

    – Eu não… eu não sei o que vi. Não… sei…

    Gaia leva as mãos aos olhos e enxuga as lágrimas antes que elas rolem. Eu não entendo. O que ela quer dizer com isso?

    – Gaia – digo a ela, chegando um pouco mais próxima – Vincent está bem? Ele está… morto?

    Gaia está com os olhos vermelhos como eu nunca havia visto. Deus, não me deixe ela dizer que…

    – Sim – diz a pobre e triste mulher – ele está morto.

    Não… não pode ser!

    – Gaia, olha pra mim!

    Os seus olhos pousam nos meus e tudo é tão claro agora, tão terrivelmente claro, que chega a ser ridículo. Sua boca não emite nenhum som, mas seus olhos gritam como se eu não os estivessem escutando, como se eu não quisesse escutar. Seus grandes olhos negros estão tão vermelhos e encharcados que mal parecem humanos. Não consigo mais olhar para esses olhos gritando algo que eu não quero ouvir. Não quero mais olhar pra eles. Viro meus olhos para baixo, mas ainda escuto os gritos, agora em minha mente, minha própria mente me traindo, jogando na minha cara essa coisa horrível que os olhos dela me disseram. Não existe mais nada na minha mente que não seja esse maldito eco, indo e voltando, gritando que mais uma pessoa que eu amava está morta, mais uma pessoa que se envolveu comigo e com a merda da minha vida agora está com aqueles olhos vazios, olhando para o nada, largado em algum canto horrível dessa terra maldita por onde pisei:

    – Vincent. Por que…

    Não consigo nem ao menos terminar o que ia dizer. Meus olhos se enchem de lágrimas, me jogando nesse horrível mundo de tristeza que tantas vezes eu entrei. Já sou visita constante nesse lugar, tantas vezes eu entrei nesse mundo de solidão que já nem sei mais como sair dele. Eu não quero passar por isso de novo:

    – Eu não… vou aguentar isso… de novo.

    Sinto Gaia me abraçando com seu braço esquerdo antes que eu desabe. Sinto seu corpo junto ao meu, tentando me consolar. Não vai funcionar, não mesmo. A dor que sinto agora dentro de mim é muito grande pra alguém conseguir me consolar, ainda mais alguém que pouco conheço:

    – Fique calma – diz Gaia, colocando sua mão na minha cabaça – vai ficar tudo bem.

    Não vai, eu sei que não vai. Eu já passei por essa merda antes. Por mais que você tente ser forte, isso sempre volta pra te assombrar, sempre. Existem coisas que simplesmente não passam, não passam nunca, e acho que é porque não queremos que elas passem. Sentir dor e tristeza ao me lembrar de meu bom amigo é tudo o que posso fazer para honrá-lo:

    – Meu pobre amigo. Eu não tenho mais ninguém.

    As palavras se formaram sozinhas em minha boca. Abraço ainda mais forte a doutora ao me lembrar de Tanya e das meninas, e agora Vincent. Eu estou sozinha, totalmente sozinha. Eu preciso de alguém agora. Todos os meus amigos são mortos, de faces tristes e sem vida, olhando para mim, olhando para quem lhes fez tanto mal. Por que eu simplesmente não vou embora e abandono tudo? Cansei de ver tristeza nos olhos daqueles que me amavam.

    Tristeza. Essa palavra soa como Rairin pra mim:

    – O pior de tudo… é que Rairin era um homem triste, cheio de melancolia, e eu não pude ajudá-lo.

    – Um homem triste?

    – Sim – respondo à doutora, ainda chorando – eu havia… perguntado pra ele ontem de manhã sobre isso, e ele me disse… que tinha muitos remorsos.

    Gaia me olha, sem me dizer nada:

    – E a última… memória que tenho… dele é de seu… rosto triste, depressivo.

    Não consigo pensar em outra coisa que não seja seu rosto triste. Pobre Vincent, tão cheio de tristeza.

    Sinto a mão de Gaia se afastando de mim. Imagino que ela deve ter pensado que ficar perto de mim é mau negócio:

    – Gaia?

    – Espere um pouco.

    Gaia segura minha filha, que ainda está dormindo, nos braços e a ergue com bastante cuidado. Ela coloca a criança no banco a nossa frente, tira seu terno e a cobre, deixando-a aquecida. A doutora volta a se sentar na minha frente:

    – Claire – diz ela, tocando em meu rosto – eu sei que isso é horrível, mas você não está sozinha, ok? Sua filha não é mais uma criança de colo, ela vai te dar muita força… e eu também.

    Ela?

    – Você? Mas eu…

    Ela sorri para mim:

    – Sim, eu. Você não terá que passar por isso sozinha.

    Puxa, ela disse isso de uma forma tão boa, tão familiar, que estou até me sentindo mais calma:

    – Você… soou como ele. O que você disse, parecia as coisas que Vincent me dizia, pra me por pra cima.

    Preciso me recompor, enxugar essas lágrimas e lutar mais uma vez:

    – Gaia, obrigada pelo que você está fazendo, me ajudando. Você é legal.

    Ela volta a me abraçar, dessa vez com os dois braços em volta de mim. Puxa, ela cheira tão bem…

    – Vamos passar por isso juntas, ok?

    Solto a doutora e penso que acho que preciso aceitar isso, aceitar que não vou ver mais meu amigo. Preciso imaginar ele de outras formas, como quando ele elogiou meu café, ou quando ele mentia sobre a idade. Essas são boas memórias, pode apostar.

    Então é isso, simples dessa forma: Vincent está morto. Como é horrível essas três palavras juntas. Como que… mas como…

    – Como isso aconteceu?

    – Foi no orfanato – diz ela, me soltando e enxugando suas próprias lágrimas – nós estávamos a sua procura.

    Ela me olha por alguns segundos e continua:

    – Você chegou a sair com Ryan?

    – Sim. Quem você acha que me arrebentou toda? Aquele maldito tentou me agarrar à força.

    – Mas foi ele quem te levou no orfanato?

    – Na verdade, fui eu que fui até lá. Achei que o Imolador havia voltado e que tinha levado minha filha.

    Engraçado essa ironia:

    – Por que você está rindo, Claire?

    Não consigo evitar o sorriso:

    – Vocês estavam com Ana o tempo todo, e eu sai caçando um cara que está morto. Sou mesmo bem paranoica. Mas por que vocês foram até o orfanato?

    Gaia não me responde. Ela fica quieta, pensando em alguma coisa. Coitada. Não deve estar sendo nada fácil pra ela também:

    – Gaia, caso você quiser falar sobre isso outro dia, eu entendo.

    Ela solta um pequeno sorriso:

    – Estávamos tomando café no centro quando ele me disse que havia esquecido esses manuscritos na sua casa.

    Tomando café, sei…

    – Então essa merda toda atrapalhou o seu encontro, né?

    Ela me entendeu, com certeza:

    – Não era exatamente um encontro. Nós apenas estávamos conversando, dois amigos conversando. Não havia nada além disso.

    Pela cara dela, ela também não acreditou em suas palavras, mas enfim…

    – Entendo. E como esse encontro foi parar no meu orfanato?

    – Nós fomos até o seu apartamento – ela solta um sorrisinho bonitinho – porque eu sou uma viciada em trabalho, e preferi pegar os papéis do que aproveitar a noite. Quando chegamos lá…

    Ela interrompe o que ia dizer, assim do nada, quase que levando a mão na boca:

    – Droga, eu quase… Claire, acho que preciso te contar algo, sobre o que aconteceu em sua casa.

    Acho que entendi porque ela interrompeu sua história. Ela deve achar que eu ainda não sei o que aconteceu com as meninas:

    – Você não precisa me contar não Gaia, eu sei. Vi minhas amigas mortas. Bem, fui impedia de vê-las pela polícia, na verdade. Ryan, ou seja lá quem era aquele Ryan, confessou que foi ele.

    – Aquele Ryan?

    Nem sei como explicar isso:

    – Ryan parecia ter outras duas ou três pessoas dentro dele. Hora ele ficava sério e normal, hora ele chorava como uma criança, hora ele ficava ensandecido. É como você disse antes, eu não sei bem o que vi.

    Ela pensa por alguns segundos antes de continuar:

    – E ele confessou que matou suas amigas?

    – Ele confessou um monte de merdas. Ele matou minhas três amigas, um segurança do seu museu…

    – Segurança do museu?! Como assim?!

    Acho que eu devia ter amaciado antes de dizer, droga:

    – Foi mal dizer assim, do nada. Eu não sou muito boa nisso.

    Gaia fica muito agitada:

    – Mas quem ele matou? Qual era o nome dele?

    O pior que eu nem sei. Pobre homem:

    – Ele era um pescador. Tinha um monte de peixes empalhados na casa dele.

    – Era o senhor Jackson – diz Gaia, levando as mãos ao rosto – ele trabalhava no museu desde que eu fui lá pela primeira vez, aos doze anos. Que coisa horrível.

    – Então… Ryan disse que também matou uma modelo, que estava na casa dele. A polícia já sabe do segurança do museu, mas não sabe da modelo. Acho que…

    – Eu já avisei a polícia sobre a modelo – diz Gaia, me interrompendo – nós fomos até o apartamento de Ryan, achando que você tinha voltado com ele depois do seu encontro. Ela era muito parecia com você, tanto que Rairin achou que você estava morta, e quase teve um colapso nervoso.

    Poxa, Vincent realmente gostava de mim. Eu também gostava muito dele. Espero que ele tenha tido isso em mente, que alguém gostava bastante dele, pelo menos no fim da vida. Gostaria de ter visto ele sorrir, pelo menos uma vez:

    – Rairin realmente era um bom homem. Ele tinha aquela faixada crua e séria, mas por dentro ele era outra pessoa.

    – Outra pessoa. É, acho que você tem razão.

    Gaia está pensativa e com os olhos longe. Acho que ela está pensando em Vincent. Se é ruim pra mim, que era amiga, imagina pra ela, que gostava dele. Eu sei como é ruim ver alguém que a gente gosta morrendo:

    – Ele confessou mais alguma coisa, Claire?

    – Ele disse que havia sido estuprado no orfanato depois que eu fui embora, e colocou a culpa em mim por não estar lá para protegê-lo. Às vezes, penso que tudo isso é culpa minha, que fui eu quem criou aquele monstro.

    Nessa hora, eu queria ter Vincent por perto para tentar me esclarecer o que eu estou sentindo:

    – Não foi sua culpa, Claire. Ele já era um monstro horrível antes de tudo isso. Foi ele quem matou o senhor Steel, seu próprio tio, a uns três meses atrás. Só de me lembrar da cara dele no enterro, fingindo que estava triste, no aperto de mão que eu dei a ele, consolando-o…

    – Mas ele era um bom menino antes, quando eu era nova. Ele mudou depois do que aconteceu no orfanato, depois que eu fui embora. Ele não nasceu assim, o orfanato deixou ele desse jeito. Aquele maldito lugar destruiu meu amigo.

    Bem, pelo menos eu sempre vou ter a lembrança do fogo consumindo aquele velho casarão. Só de me lembrar do calor vindo da madeira queimada, meu sorriso já volta ao rosto. Sempre adorei o calor, mas aquele calor, puro e santo, destruindo aquela casa diabólica, vai ser algo que eu jamais me esquecerei:

    – Então Ryan ao todo matou… oito pessoas.

    Oito?

    – Mas… o tio dele, as minhas três amigas, a modelo, o pescador e o detetive Krauss. Foram sete, doutora.

    – E Rairin.

    Ela soou tão horrível dizendo isso. Acho que, na verdade, foi a mensagem na fala que me soou horrível. Ainda não consegui digerir essa coisa de Vincent estar morto, ainda mais assassinado:

    – Mas Gaia, Ryan atacou Vincent? Foi assim que ocorreu?

    Gaia fica quieta mais uma vez, sem ao menos mover a boca. Seus olhos também estão paralisados. Acho melhor não perguntar mais nada, pelo menos por hoje. Ela já passou por muita coisa horrível pra eu ficar interrogando a coitada, nós duas passamos, na verdade. Vou deixá-la em paz agora.

    Estranho o jeito que vejo Gaia Svensson agora. Vejo-a com olhos muito melhores. Parece que essa merda toda meio que nos juntou, e confesso que gosto dela, por mais que antes eu não gostava:

    – Gaia, posso te dizer uma coisa?

    A doutora volta para esse planeta:

    – Sim, claro.

    – Me desculpe se da primeira vez que nos vimos eu fui meio idiota com você. Estou muito agradecida por você estar aqui, junto comigo.

    Ela meio que esboça um sorriso:

    – Você não fez nada de errado naquele dia do museu. Eu é que não fui muito receptiva, até pelo que eu achava de Vincent Rairin na época. Também peço desculpas.

    Parece que ganhei uma nova amiga:

    – Ah, e me desculpe se me pareci ciumenta naquele dia. É que você é linda demais, e eu me senti um pouco ameaçada. Coisa de criança.

    Agora ela não está mais apenas esboçando um sorriso:

    – Não sou tudo isso, não. Sei que sou uma traça de livros quatro olhos.

    Ela parecia ter uns treze anos agora. Acho que deixei ela meio sem graça. Será que se eu disser o que eu realmente penso dela, principalmente desse seu busto, ela vai ficar mais vermelha?

    Acho melhor não dizer esse tipo de coisa. Se ela achar que eu estou dando em cima dela e ela for homofó… não gostar de pessoas diferentes, eu vou ficar desapontada:

    – Acho que vocês dois fariam um casal perfeito, você e Rairin. Vocês dois são inteligentes e bonitos.

    Droga, falei merda de novo! Ela voltou a ficar triste. Acho melhor parar com esse papo furado e…

    – O que você disse antes, sobre ele ter muitos remorsos, foi ele quem te disse isso? Ele chegou a dizer o que ele tinha feito?

    Gaia nem parece ter ouvido aquela bobagem que eu disse:

    – Ele me disse que ainda não estava pronto pra dizer o que ele havia feito. Acho que deve ter sido sério, já que ele vivia… sabe … com aquela garrafa na mão.

    – É, aquela garrafa. Lembro disso.

    Acho que do jeito que eu falei, eu o chamei de alcoólatra. Rairin era um cara muito bom, não merece isso:

    – Não acho que ele seja um bêbado, longe disso. Ele era extremamente calculista. Só acho que talvez ele bebia pra, sei lá, esquecer de alguma coisa.

    Gaia fica olhando para o vazio. Acho que eu estraguei mais ainda as coisas:

    – Mamãe? Onde estamos?

    Ana acordou. Graças a Deus! Com ela por perto, não vou mais ser mais capaz de ficar falando porcarias:

    – Acordou, meu anjinho? Que dorminhoca que você é.

    Ela sorri e se senta no banco a nossa frente, com uma carinha de sono. Sinto-me tão bem em ver minha filha novamente, sã e salva, sem nem ao menos um arranhão. Tantas coisas horríveis se passaram na minha mente ontem, coisas que eu lutei muito para não pensar, e vê-la desse jeito, linda e sorridente, é tão bom que até me faz esquecer um pouco de tudo o que passou comigo, de todas as pancadas que levei e de todas as pessoas que terei que enterrar. Gaia tinha razão: minha filha irá me passar muita força agora.

    E pensar que a ideia de voltar a ser uma andarilha passou pela minha mente ontem…

    – Claire, eu acho que já vou indo – diz Gaia, se levantando de sua cadeira – Quero poder dormir um pouco. Estou muito cansada.

    Me levanto junto com a doutora, Entendo o que ela quer dizer. Também estou muito cansada:

    – Tudo bem, Gaia. Eu também estou. Só vou ver com Melissa se eu também posso ir e também já vou indo. Quero dormir o dia inteiro.

    Abraço mais uma vez a bela historiadora, sentindo mais uma vez o seu perfume:

    – Obrigada por tudo, Gaia.

    Solto o corpo da doutora e a vejo colocando a mão dentro de sua bolsa:

    – Aqui está meu endereço. Se você não tiver onde ficar por agora, você pode ficar comigo, pelo menos até as coisas voltarem ao normal.

    Pego o cartão dos finos dedos da doutora. Bacana o que ela está fazendo:

    – Obrigada, Gaia. Tchau.

    Gaia me dá as costas e se dirige pra fora. Tomara que ela fique bem. Eu já passei por muita coisa, já sou meio cascuda, mas acho que ela ainda não está costumada com isso. Mais tarde eu vou na casa dela, ver se ela está bem:

    – Mamãe, onde estamos?

    É tão bonitinha quando ela fala sem errar nenhuma palavra:

    – Estamos no hospital, minha lindinha – digo a ela, sentando-me ao seu lado – eu me machuquei ontem, e precisei tomar um remédio.

    Ela segura minha mão:

    – Ainda tá doendo?

    Pra ser sincera, acho que os analgésicos já estão fazendo efeito:

    – Não está doendo não, minha linda. Já estou bem.

    – Mas por que vocês estavam chorando?

    – Como você sabe que eu estava chorando?

    Ela olha para seus próprios pés descalços:

    – Eu estava acordada… enquanto você e a dona Gaia conversavam. Eu não queria atrapalhar.

    Cara, como pode ela ser tão inteligente assim, sendo tão nova? Será que vou conseguir ser uma boa mãe pra um prodígio como ela? Eu não sou burra, longe disso, mas sei que ela é muito mais inteligente que eu. Será que ela não me acha uma tapada, e que eu estou atrapalhando sua vida? Inteligente do jeito que ela é, é bem capaz que ela já tenha essa noção:

    – Ana, você acha que eu sou uma boa mãe?

    Ana fica séria como eu não sabia que ela podia ficar:

    – Eu te amo, mamãe. Você é uma ótima mãe.

    Sinto um aperto no coração ao pensar novamente no que eu pensei ontem, em… em abandonar tudo e voltar pras ruas:

    – Não chora, mamãe.

    Sinto as pequenas mãos de Ana tocando meu rosto, secando minhas lágrimas:

    – É que… você é tão especial, e eu sou uma porcaria …

    Ana me abraça firme:

    – Não fica assim, mamãe. Você é tão perfeita, tão bonita. Eu tenho a melhor mãe do mundo.

    Que lindinha!

    – Você acha mesmo, Aninha? Às vezes, eu não sei o que te dizer. Você é tão única que eu…

    – Você é a minha mamãe perfeita, mamãe.

    Eu sou muito sortuda em ter Ana comigo. Abraço ela e a coloco no meu colo, e a beijo, a beijo, e a beijo, e a beijo…

    – Para mamãe! Tá dando cócegas!

    O sorriso dela ilumina a sala inteira. Ilumina a minha vida. Eu simplesmente adoro ser a mãe dela, adoro mais que tudo. Será que minha mãe também se sentia assim, nos poucos minutos que ela ficou comigo? Espero que sim:

    – Ana, eu já te disse que seu nome é o mesmo que o da sua vovó?

    – Um milhão de vezes – diz a menina, sorrindo – a vovó Ana está no céu, olhando para mim.

    – É isso aí, e sabe o que ela está dizendo? Ela está dizendo: que menininha mais sapeca, andando descalça por aí.

    Ana ri como uma maluquinha:

    – Você também está descalça, mamãe. Igualzinha à Aninha.

    Adoro quando ela fala dela mesmo na terceira pessoa. Soa meio exibida, menos tímida do que ela é.

    – Estou mesmo. A vovó tá brava comigo também.

    Ela fica olhando para nossos pés descalços, com uma carinha de curiosa. Seu rostinho está tão pensativo…

    – No que você está pensando, meu anjinho?

    – Mamãe, o que aconteceu com aquele homem que foi na nossa casa de manhã?

    Acho que ela está perguntando sobre Vincent. Droga! Será que ela me ouviu dizendo que ele foi assassinado? O pior é que, inteligente como ela é, vai sacar que eu estou mentindo, se eu mentir. O que eu faço?

    – Vincent… viajou, de volta para a sua terra natal. Ele não era daqui, sabe.

    – Que bom que ele foi embora.

    Como assim?

    – Ana, por que você disse isso? A mamãe gostava dele. Ele era amigo da mamãe.

    – Ele não era uma boa pessoa.

    – Aninha, por que você não gostava dele?

    Ela fica olhando para os próprios pés, sem dizer nada. Ela vai ter que me explicar:

    – Ana, me responda: por que você não gostava dele?

    Acho que estou sendo muito dura com ela. Ela tem o direito de não gostar de alguém:

    – Ele correu atrás de mim no lugar escuro.

    Tadinha. Ela ainda pensa naquele sonho:

    – Eu já te disse que foi apenas um sonho. Não precisa ter medo.

    Ela fica quietinha, apenas olhando novamente para nossos pés descalços. Não vou arranjar briga com minha própria filha por causa de seus medos. Acho que tenho que lhe dar conforto quando ela tiver medo, e não brigar com ela por causa de sentimentos que ela não controla:

    – Eu tô aqui com você, tá bem? Não vou deixar te acontecer nada. Você não está no lugar escuro.

    Abraço minha filha bem forte. Ela não vai sentir medo perto de mim, não permitirei. Ela não vai ter momentos ruins na vida, se depender de mim:

    – Que tal se nós irmos comer comida japonesa mais tarde? Eu como a verdura e você come o peixe.

    – Eu… acho que não gosto.

    De repente escuto a porta do quarto ao lado se abrindo, e de dentro dela sai Melissa, minha salvadora, segurando dois pares de chinelos. Não sei se é a luz ou os analgésicos, mas o cabelo dela é mais louro do que eu lembrava. Sempre gostei de louras, elas são tão chamativas:

    – Claire, você está melhor?

    Ela passa os chinelos para mim, com a mesma cara preocupada de sempre:

    – Estou me sentindo melhor, graças a você, Mel. Você não se importa de eu te chamar de Mel, né? É que eu tenho mania de pôr apelidos em quem eu gosto.

    Ela me encara por alguns segundos, séria e obstinada como sempre. Visto os chinelos em mim e em Ana enquanto olho para os olhos da enfermeira. Eles tem um brilho diferente.

    – Não, não me importo. Tá tudo bem.

    Fico de pé, de frente pra ela. Não havia reparado que ela é maior que eu. Melissa deve ter um e setenta, e eu tenho quase um e sessenta. Acho que eu é que sou meio baixinha, pra falar a verdade. Também, passar fome durante quatro anos não deve ser muito saudável, isso deve ter retardado um pouco meu crescimento:

    – Você me parecia menor ontem, Mel. Só agora reparei que você é mais alta que eu. Você é muito bonita.

    Não sei por qual motivo um sorriso escapa da minha boca. Acho que esses analgésicos eram dos bons, estou me sentindo um pouco tonta, meio engraçada:

    – Er… Obrigada. Você… Também é bonita.

    Ela parece meio envergonhada agora:

    – Claire, você quer… ver Steven, digo… Mark agora?

    Cara, com toda essa confusão eu acabei me esquecendo de Mark! Eles estavam já a um bom tempo dentro do quarto, desde que chegamos. Pouco pude ficar com ele quando chegamos do orfanato. Logo que chegamos, Melissa tomou as rédeas da situação e me encaminhou para o atendimento, enquanto levava Mark para esse quarto. Deu pra reparar que ela é muito boa no que faz, a ponto de dar ordens a pessoas mais velhas, e chamar a atenção de médicos. Com toda a correria, eu pude apenas trocar olhares com Mark, e ver seus olhos vivos de novo é a melhor coisa que poderia me acontecer. Sei que ele se parecia confuso, mas confuso é melhor que morto.

    Eu ainda não acredito direito que ele está vivo, estava vivo esse tempo todo. Eu pensei tanto nele:

    – Quero vê-lo, sim. Acho que posso ajudá-lo com suas memórias.

    Melissa pensa um pouco e me responde:

    – Você realmente o conhecia, não é?

    Aceno positivo para a enfermeira:

    – Conhecia sim. Aliás, conheço também o que ele está passando. Eu tive amnésia quando tinha treze anos. Sei o que é passar por isso, sei como é olhar para as pessoas e não saber se as conheço.

    Melissa olha para mim, com um olhar estranho, mas não estranho ruim. Ela parece estar me sondando. Acho que ela ainda está preocupada comigo.

    Ela olha para Ana:

    – Ela é sua filha, né?

    Ana me olha com a mesma carinha tímida de sempre:

    – É sim. Ela é minha lindinha, não é mesmo, lindinha?

    Ana se levanta e abraça minhas pernas, escondendo o seu rosto. Tadinha:

    – Ela é meio tímida, Mel. Me desculpe.

    Ana está com os cabelos um pouco sujos. Vou dar um banho nela quando chegar em casa. Um banho em nós duas:

    – Claire, você e Mark eram… íntimos?

    Melissa usou um tom de voz mais calmo, talvez para não insinuar alguma coisa perto de minha filha. Imagino que ela espere que eu explique tudo o que sei. Aliás, se vou contar alguma coisa para Melissa, não quero que Ana escute. Não a quero convivendo com essa merda toda.

    Me abaixo e fico na altura de Ana:

    – Aninha, você podia virar naquele corredor e pegar um copo de água pra mamãe?

    Ela acena positivo e segue pela direção que eu disse. Não acho que alguém vai sequestrar minha filha dentro desse hospital. Não posso ser tão paranoica a ponto de roubar a liberdade de minha filha e…

    – Então, Claire. Vocês eram… namorados?

    Gostaria de responder essa pergunta da forma que eu quisesse, mas não quero causar mais confusão na cabeça do pobre Mark:

    – Éramos amigos. Nós nos conhecemos quando os assassinatos do Imolador começaram a ocorrer. Nos conhecemos durante as investigações de Vincent Rairin.

    Estranho eu estar me abrindo dessa forma pra ela. Não sei por quê, mas Melissa me passa uma confiança tão grande que sinto que posso confiar nela cem por cento:

    – Rairin?

    Me esqueci que Melissa só entrou agora nessa história:

    – Rairin era um consultor da polícia que estava investigando os assassinatos. Foi através dele que conheci Mark, e acabamos nos tornando amigos. Foi uma merda o que aconteceu com ele.

    – E o que aconteceu?

    Droga. Detesto me lembrar disso:

    – Ele foi assassinado ontem por aquele louco que tentou me estuprar, aquele que vocês dois enxotaram.

    Melissa se surpreende com o que eu acabei de dizer. Eu sei, isso tudo é bastante louco. Às vezes, nem mesmo eu acredito em minhas próprias histórias:

    – Se não fosse por você e pelo Mark, eu estaria morta agora, e minha filha seria órfã.

    Vejo Ana dobrando o corredor com um copo de água em mãos. Melhor parar de falar sobre isso:

    – Melissa, depois conversamos mais.

    Ana chega perto de mim e me dá o copo de água, meio gelado. Ela sabe que gosto de água gelada. Pego o copo e bebo até a metade:

    – Estão… você disse que eu podia falar com Mark…

    – Sim, pode sim. Vamos.

    Melissa abre a porta do quarto, meu coração começa a bater mais forte enquanto o abrir da porta vai revelando cada centímetro do quarto de hospital. Sinto um frio no estômago parecido com aquele que eu sentia quando Mark se aproximava bastante de mim, a ponto de fazer meus instintos raivosos se acalmarem. Até mesmo os meus instintos ficavam derretidos por ele.

    A porta se abre por completo, e meu coração quase sai pela boca ao ver Mark de costas, olhando pela janela de seu quarto. Eu estava meio tonta e confusa quando fui resgatada do orfanato, e confesso que cheguei a pensar que estava alucinando, mesmo que com ele olhando pra mim e eu sabendo que esse rosto lindo pertencia ao meu Mark. Fiquei pensando que não era possível que meu finado amado tivesse retornado, achei mesmo que estava sonhando, mas ao olhar pra ele agora posso ter certeza que não estou sonhando, que tudo isso é real. Mark está na minha vida de novo:

    – Oi, Mark.

    O garoto se vira para nós. Os mesmos olhos castanhos vivos me encarando:

    – Oi, Claire. Você está melhor?

    Entro no quarto junto de Melissa e Ana. Antes que eu diga alguma coisa, Ana se coloca a minha frente e surpreendentemente estende a mão para o rapaz:

    – Meu nome é Ana, prazer.

    Cadê a timidez da minha filha?

    – Prazer em te conhecer – diz Mark, sorrindo e apertando a mão de Ana – Você deve ser filha da Claire, certo?

    Que sorriso lindo ele tem:

    – Sou sim. Tenho três anos e quatro meses, e gosto de andar de patins.

    O que deu nessa menina?

    – Dele você não tem medo, né Aninha?

    Ela se vira para mim, sorrindo:

    – Ele é bonzinho, mamãe.

    Que menina mais maluca. Aproximo-me dela e a seguro pela mão:

    – Parece que alguém gostou de você Mark. Ela raramente se interessa por alguém.

    Mark vagarosamente se ajoelha na frente de Ana. Minha filha não tira os olhos dos olhos dele:

    – Você ajudou a mamãe, não é mesmo?

    Mark acena positivo com a cabeça e coloca a mão no rosto de Ana, que sorri para ele:

    – Você só tem três anos Ana? Você é muito inteligente.

    – Ela é superdotada – respondo ao rapaz – você já é a terceira pessoa que percebe isso. Gaia disse que ela tem chance de entrar na South Side, quando ela tiver a idade certa.

    Mark se ergue olhando para mim:

    – Quem sabe da próxima vez que eu estiver nesse hospital não será a doutora Ana que vai me tratar?

    Doutora Ana Reilly… nada mal…

    – Vou pedir para a enfermeira Gonzales ficar com Ana – diz Melissa – para podermos conversar.

    Melissa retira do gancho o telefone que estava a sua esquerda. Cara, o jeito que ela fala com os outros, com um tom sério e forte, é muito legal! Ela é muito fodona! Alguém tão jovem assim já dando ordens, sendo a melhor no que faz, deixando todo mundo no chinelo. Eu queria ser assim também, mas sei que não sou tão boa em contabilidade quanto ela é como enfermeira. Eu tenho a consciência que preciso melhorar muito pra chegar, pelo menos, no mesmo nível que eu tinha como ladra, em contabilidade. Como ladra eu era tão boa quanto Melissa é como enfermeira, mas como contadora eu ainda preciso baixar a cabeça pro senhor Broflovsky.

    Realmente eu era uma ladra boa do caralho! Lembro que às vezes eu roubava alguma coisa que nem precisava, apenas por diversão, por treinamento. Lembro que, quando eu tinha uns dezesseis, estava conversando com uns punks, depois de um show dos Misfits, e eles estavam contando vantagem, dizendo que eram os fodões e que todo mundo tinha medo deles. Eu já havia roubado uns duzentos de um segurança do show, nem precisava mais roubar, mas eu fiquei de saco tão cheio com aqueles babacas achando que o pau deles batia no joelho que eu roubei a caminhonete deles e larguei na frente de uma dessas igrejas cristãs extremistas de merda. Foi bem engraçado ficar espiando um bando de babacas de cara pintada brigando com outro bando de babacas de coletinho de lã.

    Acho que eu não devia mais sentir orgulho dessa merda. Gostaria mesmo é de ser boa em algo que não me colocasse atrás das grades, igual Melissa:

    – Mark, a Melissa realmente é muito boa, não é mesmo?

    Melissa me olha enquanto falo dela:

    – Ela é sim – responde Mark – Foi ela quem cuidou de mim esse tempo todo, que fiquei em coma.

    Mark sorri para Melissa e ela devolve o sorriso. Ela sorri pra ele de uma forma tão bonita, tão natural. Acho que ela deve ficar feliz em ver seu paciente, que estava em coma esse tempo todo, acordado e bem. Tudo bem que Mark está mais magro, mais do que ele já era mas, pelo menos, ele está acordado e consciente. Ela deve estar orgulhosa:

    A porta abre e outra enfermeira entra no quarto:

    – Onde está a menina, Melissa?

    – Ana – digo a minha filha – fique com a dona Gonzales. Preciso conversar com Mark e com Melissa. Daqui a pouquinho eu te pego e a gente vai embora, tá bem?

    Ana se aproxima da enfermeira, com a sua típica timidez. As duas saem da sala. Agora poderemos conversar sobre tudo o que aconteceu. Tenho um monte de coisas pra perguntar, e provavelmente um monte de respostas também.

    Sento-me na cama ao lado de Mark. Melissa se aproxima e senta na cadeira a nossa frente. Acho que podemos conversar:

    – Seu vestido está rasgado. Acho que a moda mudou um pouco nesse tempo que eu estava aqui.

    Acho que ele deu uma boa olhada pras minhas pernas. Se fosse outro cara eu ia ficar bem brava, mas ele pode olhar a vontade:

    – Bem… acho que podemos conversar agora, não é mesmo?

    Ele acena positivo. Acho que vou começar:

    – Você disse ontem à noite que estava ouvindo a minha voz durante todo o dia. Como era isso?

    Mark retira o sorriso do rosto e volta a ficar sério:

    – Ontem foi o dia que eu… acordei. Eu ainda estava em coma a essa hora, ontem.

    Puxa...

    – Então esse é seu primeiro dia após o coma? Caramba! Deve estar sendo meio confuso pra você. Lembro que meu primeiro dia eu mal entendia onde estava.

    Melissa entra na conversa:

    – Então você também já esteve em coma, certo Claire?

    Aceno positivo para ela:

    – Sim. Eu tinha treze anos. Fiquei mais de dois anos nesse mesmo hospital, por causa de… de uma coisa horrível que ocorreu comigo. Acho que pra mim foi mais difícil a recuperação porque eu fiquei mais tempo que Mark, e era muito nova. Tive que fazer bastante fisioterapia pra voltar a andar direito. Vai ver é por isso que eu não cresci muito. É surpreendente ver você consciente e forte desse jeito, Mark.

    Não consigo segurar o sorriso. É muito bom poder vê-lo vivo novamente. Acho que não vou conseguir segurar o que sinto por ele por muito tempo. Vou acabar abrindo o bico cedo ou tarde e dizendo que o amo, que pensei nele nesse tempo todo.

    Droga Claire, pense no bem estar dele! Se Rairin estivesse aqui com toda certeza ele iria me dizer pra ficar quieta sobre essas coisas, pra não confundir o rapaz mais do que ele já está confuso. Ele nem se lembra de mim e eu já quero sair falando que quero ficar com ele?

    Se bem que acho que ele meio que se lembra de mim:

    – E você me ouviu? Ouviu minha voz?

    – Mais ou menos. Eu ouvi… você chorando. Na hora eu não sabia que era você, mas quando ouvi sua voz dentro daquele prédio, não tive dúvidas que era você.

    Chorando?

    – Eu estava chorando? Mas você me viu chorando, tipo em sua mente?

    – Não. Eu ouvi você chorando. Eu sei que é esquisito, mas era a sua voz, disso eu tenho certeza. Ouvi você chorando o dia inteiro, dentro de minha cabeça.

    Não estou entendendo nada.

    Antes que eu diga alguma coisa, Melissa nos interrompe:

    – Mark me disse que se lembrava de uma mulher chorando, e que estava chovendo muito, e era de noite. Isso te faz algum sentido?

    Eu chorando em meio à chuva? Mas o que será que ele está…

    Espera um pouco… será que ele se lembrou da noite que ele morreu?

    – Mark, você lembra se houve uma…

    – Briga – diz ele me interrompendo. Lembro-me de uma briga, uma discussão. Lembro que era também sua voz brigando.

    Era exatamente o que eu ia perguntar a ele:

    – Mark – digo a ele, e pego um pouco de ar pra continuar – o que você estava ouvindo, realmente aconteceu. Nós realmente brigamos em uma noite de chuva, e eu acabei chorando. Isso que você estava ouvindo era uma memória.

    Os dois ficam me observando, esperando que eu continue, mas eu não sei como posso dizer a ele o que ocorreu, não sem traumatizá-lo pra sempre. Não posso dizer algo do tipo seu tio matou seu pai e você foi morto por ele pra me salvar, isso vai destruir a mente dele.

    Bem, vou tentar contar apenas o que não é tão pesado:

    – A noite chuvosa que você se lembrou foi a última vez que eu te vi. Nós discutimos por algum motivo idiota, e no final eu me arrependi muito de ter brigado com você, daí vêm o choro que você ouviu.

    Que historinha mais mal contada, Claire! É óbvio que ele vai querer saber mais:

    – Mas é só isso? Você disse ontem que achou que eu estava morto! O que aconteceu?

    Merda! Não vai dar pra escapar de falar o que aconteceu:

    – Nós… eu não sei como dizer isso, Mark.

    Melissa me olha no fundo da alma:

    – Claire, acho que Mark merece ouvir a verdade. Não esconda a verdade dele.

    Depois desse olhar, não tem nem como não obedecer. Realmente Melissa é muito maneira:

    – Mark, nós nos conhecemos durante as investigações de um homem chamado Vincent Rairin. Esse nome lhe é familiar?

    Ele pensa um pouco e acena negativo. Pela cara dele, ele realmente não se lembrou de Vincent. Bem, ele não gostava muito do inglês mesmo:

    – Então, Rairin estava investigando os assassinatos de um assassino que a mídia chamava de Imolador. Isso lhe é familiar?

    Tomara que ele acene negativo de novo. Se as memórias do pai dele morrendo vier à tona agora, não sei como ele reagirá. Eu reagi muito mal quando descobri o que ocorreu comigo no orfanato:

    – Não, não me lembro de nada disso não, mas uma coisa me veio à mente agora: por que acho ainda que meu nome é Steven, e não Mark?

    Aposto que ele disse isso porque de alguma forma, dizer o nome Imolador fez ele se lembrar do pai. Droga! Eu quase fiz ele se lembrar da morte do próprio pai em menos de dez minutos de conversa! Eu preciso tomar cuidado com o que falo se não vou acabar fodendo com a sua mente.

    Vou tentar falar de seu pai de uma forma bastante carinhosa e calma, para não trazer mais nada à tona:

    – O Steven que você se lembra vêm de Steven Walker Anderson, seu pai. Ele…

    – É o melhor chef dessa cidade – me interrompe Mark, com os olhos brilhando – suas especialidades são peixes e frutos do mar, e ele conseguiu um contrato no Aquarius. Com toda certeza aquele restaurante vai ganhar três estrelas Michelin, com meu pai no comando da cozinha.

    Melissa o interrompe:

    – Seu pai trabalha no Aquarius? Aquele restaurante chique do centro?

    – Sim – diz ele olhando pra Melissa – uma hora dessas eu posso te levar lá, pra provar o carpaccio de salmão com trufas que ele faz. É muito bom.

    Ele está falando de seu pai no presente, como se ele ainda estivesse vivo. Será que Mark não se lembra de que seu pai morreu? O que eu faço agora? Destruo esse sorriso e digo que seu pai está morto? Acho melhor dizer logo, uma hora ele vai querer falar com o pai.

    Mas e se eu falar e ele se lembrar de seu querido tio Norman? E se isso trouxer aquele Mark vingativo de volta?

    Que falta que Rairin faz numa hora dessas:

    – Então o nome inteiro de Mark é Mark W. Anderson?

    Ótimo! A curiosidade de Melissa vai me fazer tirar essa questão do pai dele da história:

    – Na verdade, seu nome completo é Sig Mark Anderson.

    Ele pensa um pouco e responde:

    – Sig? Esse é um nome bem estranho. Parece estrangeiro.

    Algo interrompe o belo rapaz. Ele olha para baixo depois para mim. Seus olhos estão bem confusos:

    – Eu sou estrangeiro, Claire? Tem algumas coisas na minha mente… palavras estranhas, em outros idiomas. Eu não sei explicar, mas parece que…

    Ele mesmo se interrompe. Tadinho:

    Scientia erit absólvat nos.

    Como é que é?

    – Isso é… latim?

    Eu ia fazer a mesma pergunta que Melissa fez:

    – Significa Conhecimento nos libertará. Acho que eu gostava de dizer isso para… os religiosos que batiam a minha porta no domingo de manhã – ele sorri para Melissa – Acho que meio que eu sou poliglota.

    Melissa sorri impressionada. Acho que estamos fazendo um bom progresso, no final das contas. Mark está se lembrando das coisas aos poucos, coisas leves, mas que estão preenchendo os buracos na sua mente. Acho que a experiência dele vai ser bem menos traumática do que a minha e eu me sinto muito satisfeita por fazer parte disso, de sua recuperação.

    Será que ele vai se lembrar de nosso beijo, e se ele gostava de mim? Será que ele realmente gostava de mim?

    – Eu… morava sozinho, disso me lembro – diz Mark, interrompendo o que eu estava pensando – e Melissa me disse que nunca tive visitas. Onde está meu pai?

    Droga! De novo com esse papo de pai?! Achei que já tínhamos passado dessa merda!

    Não quero ter que vê-lo do jeito que ele ficou quando me disse que seu pai havia sido assassinado. Ele vai pirar!

    – M-Mark, estamos muito cansados. Acho m-melhor continuarmos i-isso depois.

    Ele me olha por alguns segundos, e seus olhos me entregam que ele conseguiu ler o meu olhar, e o que ele leu deve ter sido horrível, porque o seu rosto se fechou por completo.

    Lentamente, Mark se levanta e caminha até a janela. Melissa me olha com o olhar mais sério que eu já recebi. Ela também sentiu que Mark está diferente agora, e que foi a merda que eu falei que fez isso com ele. É como se ela também estivesse me perguntando, sem dizer nada, apenas com os olhos. Abaixo o olhar para não olhar para a enfermeira, mas ainda sinto ela me olhando, devendo achar que eu devia calar a minha boca e chamar algum terapeuta para

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