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DAN PLAGG I: Porto das Bruxas
DAN PLAGG I: Porto das Bruxas
DAN PLAGG I: Porto das Bruxas
E-book432 páginas6 horas

DAN PLAGG I: Porto das Bruxas

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Sobre este e-book

Dan Plagg, um detetive particular, está passando por uma crise emocional e financeira, quando é contratado por um homem rico para investigar uma série de desaparecimentos no Porto Alegre de 1983. Conforme avança, o investigador percebe que há muito mais por trás daquela tarefa, encontrando em seu caminho algo insidioso e vil que vem agindo nas sombras da cidade há anos. Algo que vai fazer de tudo para permanecer oculto.
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento20 de fev. de 2023
ISBN9786525440736
DAN PLAGG I: Porto das Bruxas

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    DAN PLAGG I - Ben Schaeffer

    Agradecimentos

    Agradeço imensamente ao meu crítico e leitor voraz, Gabriel Feijó, que teve acesso quase diário a esta obra conforme eu a produzia. Agradeço aos meus parceiros do universo ficcional de outra obra literária que escrevo, As Crônicas do Reino de Puphantia. Obrigado, Alex Feijó, Cris Feijó e Fernando Webster, por suas opiniões e sugestões. É sempre divertido o brainstorm com vocês! Por fim, agradeço ao meu pai, Lenadyr, por me contar durante minha infância muitas das lendas e histórias que pude adaptar neste livro. Este romance só existe por sua causa, pai. Por isso, fica aqui o meu muito obrigado!

    1

    Acho que não há sensação pior que a de ressaca. A náusea e a dor de cabeça que a acompanha, a dificuldade em rememorar o que aconteceu no dia anterior. Eu me levantei da cama tropeçando nos lençóis e em um travesseiro que, em meu sono conturbado, havia jogado no chão. Eu não sabia que horas eram, se era dia ou noite, ao menos não de início. Queria um analgésico e precisava urinar com uma urgência que fazia tempo que eu não sentia. Minha bexiga doía pelo tempo que passei sem ir ao banheiro e foi um alívio quando me livrei daquele fardo. Abri a janela basculante cujos vidros eram escuros e pude ver, finalmente, que era dia, provavelmente o meio da manhã. Quando passei pelo espelho do banheiro, apressado, vi algo de relance. Depois que terminei de usar o vaso, voltei ao espelho e dei uma boa olhada no meu rosto. Não era apenas dor de cabeça, afinal. Tinha o olho esquerdo roxo com um grande inchaço na pálpebra. Arranjei uma briga ontem à noite e não faço ideia de quem vencera (ainda que eu suspeitasse que não teria sido eu, considerando o meu estado).

    — Idiota! – eu me xinguei, irritado.

    Olhando melhor, vi que a camiseta que eu vestia estava rasgada. E era uma boa camisa. Uma das poucas.

    — Você fez mais alguma besteira?

    Não tenho muito para oferecer em termos de sabedoria, mas posso aconselhar o seguinte. Quando você estiver em uma situação em que sua memória falhe, não pergunte coisas como a que eu perguntei. A resposta pode vir rápido demais, e você pode não estar preparado para saber seu conteúdo. No quarto, ao lado do banheiro, eu ouvi o leve ressonar de alguém que dormia profundamente. Na minha cama.

    Engoli em seco, esquecendo o analgésico em cima da pia. Fui caminhando de leve, tentando não fazer barulho (ainda que houvesse feito o bastante antes de perceber que tinha companhia).

    Nos lençóis, deitada de lado com os longos cabelos negros caindo sobre suas costas, uma mulher jovem dormia tranquilamente. Eu já sabia de quem se tratava e, por isso mesmo, queria me açoitar por ser tão imbecil. Em pouco tempo a situação poderia se tornar um inferno maior ainda do que minha vida já era.

    Eu fui para o lado da cama em que ela estava deitada, procurando não prestar atenção demais nos seios da mulher. Não foi uma tarefa fácil.

    — Ísis... – chamei, tocando seu ombro.

    Ela não deu sinais de que estava acordada, por isso chamei de novo.

    — Ísis, acorde!

    A mulher deitada não abriu os olhos, mas se virou na cama, estendendo os braços e exibindo aquele corpo jovem e esguio. Eu me sentei ao lado dela, meu braço se prendendo a cintura dela.

    — Vamos, abra os olhos, garota. Estamos com problemas.

    Ela abriu um olho, fixando-o em mim com um sorriso que fazia covinhas em suas bochechas.

    — Deita... Eu acabo com o problema rapidinho, vem.

    Eu quase esqueci por que isso seria uma péssima ideia.

    — Mulher, teu marido daqui a pouco vai vir aqui atrás de ti. Alguém pode ter te visto.

    O marido de Ísis era o dono do prédio no qual eu alugava um apartamento no centro da cidade. Eu estava morando naquele lugar havia pouco mais de um ano e conheci Ísis nos primeiros dias em que levei minhas coisas para lá. O senhor Lázaro devia estar na casa dos cinquenta, era gordo e careca, e ela era jovem, algo em torno de vinte e poucos anos. Bela, esperta e cativante. E era morena de pele clara e olhos verdes. Maliciosa.

    Honestamente, fui eu quem aproveitou uma oportunidade para cortejar quem não devia, mas depois disso... Às vezes ela aparecia no apartamento sem aviso, sem medo e com muito desejo. E eu não conseguia dizer não, mesmo sabendo que era a minha pele que estava em risco. Parecia que a mulher não tinha medo de nada. Já eu, bem, eu podia não ser um covarde, mas um corno ensandecido pelo ódio não era um adversário que eu quisesse ter.

    — O Lázaro viajou... Para de ser tão medroso – ela me informou com tranquila alegria. Depois, puxando meu braço para seu seio, me disse quase como um ronronar. – Podemos passar o dia todo juntos nessa cama. Vamos?

    — Eu... Eu... – Vou ser honesto. O único motivo pelo qual eu não concordei com a sugestão de Ísis era a dor de cabeça junto com meu olho roxo. Eu queria saber o que havia acontecido, e ela parecia ser a única fonte de informação disponível no momento. Negar o pedido dela não me impediu de aproveitar o tempo com a mão em seu seio farto.

    — Escuta – consegui finalmente dizer –, eu estou com esse olho roxo doendo e não me lembro do que aconteceu ontem. Preciso sair e descobrir o que mais eu andei fazendo de errado.

    — Ah, claro... O que mais eu fiz de errado? – Ísis me arremedou com irritação. – Eu não sou erro de ninguém, sabia?

    Ela se levantou, abandonando os lençóis, e, quando saia do quarto, tropeçou no mesmo travesseiro, que ainda estava no chão. Nua, foi algo curioso de ver, mas não me permiti deixá-la cair no chão. Eu a peguei pelo braço, a ajudando a se equilibrar. Isso não mudou seu humor, que afastou seu braço de mim assim que conseguiu se firmar sozinha.

    — Ísis, não faça assim.

    — Não se preocupe, Dan. Eu não vou ser algo errado pra você de novo. Fique tranquilo. Ah, eu te ajudo a lembrar o que mais de errado você fez ontem. Vai lá no bar Santa Cruz e pergunta pros teus amigos, seu babaca!

    Ela deixou o apartamento batendo a porta com força e seguiu para o apartamento do andar de cima totalmente nua e sem nenhuma preocupação. O marido dela, Lázaro, viajava frequentemente e em mais de uma ocasião me perguntei qual seria sua real atividade. Às vezes eu o via junto de dois ou três sujeitos mal-encarados, o que só fazia com que eu tentasse me afastar de Ísis ainda mais.

    Eu cocei a cabeça, que ainda doía, oscilando entre surpresa e deslumbramento. Esse misto de sensações não durou muito, é claro, e logo voltei para o banheiro, pegando finalmente o analgésico que eu havia deixado na pia. Meu olho esquerdo não estava tão ruim quanto eu havia pensado, afinal.

    Estava inchado e roxo, é claro, mas não doía tanto. Eu ainda fiquei algum tempo no apartamento, arrumando um pouco as coisas. O lugar estava revirado da sala à cozinha, do banheiro ao quarto. E eu não me lembrava muito da noite anterior, o que me irritava profundamente.

    Depois de terminada a arrumação rudimentar do que eu chamava de lar, tomei um banho e procurei alguma roupa limpa para usar. Me restava uma camisa polo cinza e uma calça jeans velha, mas limpa, que eu tratei de vestir e então calcei os sapatos cujas pontas já estavam precisando de um pouco de cera. Não estava sendo um bom dia e piorou um pouco mais ao olhar dentro de minha carteira e encontrar somente os documentos de identidade e do carro, que não tinha gasolina. Graças a Deus pelo menos os documentos estavam ali, mas eu lembrava que tinha algumas notas que, pelo visto, a noite anterior havia consumido.

    Eu saí do apartamento, tendo o cuidado de chaveá-lo. Não queria que alguém aparecesse por lá sem que eu estivesse – sim, eu me refiro à Ísis. Por mais irritada que ela estivesse quando saiu, eu tinha certeza de que isso não duraria muito. Nesse último ano eu não aprendi muito sobre sua vida, afora o que gostava ou não gostava na cama, mas uma coisa que eu aprendi é que ela voltava com frequência, independentemente do dia ou do que eu falasse, mesmo quando isso a irritava. Anotei mentalmente que deveria saber mais sobre minha amiga, coisa que eu já deveria ter feito havia tempos. O problema nisso é que conhecer alguém dessa forma geraria uma intimidade que eu preferia não ter. Ao mesmo tempo, não saber nada sobre uma pessoa a tornava imprevisível, e isso já estava se tornando cansativo quando se tratava de Ísis.

    Me forcei a tirar esses pensamentos da cabeça e me dirigi ao bar Santa Cruz.

    2

    Você sabe que fez algo errado quando chega a algum lugar e todos os presentes ficam em silêncio por algum tempo, te olhando, como se você fosse algo semelhante ao que um gato trouxe da rua. Foi mais ou menos assim que eu me senti, quando coloquei os pés no Santa Cruz. Os bebuns de sempre estavam lá, como se fizessem parte da mobília. O dono, o seu Ferreira, um homem magro que, já beirando uns setenta anos, tinha os cabelos muito castanhos bem penteados, era um sujeito de riso fácil em dias normais. Naquele sábado, Ferreira parecia um tanto acabrunhado. Ignorando as vibrações negativas que eu sentia vindo daquelas pessoas, segui em frente. Precisava resolver isso.

    — Ferreira! Preciso de uma ajuda sua – fui logo dizendo. Eu não estava nem um pouco satisfeito em ter que investigar meus próprios passos e não estava gostando dos olhares que estava recebendo.

    — Mais ajuda, Dani? – Ferreira me fitou com irritação. Mais ajuda? Que merda eu tinha feito?

    — É Dan, Ferreira, Dan. – Eu vivia corrigindo os outros. Eu contava às pessoas que minha mãe havia gostado da sonoridade desse nome, quando o ouvira em um filme de faroeste muito tempo atrás. Assim eu fui premiado com um nome que facilmente virava um apelido. Isso porque meu nome só tinha três letras.

    — Dani, se você veio incomodar as pessoas daqui de novo, pode dar meia volta. Não tem mais caderninho de contas pra você aqui.

    — Como é? Caderninho? Desde quando eu tenho isso?

    — Desde ontem, e já cancelei seu crédito. Nunca mais. – O velho cruzou os braços, como se esperasse um pedido de desculpas.

    — Seu Ferreira, eu não faço ideia do que aconteceu ontem. Preciso que me conte, por favor.

    — Ah, então você não se lembra?

    — Se estou perguntando... – Tentei não dar muita ênfase nisso, para que o velho não achasse que o estava chamando de burro.

    O homem bufou um pouco e estava começando a falar, quando foi interrompido por um dos pinguços, o Palomba, um sujeito baixinho e narigudo que vivia indo e vindo para o bar. Ele morava perto dali e acho que o Santa Cruz era como se fosse sua segunda casa.

    — Você entrou aqui com um sujeito. Todo mundo achou que vocês eram amigos. Não lembra? Disse que estava sem dinheiro e pediu pra pôr as bebidas e os salgados que comeram na conta.

    — Foi, é? – Quem diabos era o sujeito? – E o que mais aconteceu, Palomba?

    — Eu te conto, rapaz – Ferreira interrompeu a história de Palomba, irritadíssimo. – Você abriu a conta e ficou bebendo com o sujeito naquele canto.

    Olhei para onde Ferreira me indicava, mas só tinha o piso vazio, sem mesas ou cadeiras.

    — Ali?

    — É... depois de uma meia hora, lá por volta das onze da noite, vocês começaram a se alterar, e o homem te ameaçou. Deu pra ouvir ele dizendo ela não fez isso!.

    — Porra... – As coisas começavam a se encaixar. – E depois?

    — Depois ele foi na sua direção, e você parecia um pouco bêbado, mas não tanto quanto o sujeito. Você escapou de tomar um soco no rosto por pouco. Daí foi você quem acertou o homem no queixo. O sujeito caiu em cima da mesa e quebrou ela inteira. A propósito, você me deve a mesa e a cadeira.

    — Mas eu quebrei uma cadeira?

    — Sim, logo depois que o homem caiu, você pegou a cadeira e acertou nele em cheio, quando ele tentou se levantar.

    — Ah...

    — Depois disso, você o pegou pelo colarinho e disse que provas eram provas e ele te devia pelo trabalho. O que você anda fazendo, Dani?

    — Fotografias de festas de aniversário – menti descaradamente. Não queria ninguém sabendo no que eu trabalhava, afinal.

    — Então a festa foi memorável pra esse homem, porque, mesmo depois de apanhar, ele estava furioso. A essa altura a gente segurou o sujeito e o escorraçou daqui. Você, por outro lado, xingou e chamou a gente de bando de frouxos.

    — Seu Ferreira, me desculpa...

    — Não quero saber, Dani – o velho negou meu pedido de desculpas com um gesto brusco. – Fica um tempo sem vir aqui e depois vem me pagar. Toma a despesa.

    Peguei a anotação que o homem me entregava, bastante desapontado com a história. E, para piorar, estava sendo expulso de um boteco que eu gostava de frequentar com meu amigo Fido. Antes de ir embora, eu me voltei ao senhor Ferreira mais uma vez.

    — Seu Ferreira, foi o homem de ontem que me acertou o rosto?

    — Não, o pobre coitado só apanhou. Alguém te deu o que você merecia em algum outro lugar.

    — Obrigado... Desculpe de novo. Vou pagar pelos estragos e volto daqui algum tempo, quando você já tiver me perdoado pela confusão que causei.

    Ferreira não me deu atenção, dirigindo-se ao balcão para limpar as garrafas de bebida. Fui embora cabisbaixo.

    Enquanto voltava para casa, ia me lembrando das fotos e do sujeito. Não era um dia bom para o homem. Ele se chamava Saulo Vieira. Era um industriário que trabalhava no ramo de metalurgia.

    Eu lembrei que havia marcado com ele para tratar do serviço que ele havia me encomendado. Um caso simples de adultério. Não gostei do sujeito à primeira vista. Ele queria saber se a mulher o traía. De fato, ela o traía. Foi um trabalho fácil, na verdade. O problema é que a mulher, uma senhora bonita beirando os quarenta anos, não saía com apenas um único amante, e depois, quando apresentei as fotografias ao senhor Saulo, ele surtou. Ficou furioso comigo, como se fosse eu mesmo quem houvesse comido a mulher dele. As memórias vinham chegando aos borbotões agora. Eu lembrei que fora ele quem viera atrás dos meus serviços e que eu jamais iria me sujeitar a produzir fotos falsas para ganhar dinheiro. Os ânimos foram se exaltando, e, por fim, o sujeito tentou me agredir. O resto aconteceu como Ferreira havia narrado.

    A conta do estrago eu iria pôr no valor que cobraria do ilustre senhor Saulo, corno mal orientado em sua fúria. Ao menos não seria uma perda financeira, já que meu amigo Fido cuidava dessa parte, quando cobrar uma conta se mostrava particularmente difícil. Era uma zona cinzenta essa das questões de fidelidade conjugal. Por mais que eu fotografasse essas pessoas, nunca fiz julgamentos quanto a seus comportamentos. Às vezes, no entanto, pensava no quanto deveria ser extenuante precisar guardar segredos.

    Voltei devagar para casa, o sol da tarde era agradável e percebi que o que quer que eu houvesse bebido não me causara uma ressaca tão danosa. Andar pela rua dos Andradas era um hábito que eu adquirira, quando me mudei para o centro. Eu preferia, é verdade, dias nublados e chuvosos, não me pergunte por quê, mas não me incomodei com o clima. Pensava, preocupado, no que iria fazer sem nenhum trocado no bolso. E havia o mistério do soco no olho. Não me lembrava de como isso havia acontecido de jeito nenhum.

    Quando cheguei ao apartamento, a tarde já estava acabando, o sol descendo lentamente, deixando o horizonte com aquela cor alaranjada bonita. Eu parei para observar o fenômeno por um momento e depois subi as escadas até o quarto andar.

    Quando abri a porta notei um bilhete deixado na fresta. Tinha duzentos cruzeiros presos ao bilhete por um clipe.

    Esses duzentos cruzeiros pagam o que peguei emprestado com você ontem à noite. A essa altura já te explicaram o que você andou fazendo ‘de errado’. Sobre o olho roxo, desculpe, querido. Estava empolgada demais ontem por poder passar a noite com você e, quando tirei a blusa, não vi você se abaixando sobre mim. Pensando bem, já que eu sou ‘um erro’, você bem que mereceu a pancada. P.S. Te perdoo por você ser um babaca às vezes. Adoro olhar pra esses teus olhos cinzentos e sentir a sua barba por fazer no meu corpo, sabia? Fica difícil ficar brava por muito tempo. Acho que o Lázaro vai voltar só amanhã. Vou bater na sua porta perto da meia-noite, se ele não chegar. Me espera!! Ass. Ísis.

    Porra... Pelo menos agora eu tinha algum dinheiro e sabia como havia tomado um soco no olho. Eu havia esquecido totalmente que Ísis pedira o dinheiro antes de eu ir ao encontro com o senhor Saulo. E foi por isso que precisei abrir uma conta com o Ferreira. Fechei a porta quando entrei e apaguei todas as luzes. Não importava o quanto eu quisesse receber a Ísis, uma hora todos arranjamos problemas. E trabalhando no que trabalho, eu sabia melhor a respeito disso do que ninguém.

    3

    A noite de domingo serviu para eu descansar um pouco e colocar as ideias no lugar. Já havia feito muita besteira em um único final de semana, e o fato de ter ferido meu cliente não era nada bom. Por mais que houvesse ocorrido uma agressão vinda dele inicialmente, eu havia quebrado uma cadeira no homem. Beber demais era algo que eu não fazia havia tempos, o que por si só era motivo de irritação e preocupação. Digamos, eu iria fazer isso de novo? Podia confiar em mim mesmo? Naquele dia eu não sabia, então me dispus a tentar manter uma distância razoável desse possível vício. Na noite anterior eu simplesmente ignorei as batidas à porta de entrada, ciente que estava das intenções da minha vizinha. Certamente eu iria ouvir alguns desaforos depois, mas não era nada que eu já não tivesse ouvido antes.

    Eu abri a janela da frente do apartamento quando já passava da meia-noite e acendi um cigarro, enquanto a tevê da sala passava algum filme. Eu não estava realmente atento a isso, sentindo a fumaça inalada invadir meus pulmões. Dia difícil, eu disse a mim mesmo. Só com o dinheiro que Ísis me dera eu consegui comprar algo para comer, além dos cigarros que eu tinha no bolso.

    — Amanhã vai ser um dia melhor – eu disse a mim mesmo, olhando para o movimento na rua.

    Abaixo, um casal caminhava trôpego no cordão da calçada. A impressão que eu tinha é que eles tentavam se abrigar nas luzes dos postes. Dou razão a eles. O lugar em que eu morava não era exatamente seguro à noite. Quando fui policial, alguns anos antes, eu detestava os plantões. Às vezes recebíamos chamadas em decorrência de algum latrocínio. Deus, como eu odiava ser incumbido dessas tarefas. Eram sempre casos de pessoas que perdiam a vida por um ladrão que ou estava chapado demais, ou era maligno demais para deixar as vítimas vivas. Para piorar, muitos deles eram presos e liberados logo em seguida, o que tornava tudo ainda mais sem sentido.

    Ainda lembro do rosto de uma menina de cerca de quatro ou cinco anos, os olhos vidrados olhando para o nada. Os cachinhos louros, que lhe enfeitavam o rosto, salpicados de sangue. Naquele dia eu rezei para que o assaltante reagisse à nossa abordagem, quando o localizamos. Mas ele não reagiu. Alegou, depois em juízo, que não tinha ciência de seus atos, toxicômano que era. O juiz, no entanto, não aceitou a defesa do réu, e ele foi preso por alguns anos. Considerei isso muito pouco pelo dano que ele causou. Certas coisas não possuem uma balança que encontre equilíbrio. Eu deixei a polícia dois anos depois desse episódio. Foi melhor assim, considerando o tanto de bebida que eu andava ingerindo e o excesso de truculência que eu vinha aplicando em marginais.

    Eu terminei um segundo cigarro antes de me deitar. Desliguei todas as luzes da casa e fechei a janela da frente. Eu ouvi a campainha tocar duas ou três vezes, mas não saí do lugar. O sono foi chegando devagar e o som da campainha se tornava algum outro barulho que o sonho que me alcançava aproveitava como elemento narrativo. Dormi pesadamente sem nenhuma lembrança residual de algum sonho que eu tenha tido.

    4

    A segunda-feira amanheceu nublada e com aquele jeito que, ao abrir a janela, você já percebe os presságios de que a chuva viria em seguida. Liguei o rádio que tenho sobre uma cômoda ao lado da cama e ouvi a previsão do tempo. Sem surpresa, soube que fortes chuvas viriam durante toda a semana. Depois, ao descer as escadas do prédio encontrei com Ísis — muito mal-humorada — que fez questão de me ignorar. Eu respirei aliviado de que ela não tenha dito coisa alguma. Quem sabe ela desistia e me deixava a sós com meus pensamentos pelos próximos dias? E quem sabe eu conseguisse parar de provocá-la? Fato é que sou tão culpado quanto ela, e esse jogo é divertido, mas com prazo para acabar. A verdade é que estou cansado disso.

    Enfim, antes de ir ao meu escritório, eu telefonei para Fido de um orelhão próximo do apartamento. Ele não atendeu e, não tendo muita alternativa, dirigi-me ao metrô, onde eu alugava um armário que recebia minha correspondência. Era dessa forma que eu me comunicava com a maioria dos meus clientes. Eu ainda não expliquei exatamente o que faço. Meu nome é Dan, como já disse antes. Dan Plagg é meu nome de batismo, caso queira uma informação mais completa. Já fui policial civil e depois disso tive alguns empregos, mas hoje sou detetive particular, o que provavelmente foi possível deduzir com o caso do senhor Saulo Vieira. Gostaria muito de dizer que é um trabalho emocionante, mas a dura realidade é que praticamente todos os meus clientes são homens ou mulheres que desejam saber se estão sendo traídos por seus parceiros. Em muitos casos, a traição pode envolver altas somas em dinheiro em virtude de algum pacto antenupcial, o que acaba tornando de grande importância saber o que uma das partes do casal anda fazendo.

    Em minha experiência, muitos dos casos que atendi demonstraram apenas excesso de ciúmes por parte dos contratantes. Em outras situações, descobri coisas tão variadas, que algumas vezes me senti incomodado em saber da vida pessoal de alguns dos traidores e traidoras.

    Não estou aqui para julgar ninguém, mas nem sempre meu trabalho é gratificante. Quase nunca é. No entanto é um mercado que nem todo mundo tem estômago para se aventurar e paga as minhas contas. Em um mês bom, consigo me virar bem o bastante para guardar algum dinheiro para o mês seguinte e até para pôr gasolina no carro.

    Naquele mês de abril, as coisas haviam estagnado, para minha decepção. Eu precisava falar com Fido para tratar do serviço com o senhor Vieira, uma vez que, depois de nosso pequeno desentendimento, aquele sujeito certamente iria se negar a pagar o que me devia e, estando as coisas como estavam, eu não podia me dar ao luxo de não receber aquele pagamento. Fido com certeza iria me xingar bastante, mas ele me conhecia havia tempo demais para saber que eu não deixaria alguém tentar me agredir (mesmo que eu não me lembrasse muito bem disso) sem tomar alguma medida imediata. Eu começava a suspeitar que talvez Vieira houvesse feito uma encenação justamente para não pagar pelo serviço.

    Ao chegar ao metrô fui direto para o armário, que estava abarrotado de anúncios e uma variedade de cartões de visita com todo tipo de oferta. Joguei tudo na lixeira e separei apenas duas cartas endereçadas a mim. Poderiam ser potenciais clientes, e eu precisava muito de novos trabalhos.

    Guardei as cartas comigo e depois peguei um ônibus para a zona norte da cidade. Eu tinha uma sala alugada bem longe de casa, justamente para não facilitar que me encontrassem. Mesmo a sala em que eu trabalhava raramente recebia visitas de clientes. Eu preferia assim, já que discrição era algo fundamental na minha linha de trabalho. O caso de Saulo havia sido uma exceção, pois ele veio até mim por um antigo colega da polícia e, em retrospecto, preferia que o sujeito não tivesse feito essa indicação.

    Chegando à Assis Brasil, próximo ao viaduto do Obirici, fui direto para minha sala, no terceiro andar de um prédio comercial sem elevador. A impressão inicial, quando aluguei a sala, é que o lugar, originalmente, havia sido construído para ser um prédio residencial, mas que, por questões financeiras, foi convertido em conjunto de escritórios. Desde que me instalei aqui, passei a utilizar um dos cômodos como câmara escura, já que revelar certas fotos pela via comercial não seria sensato. Fora a cozinha, minha sala e essa câmara, os demais cômodos estavam vazios. Eu me sentei em minha cadeira, depois que abri as janelas e coloquei os envelopes em cima da mesa do escritório. Confesso que abri o primeiro envelope com uma certa expectativa. Em minha mesa, as câmeras que eu usava para meu trabalho estavam com filmes e pilhas novinhas. Faltava um trabalho apenas.

    Infelizmente, a primeira carta não tinha nada de interessante. Era apenas uma proposta de serviços para captação de clientes por telemarketing. A ideia era que oferecessem meu trabalho através de contato direto a potenciais clientes. Imagino o quanto seria constrangedora uma conversa sobre o que eu fazia entre um vendedor e uma dona de casa. A senhora desconfia do seu marido? Dan Plagg pode lhe auxiliar a descobrir o que ele faz, quando não está em casa. Seus preços são justos, e ele garante total discrição. Que idiota. Eu joguei fora a proposta e olhei para a outra carta.

    O envelope era de um tipo de cartão, um tanto mais caro que o primeiro e tinha um selo com um símbolo que eu nunca havia visto, no canto esquerdo superior. Eu abri o envelope com mais cuidado. Dentro havia uma carta e várias fotos. Normalmente era eu quem batia fotos, então achei curiosa essa troca de papéis. Lá fora começava a chover, os pingos estavam batendo no vidro da janela com intensidade cada vez maior.

    As fotos eram variadas, todas capturadas no parque da Redenção. Eu conhecia bem o lugar. A princípio, pareciam desconexas, já que aparentemente não possuíam nenhuma relação umas com as outras. Eram fotos com crianças brincando, outras com casais de mãos dadas e, ainda, fotos em que não havia ninguém em primeiro plano. No entanto deveria haver alguma lógica naquilo. Afinal, ninguém manda cartas sem sentido a um investigador. Eu, pelo menos, acredito nisso.

    Conforme a chuva aumentava, o céu se tornara escuro, o que me fez acender as luzes da sala. Alheio que estava para com as cartas, havia me esquecido disso. Talvez eu só tenha percebido o que as fotos tinham em comum por causa da luz.

    Em cada uma delas, fosse ao fundo, ou nos cantos da imagem, havia sempre um ornamento estranho. Era curioso, já que não fazia muito sentido. Lembrava um tipo de enfeite, aparentemente. Eu peguei uma lupa para poder tentar ver melhor. Não era um enfeite, e sim uma espécie de tecido amarrado a alguma outra coisa. Às vezes estava preso a uma árvore, às vezes perto dos brinquedos da praça ou perto do monumento no centro do local. Parecia também um saco, não muito grande, branco e com... com uma coroa de flores sobre ele? Senti um calafrio. Mesmo tendo reconhecido o elemento comum às fotos, eu não estava entendendo o que aquilo significava. Não estava gostando nem um pouco daquilo, para ser sincero. E, mesmo assim, não conseguia tirar os olhos das fotos.

    Com um pouco de resistência consegui deixar as fotos de lado e me voltei finalmente à carta.

    5

    "Senhor Plagg.

    Creio que a essa altura o senhor verificou as fotografias que foram remetidas junto desta carta. Certamente, pela sua profissão, o senhor percebeu algo estranho em todas as imagens. Caso o senhor ainda não o tenha feito, verifique o verso das fotografias. Cada uma dessas imagens foi registrada em um ano diferente a partir de 1968. Eu não possuo registros anteriores, mas acredito que o mesmo objeto que o senhor localizou deva ter aparecido em outros momentos antes desse ano.

    Sou, por assim dizer, um caçador desses elementos estranhos e posso afirmar sem medo de errar que o que o senhor tem em mãos agora é um elemento estranho em nossa cidade.

    Eu gostaria que o senhor respondesse ao meu contato pelo número de telefone que se encontra ao final desta missiva. O que me preocupa, caso o senhor esteja se perguntando, é o conteúdo dos sacos brancos que aparecem em todas as imagens. Sua profissão exige curiosidade, suponho, e creio que o que lhe mostrei deva ter lhe suscitado um mínimo de interesse. Desde já lhe informo que o senhor será devidamente remunerado pelo trabalho.

    Algo muito sério tem acontecido em Porto Alegre bem debaixo de nossos narizes, meu caro senhor, e temo que muitas pessoas irão interferir em nossa investigação.

    Aguardo seu contato para definirmos o valor de seus honorários e, após superada essa questão, nosso plano de ação.

    Com meus respeitos,

    Anton Dietrich

    Porto Alegre, 9 de abril de 1983."

    6

    Eu li aquela carta duas vezes. O tal senhor Anton não parecia maluco, era articulado e realmente estava falando do que eu havia constatado antes de ler a carta. As datas no verso das fotografias eram de anos diferentes, sempre entre os meses de maio a julho. Entre o fim do outono e parte do inverno.

    Fiquei curioso com aquela história, é verdade. Por outro lado, a simples ideia de percorrer tantos anos atrás de um elemento estranho como aqueles sacos presos no parque parecia algo saído de um livro. Quem me garantia que o sujeito não tivesse informado datas falsas nos versos das imagens? E de onde saíra um sujeito como aquele? Certo, uma parte de mim queria mesmo saber quem era aquele sujeito, mesmo parecendo algo meio tolo. E eu seria remunerado, lembrei. Talvez valesse a pena conversar com o senhor Dietrich pelo menos. Se fosse maluquice, então eu simplesmente

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