O Baloeiro
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O Baloeiro - Aparecido Galindo
Aparecido José Galindo
O baloeiro
1
O baloeiro
Ao caminhar, herança libertária do homem nômade.
2
Aparecido José Galindo
I
praia! Sonho de todos em qualquer feriado.
Não que desejemos fugir da cidade, não é
A bem isso, a praia é maravilhosa! Quando
falo praia, entenda-se como tal, uma faixa
de areia grossa, mergulhada em montanhas que abraçam o mar no
litoral sul ou no litoral norte. Talvez sejam aqueles morros se
banhando na água salgada do atlântico que tanto nos seduza. Desço
para a praia com Fábio, colega de trampo, amigo de longas datas e de
grandes noitadas. Trombamos também muitas coisas difíceis neste
mundo. Subindo a favela da vila São Pedro a toda e qualquer hora.
Jogando futebol nas quadras abandonadas da cidade. Mas assim é a
vida, aqui estamos, indo para o litoral, para passarmos mais um
feriadão em Praia Grande. É dia de finados, muitos ainda visitam seus
mortos, rezam missas e vão ao culto... Nós vamos à praia. Aonde as
mina dão mole pra qualquer moleque que tenha uma boa conversa e
um carro da hora.
- Caramba Wildner, hoje ta foda para descer a serra!
3
O baloeiro
- Eu falei para você Fábio que o melhor era descer pela Imigrantes,
mas você preferiu a Anchieta.
- Dá tudo no mesmo cara. Olha, faz três horas que saímos de casa. Em
um dia normal gastaríamos no máximo uma hora e olhe lá.
- Foda né! Mas vai de boa, logo, logo a gente chega.
- Uma coisa é certa, a praia num vai fugir.
- A praia pode até não fugir, mas o feriado sim. Você chamou as
minas do RH?
- Claro véi. Você acha que viríamos para a praia por quê? Para tomar
cerveja? Ta tudo no esquema, a Dani ta no papo, e se você quiser catar
a Natália, vai fundo, a mina é facinha, facinha.
- Catar mina de trampo é osso, depois complica...
- Complica o quê? É só dar uns beijos e já era. Agora se você for com
história de romance, aí fudeu, dá merda mesmo.
O Fábio fala como se fosse o cara mais catador de mulher do
mundo. Nem parece que foi ele quem ficou uns dois anos correndo
atrás de uma mina que trabalhava na inspeção.
- É mais você num pode falar muito não. Lembra da Jerly?
- Aquilo é passado.
4
Aparecido José Galindo
Eu sabia que ia falar isso. A Jerly é uma mina que saiu com metade
dos malucos da fábrica. Branquinha, cabelo pintado de amarelo,
cochas grandes e os peitos pequenos. Fez a alegria de muita gente na
inspeção. Chegava na firma de salto, calça jeans colada e blusa com
os dois primeiros botões abertos. Tinha um rosto meio oval, as
sobrancelhas finas. O Fábio saiu com ela uma vez e já ficou
apaixonado. Mas essas minas cheias de fogo não se contentam só com
um homem, não demorou muito, saiu fora. Ele ainda passou um
tempão correndo atrás. Nem vou mais tocar no assunto, fica nervoso.
O carro chega a um enorme viaduto. Carros sobem, nenhum desce.
Todos parados. Gosto da serra do mar. Tem, sei lá, um sabor de
infância. Desde que eu era pequeno, a nossa família descia para passar
o final de ano na praia. Era eu, o pai e a mãe. Parece ser uma coisa
boba, mas marca pra caramba. Nossa casa na Vila São Pedro ainda
não tava pronta, morávamos em um quartinho, enquanto íamos
construindo o resto. Estudava em uma escola municipal. Era pequena,
tinha um pátio aonde brincávamos cercados por inspetores de caras
muito feias. Os fundos eram meio abandonados e dava para fugir com
facilidade. As paredes viviam cheias de mensagens como: Não corra,
não pule, não grite não bata no amiguinho. As tias da cozinha eram
muito legais, nos defendiam nas brigas e nos davam as bolachas que
iam apodrecer na dispensa. Não me lembro da diretora, nem sei se
existia, mas era sempre invocada como a pior das pragas, por nossa
professora. Naquela época eu via meus pais muito pouco, pois desde a
creche, eles trabalhavam demais. Minha mãe era vendedora de roupas,
numa antiga loja que ficava na Marechal Deodoro, meu pai
5
O baloeiro
metalúrgico. Ir ao centro de São Bernardo, só para comprar alguma
coisa. Cinema, esses bagui assim, quase nunca. Só depois que eu
cresci aí passei a andar mais por aqueles lados. Ainda hoje nossa casa
é no morro. Vivemos segurando o barranco com os olhos para ele não
cair. Mas é um casarão. Têm dois andares, oito cômodos. O pai
contínua na firma. A mãe mudou de emprego. Trabalha para o
governo.
- Olha lá Wildner, as luzes de Santos.
- Mó da hora né!
- O apartamento de meu pai ta vazio, só vai ficar nós dois e as minas,
você acha que vai dar certo?
- Vai ser uma zoeira daquelas.
- Com certeza. Elas vêm de carro, vamos nos encontrar a noite, no
quiosque 13, no calçadão.
- Beleza.
- Você ainda ta naquelas pegadas de balão?
- Claro meu! Adoro balões.
O trânsito melhora. Estamos chegando a Cubatão. Sinto um cheiro
insuportável. Deve ser o mangue. A serra acaba. Entramos à direita,
sentido Santos. A orla está pontilhada de luzes. Elas começam na
praia e sobem até os morros.
6
Aparecido José Galindo
- Quando vai ser a próxima soltura.
- Você vai?
- To pensando.
- Tem que ser ponta firme, vai ou não?
- Vou!
- Vai ser o mês que vem em São Paulo. Será muito louco.
- Você desenhou esse balão também?
- Sim, é o quinto balão que eu desenho. Ficou irado cara. É um
modelo Pião, seis metros, bandeira linda e com uma fogueteira maior
que todas as outras que fizemos.
- Deve ser mó grana para fazer um bagui desses?
- Verdade, sai caro.
- E quem paga?
- A galera se junta, cada um dá um pouco.
- Da hora, vou lá sim. O Júlio vai também?
- Vai sim, claro. Ele não perde nenhuma.
- Em São Paulo é complicado. É melhor andar por lá preparado.
7
O baloeiro
- Verdade. Mas os caras tão com a gente. Num rola nada não.
- Eu é que num colo num lugar daqueles sem uma arma.
- Se quiser levar, fica de boa, mas não precisa.
- Certo.
Fábio confia muito nas armas. Eu acredito que o que importa
mesmo é ser bem relacionado nas quebradas. Solto balões há anos e
nunca rolou nada de ruim. E olha que eu causo! Quando um balão
sobe é como ganhar um campeonato. Aí vem a parte mais legal:
Correr atrás dos restos do balão. Às vezes a gente passa a noite toda
cercando, correndo atrás, para pegar o balão caindo. Subir em telhado,
pular muro é comigo mesmo. Qualquer coisa que salvamos, vale mais
que um troféu. Às vezes não dá para salvar nada. A gente chega tarde,
já tem queimado tudo. Outra equipe já tem recolhido... Bom já passou
Santos e São Vicente, agora ta pertinho é só entrar, tomar aquele
banho e ir ver as minas na praia, pois essa noite vai ser longa.
***
A lembrança do Illamy ainda faz tremer os meus olhos. Vez por
outra recordo sua branca silhueta nas frias manhãs de El Alto.
Velando sobre meu povo, eu o admirava da Av. João Paulo II.
8
Aparecido José Galindo
Mantendo-se fiel as nossas crenças mais antigas, ele continua
enviando as chuvas para a fartura das colheitas e saúde para nossa
gente. Nossa pequena casa, ainda deve ter a mesma aparência.
Sentindo minha falta, no final da tarde, mamãe lembra de mim
voltando do trabalho, trazendo bolachas e pães comprados na padaria
da esquina. Meu irmão caçula brinca com os amigos, agora sem os
meus cuidados. Mas as ruas ainda devem ser perigosas, com toda
sorte de carros, motos e bicicletas. Cada momento vivido aqui pesa
em minhas costas, pela forma como trabalho. Os olhos já não têm a
mesma energia para perceber o que vem distante. E os dedos já se
mostram sem a agilidade de antes. Tio Patiño vive aqui há muitos
anos, e sabe o que faz, devemos confiar nele. Afinal a vida em El Alto
não é nenhum paraíso. Contávamos apenas com a proteção do Illamy.
No centro comercial onde trabalhava em Tupac Katari, a vida passava
sem pressa. Um dia conseguia vender bem. No outro não vendia nada.
Passávamos os dias conversando na feira. Aqui é diferente. Difícil
parar e conversar com as pessoas que passam horas a fio do nosso
lado. Pouco, quase nada conheço de São Paulo. Na verdade sai
algumas vezes da oficina. Sei que o nome deste bairro é Brás, apenas
por que ouço tio Patiño comentar com os meus primos.
- Mercedes!
- Sim, tio.
- O que pensas tanto? Temos dez mil peças para entregar esse mês!
9
O baloeiro
O seu nariz parece mais torto. Tenho uma vaga lembrança de
quando ele foi quebrado. Eu era muito pequena. Acho que foi durante
um Tinku.
- Tio, preciso sair.
Peço sem maiores pretensões. Ele não permite que a gente saia da
oficina, assim sem mais nem menos.
- Essa semana não vai dar. Estamos atrasados com a encomenda.
- Mas você me disse que quando eu quisesse sair era só pedir.
- O que você quer? Diga que eu vou lá e compro.
- Constanza saiu à semana passada, por que não posso sair?
- Por quê? Por que Constanza está aqui há cinco anos. Você pensa que
isso aqui é El Alto?
- Não, claro que não.
- Tenha paciência. Chegará o dia de você conhecer a cidade.
- Está bem
- Mas para que as coisas deem certo você precisa se dedicar mais.
Veja essas calças, muitas serão descartadas. Isso é matéria-prima
desperdiçada, dinheiro jogado fora. Além do mais, você ainda me
deve bastante, praticamente toda a comida e o aluguel do mês
passado.
- É que a minha máquina está com defeito.
- Por que não me falou antes. Vou pedir para o Pedro fazer os reparos.
10
Aparecido José Galindo
Tio Patiño não mudou muito. Quando saiu de El Alto, era um ex-
mineiro que vendia roupa. Fez de tudo para que meu pai viesse com
ele. As oficinas que ele tem, foram erguidas com essa vontade
inabalável de trabalhar, dia a dia, cada vez mais. Homem de muita
força, apesar de ter os braços curtos. É capaz de erguer um fardo de
cem quilos sozinho. Pele morena, praticamente sem pelos sobre o
corpo. Mantém o cabelo sempre bem penteado, repartido um pouco
acima da orelha. Nunca casou, nem tem filhos. Quando está feliz,
cantarola as velhas canções mineiras. O dedo indicador e maior de
todos da mão direita, tem uma mancha escura, devido ao cigarro que
vive ali, e praticamente nunca se apaga. Quando está nervoso,
esbraveja e xinga em espanhol. Nunca fala palavrões em Aimará ou
em Português. Parece que gosta de soltá-los na língua dos antigos
colonizadores. Trouxe o meu primo Pedro Lanza para o Brasil. Este se
tornou seu braço direito, aquele que o ajuda em tudo. Adora futebol.
Quando é uma data especial, costuma beber, conversar com os amigos
e contar aventuras, muitas delas duvidosas.
- Mercedes, pensei melhor, quer ir comigo no final de semana em
Santo Amaro?
- Sim.
- É que tenho que visitar a oficina de lá, e achei que seria uma boa
oportunidade de você conhecer um pouco a cidade.
- Santo Amaro é bonito?
- Você irá gostar.
11
O baloeiro
- Iremos de ônibus ou de trem?
- De ônibus.
- Que bom.
Ele costuma mudar de opinião com frequência. Acho que nestes
momentos lembra-se de onde veio e quem realmente é. No fundo se
preocupa com a gente. Por isso não permite que saiamos sozinhos.
Ouvi dizer que a cidade é muito violenta. Eu queria sair mais, pois o
trabalho aqui é muito pesado. Os lucros são muito poucos, por isso tio
Patiño não consegue fazer tudo o que ele gostaria. Não existe
ventilador ou ar condicionado. O teto é de zinco, o que faz a
temperatura subir muito nos dias quentes. Ele disse que o mês que
vem irá instalar um chuveiro. Por enquanto, tomamos banho com a
água fria que desce por um cano. Falta uma porta também, mas a
cortina que ele colocou a semana passada está ajudando muito. Acho
que o galpão é pequeno para toda essa gente, quarenta pessoas, mas a
esperança é que ele possa alugar um maior. O espaço entre uma
máquina e outra é o suficiente para colocarmos nosso colchonete e
dormirmos. Algumas pessoas viram a noite trabalhando. Costumo ter
muitas dores de cabeça, acho que pelo barulho das máquinas, sempre
batendo sem parar. Certa vez feri um dedo, mas tio Patiño fez um
curativo e um dia depois eu estava de volta à produção. Esse mês
cumprirei minha meta e pagarei a minha divida em dia. Quem sabe
não sobra algum dinheiro para comprar uma roupa, um calçado. Todas
as semanas, tio Patiño fala com a minha mãe, segundo ele, está tudo
12
Aparecido José Galindo
bem na Bolívia. Ela continua trabalhando na feira. Meu pai andou
doente, acho que deve ser da mineração. Vive em Potosi, dificilmente
visita a família em El Alto.
- Constanza!
- O que é?
- Ajude-me a trocar essa agulha.
- Assim você me atrasa demais. Precisa aprender a fazer as coisas
sozinha.
- Sabe o que teremos de comida hoje?
- Creio que seja arroz, feijão e ovo!
- Acha que consigo terminar essas peças antes da refeição?
- Pode ficar tranquila, não iremos jantar antes das oito horas.
- Ótimo.
- Eu preferia comer agora. Mas estamos atrasadas, devemos aproveitar
cada minuto. Aqui está, a agulha em seu lugar correto.
- Num instante você concertou. Viu! Obrigado pela ajuda.
- De nada.
13
O baloeiro
***
Cigarro de mierda. Não acende esta porcaria! Os da Bolívia são bem
melhores. Mas viver longe do nosso país tem lá o seu preço. Foi o
convite de um amigo para viver em El Alto que mudou minha vida.
Às vezes olho minha sobrinha assim, com o pensamento distante