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Dispersivos Cronicontos E Reflexões Soltas
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Dispersivos Cronicontos E Reflexões Soltas
E-book1.596 páginas8 horas

Dispersivos Cronicontos E Reflexões Soltas

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Sobre este e-book

Vários tipos de textos são encontrados aqui: crônicas, contos, recriações de textos literários de outros autores, lições de português, reflexões filosóficas, adágios, frases cunhadas sobre diversos assuntos, ensaios de maior fôlego sobre vários temas, textos de linguística, crítica literária, achados históricos, artigos de política e esporte, pensamentos sobre educação, narrativa de situações de sala de aula, divagações sobre retórica, estudos sobre humor, esclarecimentos sobre ideias erradas divulgadas à farta na internet, em intranets mundo afora e em tantos falsos ensinamentos de um mundo que acha que sabe de tudo. O autor pode até tentar embarcado nessa onda, mas tomou o máximo cuidado para desfazer essa aparência. Dois ensaios muito estruturados, um sobre comunicação e outro sobre carisma dão uma dimensão também de análise sociológica ao livro, uma imensa colcha dos retalhos reflexivos soltos do autor.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jul. de 2017
Dispersivos Cronicontos E Reflexões Soltas

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    Dispersivos Cronicontos E Reflexões Soltas - Claudionor Aparecido Ritondale

    Claudionor Aparecido Ritondale

    DISPERSIVOS

    CRONICONTOS

    E REFLEXÕES SOLTAS

    São Paulo

    2015

    Se voi star sano osserva questa norma

    non mangiar sanza voglia, e cena leve,

    mastica bene, e quel che in te riceve

    sia ben cotto e di semplice forma.

    Tradução:

    Se você quiser ser saudável, observe esta norma:

    Não coma sem vontade e faça uma ceia leve,

    Mastigue bem, e aquilo que para si recebe

    Seja bem cozido e de simples forma.

    (Leonardo da Vinci)

    INTRODUÇÃO .................................................................................................... 14

    SONHOS ............................................................................................................... 16

    FIGURA CARIMBADA ........................................................................................ 17

    AÇÕES PILANTRÓPICAS ............................................................................... 18

    BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O ANONIMATO .................................. 25

    SORTE NAS CARTAS (Reescrevendo Machado de Assis) .................................. 27

    A CARTOMANTE, de MACHADO DE ASSIS (TEXTO ORIGINAL) .......... 36

    COMO NÃO SE APAIXONAR ............................................................................ 45

    MISTÉRIOS DE UM OLHAR ............................................................................. 49

    POR UMA COMUNICAÇÃO EMPRESARIAL LINGUÍSTICA EFICIENTE . 59

    Desdobramentos deste texto .............................................................................................................62

    A EMPRESA HUMANA ...................................................................................... 69

    ESPARSAS CONSIDERAÇÕES HUMANAS POSSÍVEIS SOBRE NOSSO

    MUNDO ............................................................................................................... 71

    ADÁGIOS

    PARA

    PENSAR

    SOBRE

    DOENÇAS

    SEXUALMENTE

    TRANSMISSÍVEIS ............................................................................................... 74

    MEU ÍDOLO ........................................................................................................ 76

    RECEPÇÃO AOS VETERANOS ......................................................................... 77

    SOBRE CAPACIDADE E ESCOLHA ................................................................. 79

    TEMPO DE DESAFIOS ...................................................................................... 81

    ENGANOS DE NOSSO TEMPO ........................................................................ 86

    SER VOLUNTÁRIO É... ...................................................................................... 88

    7

    QUEM PODE MAIS TRABALHA MENOS ....................................................... 89

    CANSAÇO ............................................................................................................. 90

    EXERCÍCIO DE METALINGUAGEM .............................................................. 95

    SETE VEZES PECAR .......................................................................................... 96

    ENQUETE MÍNIMA DE LEITURA E CRIATIVIDADE .........................................97

    REFLEXÕES SOBRE AUTOCONHECIMENTO............................................ 104

    Autoconhecimento: reflexão inicial ............................................................................................... 104

    O que realmente uma pessoa é está muito nos seus sonhos ............................................................ 104

    Política pessoal: passo para o autoconhecimento ............................................................................ 107

    Um item importante de nosso autoconhecimento: nossa sexualidade .............................................. 109

    Conhecer-se não significa nada estático ......................................................................................... 112

    Produção e inteligência como formas de autoconhecimento .............................................................. 114

    RECONHECIMENTO DE MIM MESMO E DE MINHA LITERATURA .... 118

    Eu que gosto de animais .............................................................................................................. 118

    Fazer um nome ........................................................................................................................... 120

    Boa forma aos professores após os 50 anos ................................................................................... 122

    VIDAS EM CURSO, CONSCIENTEMENTE ................................................... 125

    ÁLBUM DE FAZEDURA .................................................................................... 129

    Perguntas de um velho escritor a um jovem escritor e professor de (futuros) escritores ...................... 131

    NOVIDADES ....................................................................................................... 138

    NÓS NÃO VENCEREMOS A ELEIÇÃO .......................................................... 139

    ENTREVISTA DE EMPREGO: SEMPRE UM ENIGMA ................................ 148

    A COMUNICAÇÃO EM UM MUNDO CERCADO DE RELAÇÕES

    INTERATIVAS .................................................................................................... 151

    8

    O indivíduo e a sociedade ............................................................................................................. 151

    A questão do autismo relacionada à comunicação ......................................................................... 152

    O interacionismo simbólico ........................................................................................................... 153

    O self e a ordem social .............................................................................................................. 156

    A importância do léxico na interação ........................................................................................... 157

    CARISMA: O MAIOR MITO DA COMUNICAÇÃO ......................................... 159

    Análise da obra ........................................................................................................................... 162

    Três tipos de carisma ................................................................................................................... 162

    O Programa de Desenvolvimento do Carisma .............................................................................. 163

    Criar e manter uma aura carismática .......................................................................................... 165

    Excesso de autoconsciência leva a perdas ...................................................................................... 166

    O corpo fala e proporciona julgamentos......................................................................................... 167

    A conversa como fonte de prazer e amizade .................................................................................. 170

    A arte de perceber ........................................................................................................................ 171

    Magnético não é essencialmente quem tem aparência bela .............................................................. 172

    Vender pelo carisma .................................................................................................................... 173

    Conclusão: Resumo e ligação com a teoria da comunicação e com a teoria da informação.............. 174

    Palavras-chave ............................................................................................................................. 175

    Bibliografia comentada ................................................................................................................. 176

    SOBRE PRECE A DEUS, DE VOLTAIRE .................................................... 178

    Prece a Deus, de Voltaire ............................................................................................................ 178

    Prière à Dieu (original francês) .................................................................................................... 179

    Explicação e comentário .............................................................................................................. 180

    REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE PORTUGUÊS ..................................... 182

    ESTÍMULOS PARA UMA PESQUISA SOCIOLÓGICA SOBRE O FUTEBOL

    .............................................................................................................................. 188

    Considerações ............................................................................................................................... 188

    9

    Pesquisa assistemática .................................................................................................................. 188

    UMA REITERAÇÃO NECESSÁRIA .................................................................. 190

    Ter ou não ter namorado, de Artur da Távola ............................................................................. 190

    AS DIVISÕES DO APODO ................................................................................. 193

    A MEDIDA DO HUMOR (SOBRE O SENTIDO DO RISO) .......................... 224

    Introdução ................................................................................................................................... 224

    Objetivo e problema ..................................................................................................................... 225

    Hipótese e delimitação .................................................................................................................. 226

    Algumas considerações sobre o corpus adotado: reafirmação dos objetivos ...................................... 228

    1. O que se pode traduzir como carências e onde se vê no humor uma saída para o mundo. ...... 229

    2. Base teórica para a reflexão com base semântica sobre os textos transcritos ............................... 231

    3. Caminhos do humor ................................................................................................................ 233

    4. Conclusão: O que é, afinal, o humor adolescente dos jovens infomaníacos? (uma quase conclusão).

    .................................................................................................................................................... 235

    5. Bibliografia teórica:.................................................................................................................. 236

    COMENTÁRIOS SOBRE UMA SUPOSTA REVOLUÇÃO LINGUÍSTICA

    PRAGMÁTICA .................................................................................................... 237

    O texto do Dagomir .................................................................................................................... 248

    RELATÓRIO DE LEITURAS PARA UM CURSO DE ESTILÍSTICA

    MINISTRADO PELO PROFESSOR WOLFGANG ROTH .............................. 251

    Sumário ....................................................................................................................................... 251

    Introdução à estilística .................................................................................................................. 251

    A contribuição de Mattoso Câmara Júnior .................................................................................. 253

    José Lemos Monteiro ................................................................................................................... 258

    Michael Riffaterre e a Estilística estrutural .................................................................................. 265

    Voltando a José Lemos Monteiro ................................................................................................ 268

    Enkvist ....................................................................................................................................... 274

    10

    Iniciando Guiraud pelo fim .......................................................................................................... 278

    Retomando Guiraud .................................................................................................................... 279

    A conclusão de Guiraud .............................................................................................................. 282

    Uma concepção filosófica .............................................................................................................. 285

    Roberto Brandão ......................................................................................................................... 292

    Genette ........................................................................................................................................ 293

    Retomando Nilce Martins ........................................................................................................... 294

    Bakhtin ....................................................................................................................................... 298

    UM POUCO DE REFLEXÃO SOBRE DISCIPLINA NÃO FAZ MAL ........... 305

    PROBLEMAS DE EXPRESSÃO NÃO ADVÊM DA TELEVISÃO ................... 311

    LINGUAGEM TÉCNICA E GÍRIA NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-

    SOCIAL: UM POUCO DA HISTÓRIA DA INTERAÇÃO ENTRE HOMEM E

    COMPUTADOR NOS DIAS DE HOJE ............................................................ 320

    Questões históricas ainda mal formuladas .................................................................................... 325

    ALGUNS ASPECTOS EXPRESSIVOS DA GÍRIA DOS SURFISTAS .............. 342

    1. Alguns conceitos necessários ..................................................................................................... 342

    2. Dois aspectos de expressividade a considerar ............................................................................ 344

    2.1. Os anglicismos ...................................................................................................................... 344

    2.2.

    Criações em português, predominantemente metafóricas ................................................. 348

    3.

    Observação final: ainda um pouco do antigo preconceito linguístico contra a gíria ................ 351

    Referências bibliográficas .............................................................................................................. 353

    Anexo 1: O corpus, da forma como se apresenta na Internet ........................................................ 354

    Surfnário ..................................................................................................................................... 354

    UM EXEMPLO RARO DE DISCURSO INDIRETO LIVRE NUM TRECHO

    DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA ....................................................................... 357

    RETÓRICA AJUDA A ENTENDER A MÍDIA? ................................................ 361

    TRADUÇÃO INTERLINGUÍSTICA: ALGUNS PERCALÇOS ....................... 365

    11

    URBANIDADE................................................................................................... 378

    PARA ILUDIR-SE COM O SENTIDO DE DESEJAR ..................................... 379

    REPENSANDO O ESPORTE ........................................................................... 380

    ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O USO DO SINAL @ EM

    INFORMÁTICA ................................................................................................. 384

    1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 384

    1.1. Tema, delimitação do tema e objetivos ................................................................................... 384

    1.2. Justificativa .......................................................................................................................... 385

    1.2.1. Busca do corpus ............................................................................................................. 385

    2. Visões de mundo diversas para um fenômeno aparentemente universal ..................................... 386

    2.1.

    Algumas considerações sobre o corpus adotado .............................................................. 386

    3. Aproximações teóricas da linguística à informática: as técnicas de humor ................................. 401

    4. Interacionismo e exercício de papéis: enfoques instigantes .......................................................... 426

    4.1. Um pouco de interacionismo simbólico .................................................................................. 428

    4.2. Teoria dos papéis segundo abordagem estrutural ................................................................... 431

    4.3. Minorias, Goffman e outros instrumentos para análise ......................................................... 434

    5. Empreendendo o esforço de juntar as peças ............................................................................... 437

    6. À guisa de conclusão ............................................................................................................... 445

    7. Referências............................................................................................................................... 449

    UM POUCO DO UNIVERSO DA RENDA PARA PROFISSIONAIS DE

    EDUCAÇÃO ........................................................................................................ 451

    POSFÁCIO .......................................................................................................... 453

    UM POUCO DO AUTOR E DA OBRA ............................................................. 454

    LIVROS E PARTICIPAÇÕES MAIS IMPORTANTES DE CLAUDIONOR

    RITONDALE ......................................................................................................................... 459

    12

    13

    INTRODUÇÃO

    Pensar em compor mais um livro é tarefa que me desgasta tanto

    quanto montar e estruturar o livro. Demoro bastante para conceber a

    unidade e trabalhar as ideias previamente à execução do texto final. Acho

    que não é diferente o mecanismo para outros autores.

    Não quis estruturar demais, porque não conseguiria compor nada.

    Acho, mesmo, que o que se chama de bloqueio é a vontade de perfeição

    que algumas pessoas têm, por erroneamente acharem que devem compor

    algo absolutamente incontestável, se quiserem escrever um livro. Mal

    sabem elas quanta coisa imprestável existe sob o rótulo de livro.

    Não considero que algo que eu tenha feito e que eu tenha

    considerado livro seja o suprassumo da escrita. Apenas tento dar uma

    colaboração ao mundo, dentro das limitações que se impõem a um livro.

    Creio que não é difícil imaginar que livros não são o passatempo favorito

    dos brasileiros, embora nas últimas duas décadas o nível de leitura deve ter

    melhorado, ou não haveria certos espaços enormes de venda de livros em

    grandes centros de compras, tampouco haveria várias alternativas de

    leitura na Internet que são acessadas. E, se eu concebo um livro num

    idioma único, para venda apenas limitada aos falantes dele, reduzo ainda

    mais meu público. Também posso pensar que minha condição de divulgar

    meus textos ainda seja muito pouco desenvolvida.

    Juntando todas as dificuldades, resta também pensar na própria

    qualidade do conteúdo. Isso é o que mais me atormenta, porque não sei se

    os leitores poderão ver utilidade no que produzi. Obviamente tenho que

    me arriscar a receber reprimendas ou a mais dura das avaliações, que é a

    indiferença.

    Envolvi-me neste livro com a recuperação de textos que escrevi

    em várias ocasiões e que me retornaram ao convívio a partir da

    necessidade de fazer algo diferente de uma rotina insatisfatória do

    momento. Pus-me a remontar as ideias, tentar ajustá-las sob a forma de

    capítulos e trazer a eventuais leitores relatos de tanto pensar sobre muita

    coisa, e observar, e criar mundos.

    Se alguém se dispuser a querer entender meu pensamento no que

    diz respeito a qualquer coisa, posso adiantar-lhe: procuro observar o que

    14

    tende para uma relativa ou grande estabilidade de comunicação, que é o

    que considero linguagem; e, se tento aprender ou ensinar algo, vejo que o

    que me interessa é a persistência que acompanha o trabalho de ensinar e o

    de aprender voltada para a assimilação do coletivo que favoreça a vida

    longa, não a obtenção de respostas imediatas de prazer. Em ambos os

    casos, o que me interessa é a vitalidade que atravesse gerações, não

    produtos de moda, que não sobrevivem à necessidade constante de

    mudanças. Se o rito de adaptar-se é a condição para conduzir a espécie

    adiante, creio que tento fazê-lo, porque adaptação é um tema que me

    acompanha vida afora. Espero apenas que meu esforço seja compreendido

    e possa ser útil a alguém.

    15

    SONHOS

    Plantão de lançamento de imóveis, quase 11h da noite, um jovem

    corretor que viera da França recentemente, casara-se com uma brasileira e

    tentava encontrar ocupação no Brasil, falava pouco o português e

    conhecia pouco da realidade cheia de contrastes sociais da maior cidade do

    país preparava-se para ir embora. Sua casa ficava a menos de um

    quilômetro, iria a pé, desconhecedor de algumas das surpresas do bairro.

    Pouco antes de encerrado o plantão – o vigia já pedindo aos

    últimos remanescentes que fossem aprontando suas coisas –, o corretor

    resolveu fumar do lado de fora, enquanto aguardava outro colega para

    deixar-lhe um recado. Não notou quando alguém se aproximou do

    plantão. Ao ouvir um boa-noite, virou-se e notou um rapaz com

    expressão sofrida e vestes simples que nem esperou a resposta completa

    da saudação e já foi disparando:

    – Viu, moço, eu vi esses apartamentos aí, mas estão muito caros

    para mim. Eu queria um apartamento bem baratinho, só vim trazer os

    documentos. Eu moro ali perto, ‘tá aqui também a declaração de moradia.

    O jovem corretor francês estranhou aquilo, pegou, sem atinar para

    outra saída, os papéis que o rapaz lhe estendia: cópia de identidade e de

    CPF e a tal declaração de moradia. O rapaz, sem mais cerimônia, foi

    embora.

    O corretor guardou aqueles papéis e comentou a situação no dia

    seguinte com um colega. A declaração de moradia indicava um albergue

    que ficava bem próximo ao local do lançamento. O outro corretor disse

    que o rapaz não teria nem renda para um simples imóvel de um programa

    social de moradia do governo.

    O segundo corretor tinha naquele momento um compromisso,

    saiu meio sorridente, meio pensativo. A chapliniana situação rendeu risos

    de estupefação de vários outros corretores que souberam do fato. Não

    houve para ninguém uma fórmula para pensar em encaminhar com

    aqueles papéis a realização do sonho daquele pobre rapaz. Era um desafio

    à profissão, algo maior vindo da realidade a gargalhar alto no cotidiano da

    metrópole.

    16

    FIGURA CARIMBADA

    Corretor novato, pouco tempo na capital, forte sotaque do

    interior, aquele colega atraía situações grotescas. Uma delas foi quando

    quis dar uma de engraçadinho e resolveu repetir o envio de um beijo que

    uma jovem dava ao celular ao final de uma ligação. Para quê? Ouviu um

    enxoval de palavrões da garota.

    Outra ocasião foi quando, após apenas três semanas na capital,

    ouviu de um policial, quando pedia informações, que ele já era conhecido

    do agente da lei. O rapaz tremeu, pensando que havia feito algo de errado,

    mas o policial apenas o vira num barzinho alguns dias antes bebendo uma

    cerveja. A conclusão era que o cidadão deveria parecer uma daquelas

    figuras carimbadas, porque a coincidência de haver uns 12 milhões de

    habitantes na cidade de São Paulo e ele ser reconhecido por um policial no

    único dia em que parou num bar, após apenas três semanas na metrópole,

    era realmente significativa.

    O cidadão atraía esquisitices e excepcionalidades. Num plantão, ele

    recebeu de volta um e-mail de alguém que se dizia interessado num

    investimento, possuía renda 3 vezes maior do que a exigida, era investidor

    mais várias informações alvissareiras. O ânimo do novato foi crescendo

    até que, após mostrar o e-mail para um colega mais observador, ele teve

    que admitir que só podia se tratar de brincadeira. O nome assinado no e-

    mail era Thomaz Tur... Bem, não completaremos o suposto sobrenome,

    apenas acrescentaremos que lembra um gerúndio ao final, quer dizer, se

    forem lidos nome e sobrenome de uma forma mais rápida, isso geraria um

    termo que é um tabuísmo, algo que corretores sérios não ficam falando

    em plantão, porque, afinal de contas, um cliente de verdade estava

    chegando ali, o colega teve de conter sua cara de sem graça e ir atendê-lo.

    Os demais, no entanto, não precisavam conter o riso, apenas afastarem-se

    da frente do plantão, alguns até quase rolaram no chão de tanto rir.

    17

    AÇÕES PILANTRÓPICAS

    Do bom tempo em que trabalhei em banco, constatei várias

    situações engraçadas, inclusive de gente que queria se aproveitar dos

    próprios bancários. Eu enxergava meus colegas com uma admiração por

    sua experiência, mas às vezes o senso de solidariedade e a vontade de

    resolver uma situação que se arrastava levavam a um desembolso não

    pretendido de dinheiro próprio. Do ponto de vista da outra parte, pode-se

    pensar numa palavra mais simples: golpe.

    O Palácio era um sujeito que se considerava esperto, muitos o

    admiravam por ser bem sincero com todos, ter trânsito fácil com as

    pessoas, querer ajudar os colegas e tratá-los com cortesia. Também era

    visto como um ótimo seguidor das regras, bom de serviço e de papo. Com

    seu jeito de homem do interior e um sotaque indisfarçável, também era

    um tipo muito engraçado.

    Alguém que se dizia apenas de passagem pela grande cidade

    dirigiu-se à mesa de atendimento e pediu um favor: precisava pedir a

    alguém de sua cidade de origem que lhe enviasse uma ordem de

    pagamento urgente para que ele pudesse voltar a sua cidade. Alegava ter

    sido assaltado num parque turístico relativamente bastante visitado e

    estava sem dinheiro nenhum.

    Os valores representavam um dia inteiro de trabalho de qualquer

    um de nós, que ganhávamos praticamente a mesma coisa – não havia

    distinção de cargo, éramos todos escriturários, com tempos muito

    próximos no banco.

    O Fulano insistia, até dizia o nome certo do lugar onde teria sido

    assaltado. Eu estranhei que não era um local próximo à agência do banco,

    havia várias outras bem mais próximas. Ouvi o cidadão falar que estava

    hospedado num pequeno hotel ali perto, fiquei à espera do que o Palácio,

    que iniciou o atendimento, ia fazer. O pedinte falava de sua esposa, que

    estava grávida e que eles não tinham como pagar o hotel, nem comer. O

    dinheiro que ia ser mandado serviria para o hotel, a passagem e para

    alguma refeição.

    A questão mais delicada e que complicava as coisas, segundo meu

    entendimento, era a da localidade de onde teria que vir a ordem de

    18

    pagamento. O cidadão pedia que fosse solicitada à agência do banco em

    outra cidade uma comunicação com alguém que morava em uma

    propriedade rural distante do centro da cidade. Ele dava o nome, o

    sobrenome e até um possível endereço, mas não havia nenhum telefone

    para um contato direto, por exemplo. Por isso, havia a necessidade de um

    contato com a agência do banco, depois que alguém da agência pudesse

    manter algum tipo de comunicação com a propriedade rural. Certamente o

    dono da propriedade, que, segundo o Fulano, era seu patrão, poderia

    dirigir-se até a agência do banco e enviar-lhe o dinheiro, por ordem de

    pagamento. Como o patrão era correntista do banco, o gerente poderia

    verificar sua ficha cadastral e até localizar um número de telefone.

    O interesse do banco era mínimo, porque as tarifas não eram

    muito altas, mesmo para ordens de pagamento urgentes, que, na época,

    seriam as passadas por intermédio de telex ou até telefonema (com a

    devida cobrança das tarifas de interurbano). Hoje em dia, com tantos

    meios mais eficientes e rápidos (o uso da |Internet, por exemplo), poder-

    se-ia pensar em uma comunicação menos onerosa. Mas, mesmo naquele

    tempo, a possibilidade de receber uma tarifa a mais não era lá algo muito

    atrativo.

    O espírito de solidariedade do Palácio, entretanto, falou mais alto.

    Ele, como funcionário dedicado e pessoa muito amistosa, resolveu mandar

    um telex para a outra agência, pois era o meio mais rápido e barato que se

    conseguia naquele ano de 1988.

    A resposta não chegava, porque a agência não localizava o suposto

    patrão do Fulano. Eles viram os dados, conferiram a conta, mas o nome

    era relativamente comum, algo meio sujeito a vários homônimos. Naquela

    agência daquela pequena cidade, acho que do Estado do Espírito Santo,

    não havia outro ser com aquele nome. Isso parecia ser um facilitador, mas

    infelizmente o número de telefone que constava da ficha cadastral não

    atendia.

    Dito isso ao Fulano que já esperava por quase meia hora junto à

    mesa de atendimento, ele não desanimou e manteve a esperança de que

    poderia a qualquer momento ser feito um contato. Disse que aguardaria ali

    outras tentativas e praticamente suplicou ao Palácio para que tentasse

    outra comunicação. Foi o que o Palácio fez, mesmo sabendo que havia

    19

    movimento rotineiro de telex a processar. Ele, no entanto, era amigo de

    todos os funcionários, tinha a confiança dos gerentes, não havia problema

    para ele pedir de novo a ajuda do rapaz que operava o telex.

    A agência repetia que não havia conseguido contato nenhum com

    o correntista.

    E o Fulano firme lá no seu posto junto à mesa de atendimento.

    Uma hora e meia transcorrida, mais duas tentativas, e nada.

    Alguns outros colegas que viram o Fulano já tanto tempo ali

    perguntavam ao Palácio sobre se ele já havia sido atendido. O Palácio

    sumariamente explicou o ocorrido. Ninguém se dispôs a ajudar mais do

    que o favor, que já estava grande àquela altura, de tentar mais algumas

    vezes o contato com a outra agência.

    Finalmente, depois de duas horas de espera, num horário que já

    estava próximo do fechamento da agência, o Palácio, que era um mero

    escriturário, nem ao menos tinha um acréscimo de uma comissão de caixa,

    nada disso, resolveu abreviar o sofrimento do Fulano e emprestar-lhe o

    dinheiro. O Fulano não pediu a quantia, ele alegou que não haveria

    problema em escrever para o endereço do seu patrão, que era o mesmo

    em que ele morava, pois, quando lá chegasse, era imediato o depósito na

    conta corrente do funcionário. A ideia era de um empréstimo, não de uma

    esmola.

    Depois de algumas falas agradecidas e com uma comoção que me

    impressionou, o Fulano, já de posse do dinheiro, saiu da agência rumo a

    seu destino.

    Não é preciso dizer que o Palácio nunca viu o retorno do

    empréstimo. O endereço para onde ele enviou uma carta não existia. Os

    demais colegas só vimos quando o correio retornou a carta com o carimbo

    de endereço inexistente. Nem hoje, passados já mais de vinte anos do

    ocorrido, com as possibilidades de localização com programas sofisticados

    de computador, não se chegaria ao endereço informado. Foi o que me

    informou recentemente um ex-colega, que se lembrou da história e do

    endereço e que tentou a localização do famigerado proprietário do lugar e

    suposto patrão do Fulano que recebera o dinheiro do Palácio.

    A história dele poderia ser instrutiva para que ninguém caísse

    nessas histórias, mas acabou inspirando algo mais deletério a incautos:

    20

    uma sociedade golpista. O povo cunhou a palavra pilantrópica, que é

    uma mistura bem-humorada (ao menos para quem conta a história, sem

    ter vivido a experiência de ter sido vítima de nenhum golpe) da palavra

    pilantra, sinônimo de trapaceiro, com a palavra filantrópica, que é o

    adjetivo que se refere a quem pratica a filantropia, quem é generoso,

    caritativo, solidário, especialmente com a doação de bens materiais e até

    dinheiro em espécie.

    A ideia foi aproveitar esse senso de generosidade de gente como

    aquele colega do banco. A última notícia dele é que tinha sido vítima de

    um gerente inescrupuloso e tinha sido demitido do banco. Ele realmente

    era muito ingênuo.

    A oficialização da sociedade partiu de um vendedor de bilhetes de

    loteria de quem eu ouvira falar por outro colega de banco. O vendedor se

    dizia explorado pelos que lhe vendiam bilhetes para que ele os revendesse.

    Resolvera, então, criar uma concorrência com aquela máquina de trazer

    sorte, que era a loteria. A essência não seria vender um nada, como era a

    ideia da sorte trazida pelo arrecadar dinheiro de muitos e depois distribuir

    a uns poucos afortunados. Ele entendia que se devia oferecer algo que

    sensibilizasse a quem faria a transferência de fundos. Segundo ele, nada

    mais atraente do que fazer o bem ao próximo. Estava criada a Sociedade

    de Auxílio aos Carentes.

    Como dizia o colega do banco sobre esse vendedor de bilhetes de

    loteria, carente é que não faltava no mundo. Hoje a Sociedade estaria

    próspera, porque, mesmo com tanto progresso, ainda há milhões de

    carentes no Brasil. Acho até que as carências aumentaram. Numa aula da

    faculdade, um professor de linguística falava da preposição sem

    acoplada por hífen a substantivos que denotavam várias carências: sem-

    terra, sem-teto, sem-comida, sem-roupa, sem-escola, sem-computador.

    Na onda dos sem-isso e sem-aquilo, o vendedor de bilhetes

    arrecadou em seis meses o suficiente para lhe garantir a independência

    financeira, findos os quais ninguém nunca mais ouviu falar da tal

    Sociedade, nem do seu fundador. Os fundos desapareceram, ou seja,

    instalou-se um enorme buraco social a partir daquela entidade

    supostamente benemérita.

    21

    Acompanhei por crônicas de escritores famosos e pelo noticiário

    de várias mídias que essas sociedades ditas pilantrópicas já haviam

    evoluído para as que recebiam verbas de governos.

    Certa vez caí num golpe – não posso revelar minha ingenuidade,

    por favor! – e fiquei obviamente me achando um estúpido. O fato de ter

    lido sobre governos também serem vítimas propiciou-me certo alívio. A

    história do Palácio e a das vítimas da sociedade montada pelo ex-vendedor

    de bilhetes de loteria me fizeram, a partir do golpe em que caí, me fizeram

    ver que a lábia do estelionatário pode ser muito melhor do que a maior das

    experiências. Se até governos entravam na conversa...

    O curioso é que eu guardei o nome do Fulano que deu o golpe no

    Palácio. Passaram-se mais de 20 anos do ocorrido, mas até alguns traços

    da fisionomia não me escapariam, se o visse hoje. E foi exatamente isso o

    que me aconteceu: o Fulano apareceu-me diante dos olhos, mas não me

    abordando diretamente no início. Ele estava fazendo compras numa

    padaria que eu frequentava. Já ia saindo e dirigia-se para uma agência

    bancária onde eu mantenho conta. A coincidência nos fez tomar o mesmo

    rumo, ele, antes de chegar à porta giratória de segurança, já foi logo me

    contando a mesma história de 22 anos atrás. Tinha vindo a São Paulo com

    a esposa – agora, ela não estava grávida, mas eles estavam acompanhados

    de 3 filhos – e tinha sido assaltado numa praça (curiosamente a mesma

    daquele tempo), tinha que pedir a seu patrão lá de uma cidade do interior

    do Paraná (o Estado havia mudado) que lhe enviasse um depósito para

    que ele sacasse no banco. O problema era que seu cartão estava quebrado.

    E o Fulano me perguntava se, por acaso, eu lhe poderia dizer se alguém do

    banco poderia providenciar algum tipo de jeito de ele sacar o dinheiro sem

    o cartão, mesmo ele estando longe da sua cidade.

    Eu pedi para olhar, mesmo sem o ter em minhas mãos, o cartão do

    banco. Vi que o nome não era o nome do Fulano de 22 anos antes. Fiz

    minhas deduções sobre a esperteza do indivíduo. Fiquei pensando em uma

    saída rápida, ou algo que pudesse enrolar o cidadão até que fosse

    possível a intervenção de alguma autoridade da segurança.

    Rapidamente veio-me a lembrança da Sociedade de Auxílio aos

    Carentes. Eu pretendia não expor outros colegas do banco, que eram já de

    outra geração, mas de alguma forma ainda meus colegas, à história golpista

    22

    do Fulano, que agora já beirava os 50 anos. Chamando-o pelo primeiro

    nome, que eu lera do cartão que ele me expusera, falei-lhe brevemente da

    Sociedade (que obviamente não existia) e dei-lhe um endereço. Afiancei-

    lhe que lá era um posto da Sociedade e que eles resolveriam o problema

    dele sem a intervenção do banco. Eles tinham atendido naquele ano vários

    casos. Eu mesmo já tinha tido um caso meu resolvido daquela maneira,

    porque também não era de São Paulo, tinha tido o mesmo problema de

    cartão quebrado, tinha sido assaltado no mesmo lugar, etc. e tal.

    Não sei dizer se a coincidência o animou ou deixou-o desconfiado.

    Sei que ele não entrou no banco, pegou o endereço do pedaço de papel

    que eu lhe forneci, acho que foi até o local que eu lhe indicara. Ele não

    tinha como saber que se tratava de uma delegacia de polícia. Muito

    coincidentemente lá trabalhava um investigador que era meu conhecido,

    porque fora companheiro de equipe de meu pai, que era policial

    aposentado. O investigador em questão era bem mais jovem que meu pai,

    ainda não tinha completado seu tempo de serviço a fim de ser aposentado.

    Era, no entanto, bastante experiente, principalmente com estelionatários.

    Assim que o Fulano dobrou a esquina, eu fiz uma ligação diretamente ao

    celular do investigador. Por sorte, ele estava de plantão, não tive que pedir

    para que repassasse recado a ninguém.

    A delegacia não tinha, por fora, uma identificação chamativa,

    nunca entendi direito aquilo, acho que era o resultado de alguma falta de

    verba oficial para a confecção de uma placa. Eu telefonei ao conhecido, ele

    me atendeu muito bem e prestou-se a receber o indivíduo quando lá fosse,

    se é que ele iria até lá. Eu ouvi, é claro, do investigador que pessoalmente

    ele não acreditava que o estelionatário fosse até lá. O mais provável,

    segundo o policial, seria ele tentar o golpe em outra agência ou em outro

    horário, na mesma agência. A abordagem poderia ser com outro

    correntista, alguém mais disposto a colaborar, não a indicar outra

    solução.

    Surpreendentemente, entretanto, o Fulano apareceu na delegacia, e

    o investigador que falou comigo imediatamente o atendeu e, de posse do

    falso cartão e sem que fosse possível uma reação de fuga do estelionatário,

    prendeu-o. A ação imediata foi chamar o delegado de plantão, que, sem

    pestanejar, perguntou ao indivíduo se ele estava vendo a arma que o

    23

    delegado portava. Sem responder o estelionatário mostrou o sim com um

    movimento de cabeça. O delegado impôs-lhe silêncio absoluto; caso

    contrário, aquela arma seria acionada.

    Meu pai, que me contou o desfecho, após uma conversa com seu

    ex-colega, esclareceu-me a atitude do delegado. Na interpretação daquele

    agente da lei, se o estelionatário começasse a falar, poderia convencer até

    mesmo o delegado.

    Li nos jornais algo sobre a prisão daquele golpista, que já havia

    superado os 10.000 golpes aplicados ao longo de mais de 30 anos de

    atividade. Também havia sido preso na ocasião o fundador da Sociedade

    Auxílio aos Carentes, muito mais endinheirado do que aquele golpista do

    cartão.

    Sem o saber, vinguei o Palácio, a mim mesmo e a tantas vítimas.

    Mas não é que outro dia, telefonaram-me do banco para avisar que meu

    pai, já um tanto desgastado pela idade, estava numa agência do banco

    onde eu tinha trabalhado – lá ainda trabalhavam vários ex-colegas meus –

    e ia retirar uma considerável quantia em dinheiro para dá-la a um Fulano

    que lhe prometia alguma vantagem! A colega que conversou comigo ao

    telefone até me aconselhou para cuidar dele, que não estava mais com

    idade de ir sozinho a bancos.

    O pior é que ele, do mesmo modo como o Palácio, eu e tantas

    vítimas, ainda se justificava da vantagem que poderia auferir. Anos antes

    ele mesmo havia mostrado uma frase no interior de um departamento da

    polícia especializado em estelionatos que dizia que a ganância da vítima é

    que favorece o golpe.

    Aprendi que há pelo menos dois pontos de vista em qualquer

    situação da vida: um deles é certamente a espetacular condição de

    envolvimento que os golpistas têm; o outro é certamente essa observação

    desse departamento especializado da polícia.

    De ação pilantrópica em ação pilantrópica, aliadas a poucas reações

    de sorte, como a que eu tive, vai sendo feito o cotidiano de vigarices neste

    mundo.

    24

    BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O ANONIMATO

    Por que necessitamos tanto de referências? Em literatura, será que

    alguém vai a uma estante de uma livraria e procura um desconhecido, com

    um título que não diga algo de especial e leia um texto?

    O papel da divulgação talvez seja tão ou mais importante do que o

    da escrita. Será que eu não exagero?

    O autor faz diferença, ou não teríamos uma quantidade bem maior

    de títulos dos nomes conhecidos. Alguns nomes podem significar muito

    mais e já identificar seu autor. Obviamente, quando o autor já tem fama

    por uma outra área e até o título de algum livro seu foi muito divulgado

    em qualquer mídia poderosa, pode haver até o afastamento do leitor. Um

    exemplo poderia ser o título Marimbondos de.... Bem, o autor não é

    visto como literato, embora escreva e faça parte da Academia Brasileira de

    Letras. O problema é que pode ter recebido a antipatia do leitor,

    influenciado pela mídia, a partir de sua trajetória extraliterária (digamos!).

    E isso não seria um pré-julgamento?

    Voltando aos anônimos: o que importa, realmente, para o leitor: a

    utilidade do texto.

    Sim? Acredito que não seja de espantar tanto uma constatação

    como a que agora faço, porque somos muito influenciados por

    propaganda. Quem disser que nome não vende mente. Quem disser que

    só busca qualidade pode estar à busca de fama e prestígio. Antes de ler um

    texto não se pode dizer se é bom ou não.

    Já presenciei várias ocasiões em que um texto é apresentado sem

    que o que apresenta dê o nome do autor, também em muitos casos não se

    oferece sequer o título do texto. Antes de conhecer a autoria, verifiquei, na

    maioria dos casos, que o texto não era ao menos satisfatório. Depois de

    ter sido revelado o nome do autor, se famoso, o texto passa a ser visto

    com outros olhos. O contrário também ocorre: já vi quem visse um filme

    pelo tema e pela forma (por exemplo, uma comédia), ficasse bem

    impressionado e empolgado com o filme, mas perdesse muito do

    entusiasmo após um crítico de algum veículo de imprensa poderoso tecer

    comentários muito desfavoráveis ao filme.

    25

    O julgamento da obra de arte é algo de grande responsabilidade,

    especialmente porque é algo que parte do leitor para o próprio leitor. O

    assujeitamento a ideias que nos comandem, permitido por nós, é uma

    prova inequívoca de desvio de análise, de submissão cultural. Um

    jornalista conhecido escreveu certa feita sobre um nome muito conhecido

    da chamada música popular brasileira que não seria preciso nem ouvir uma

    próxima composição do tal nome muito conhecido porque, de antemão, já

    se poderia saber que era bom. Isso é puro preconceito!

    Que tal, a partir de agora, buscar algo sem o nome e sem o título?

    Procurar conhecer, de verdade, sem antes perguntar ao balconista – da

    livraria, da locadora – ou ao ser por trás do nome famoso na crítica da

    mídia o nome ou a referência dessa ou daquela obra? Isso pode não fazer

    mal, constatem!

    26

    SORTE NAS CARTAS (Reescrevendo Machado de Assis)

    Shakespeare que me desculpe, mas não sei a que coisas ele se

    referia quando coloca na boca de Hamlet, ao falar a Horácio, que há mais

    coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia.

    Aquele ano de 1869, no Brasil provinciano em que vivíamos, num

    Rio de Janeiro ainda sonhador, não poderia ser o palco de tamanha

    elucubração por parte de uma apenas bela jovem, como era Rita, em um

    diálogo pouco profundo com seu amante, Camilo. Um novembro sem

    graça, sexta-feira insossa.

    A novidade que Rita queria levar ao amante era que no dia anterior

    fora consultar uma cartomante. Destino? Sim, ele poderia já estar traçado,

    daí veio a explicação simplória com a cópia da fala da peça Hamlet.

    Camilo não conseguia parar de rir. Ela ficava indignada:

    – Você fica a rir, porque, como todos os homens, não consegue

    acreditar em nada. Você não pode imaginar o que ela disse logo que eu me

    sentei à mesa, antes mesmo de colocar as cartas: "A senhora gosta de

    alguém...". Depois de minha resposta afirmativa, ela pôs-se a mexer com

    suas cartas. Revelou-me o medo que eu sentia de que você me

    abandonasse, mas que isso não iria acontecer porque...

    – Então, ela errou feio! interrompeu Camilo, ainda contendo o

    riso.

    – Por Deus, Camilo, eu sofro por você e você continua a brincar e

    a rir de mim!

    Camilo interrompeu sua graça, tomou as mãos da moça, beijou-as,

    olhou fixamente para ela e assegurou que a amava, que aquilo de ela ter

    medo era só receio infantil, que a melhor cartomante sempre seria ele

    mesmo, que era perigoso ela andar por essas casas de leitura de cartas, pois

    Vilela, o marido ciumento, poderia vir a saber, então...

    – Não, é impossível: tive muito cuidado desde quando entrei até o

    momento de ir-me.

    – Onde fica esse lugar?

    – Na Rua da Guarda Velha. Reparei bem que não vinha ninguém

    no momento de eu entrar lá. Fique calmo: não estou ainda sem juízo.

    A risada de Camilo retornou:

    27

    – Ainda? Não há de crer nisso, hein?, perguntou-lhe em deboche.

    Veio o comentário trasladado de Hamlet: havia tanta coisa

    misteriosa e verdadeira neste mundo de Deus, não podíamos descrer de

    tudo. Teríamos que confiar porque a cartomante adivinhara absolutamente

    tudo. Prova disso é que ela, Rita, voltara de lá tranquila e satisfeita.

    Camilo ameaçou falar, mas conteve-se para não tirar de Rita as

    ilusões. Tinha que confessar internamente que também fora supersticioso

    em certo período de sua infância, com um monte de crendices a encher-

    lhe a mente, incutidas pela mãe, mas que agora tinham desaparecido.

    Também, já contava 20 anos. Assim como à religião, passou a não

    acreditar em nada. Ambas as heranças da mãe foram-se como parasitas das

    quais ele se desprendera. Não acreditava em nada e não sabia explicar os

    motivos, apenas limitava-se a negar tudo. Ou melhor, nem negava, porque

    estaria debatendo a questão: apenas dava de ombros, em total indiferença

    ao assunto.

    Com o dar de ombros, foi andando. Ambos estavam contentes no

    momento da separação, ele muito mais que ela, porque tinha certeza do

    amor de Rita. Ela também agora se certificara do amor de Camilo,

    também pela cartomante. A tal figura deixou, em verdade, Camilo

    envaidecido, porque o risco a que Rita se submetera era prova de seu

    amor. Os encontros deles eram realizados na antiga Rua dos Barbonos, de

    uma amiga comprovinciana de Rita, que seguiu pela Rua das Mangueiras

    em direção a Botafogo, bairro onde residia; já Camilo desceu pela

    mencionada rua onde era a casa da cartomante – inevitavelmente olhou de

    soslaio para a tal casa, mal vendo o número mencionado por Rita.

    E a origem do triângulo? Vilela e Camilo, amigos de infância,

    tiveram destinos diferentes após os estudos médios. Vilela formou-se em

    Direito e tornou-se magistrado. Camilo acabou na profissão de quem não

    quer prosseguir nos estudos: o funcionalismo público. Contrariava o pai,

    que o queria médico, mas o pobre velho morreu sem ver a realização

    ansiada para o filho. O emprego público foi-lhe arranjado pela mãe.

    Naquele ano da graça de 1869, Vilela, recém-chegado da província, onde

    casara com a dama formosa e tonta que já sabemos quem é (a preciosa

    Rita) e tendo abandonado a magistratura, abrira uma banca de advogado.

    28

    Fora Camilo quem lhe arrumara a casa para os lados de Botafogo e até

    fora recebê-lo. A efusividade de Rita surpreendeu-o:

    – Então é o famoso Camilo?, exclamou estendendo-lhe a mão.

    Meu marido fala sempre do senhor.

    Muito amigos que eram, entreolharam-se os dois mancebos.

    Em seus pensamentos, Camilo verificava que era mesmo formosa

    a esposa do amigo, graciosa, viva nos gestos, olhos quentes, boca fina e

    que deixava uma pergunta no ar. A beleza da mulher não desmentia as

    cartas do marido. A idade dos três: trinta anos a da jovem; vinte e nove a

    de Vilela; vinte e seis a de Camilo. Apenas um pouco mais velho, Vilela,

    entretanto, com seu ar grave, parecia ainda mais distante em anos com

    relação à mulher. Por seu lado, Camilo, um ingênuo na vida moral e

    prática, não demonstrava tanto a ação do tempo: inexperiente e sem

    intuição, brilhava como as lentes de cristal a demonstrar erroneamente seu

    tempo de vida.

    A ligação dos três deu-se em continuidade à amizade entre os

    antigos amigos. De tanto conviverem, certa intimidade foi-se insinuando.

    Com a morte da mãe de Camilo, para ele um desastre, os amigos

    socorreram-no e aproximaram-se dele ainda mais. Vilela, na condição de

    advogado, tratou até do inventário (já cuidara do enterro e de todos os

    ritos), enquanto Rita foi a amiga do coração, tarefa na qual foi insuperável.

    O amor veio, não se lembrava Camilo exatamente como. Ele sabia

    que apreciava os passeis ao lado de Rita, sua enfermeira moral, quase uma

    irmã, mas, para além disso, uma mulher e bonita. Seu perfume era algo que

    o envolvia, ligava-o a ela. Muitas atividades compartilhavam: livros inteiros

    lidos, passeios, teatros, jogos de damas e xadrez – nenhum dos dois era

    bom jogador, ela ainda pior que ele. As sutilezas iam-se amontoando:

    olhares dela a Camilo, antes de a Vilela, mãos frias, atitudes pouco usuais.

    Em um seu aniversário, Vilela lhe presenteara uma bengala; Rita um

    bilhete com um vulgar escrito a lápis e palavras vulgares mas consideradas

    sublimes, deleitosas, a recordar a carruagem em que, fechadinhos,

    passearam pela primeira vez, ah divino carro de Apolo! O homem e o que

    o cercava estava definido.

    Não havia mais como fugir àquilo, ainda que Camilo o tentasse

    inúmeras vezes. Rita, serpente sutil, acercou-se do amigo do marido,

    29

    enlaçou-o, comprimiu-lhe os ossos, envenenou-lhe a boca. Atordoado,

    submisso, vexado, tomado pelos remorsos e desejos, envolto em mistura

    estonteante, cedeu à batalha curta e achou-se delirantemente vitorioso. Os

    escrúpulos? A luva vestiu logo a luva da situação, ambos foram indo

    naquele andar juntos, braços dados, na estrada do perigo, apenas sentindo

    as amarguras das saudades quando havia a distância da ausência entre eles.

    Vilela parecia manter a mesma confiança e estima de sempre.

    Uma carta anônima, em um momento qualquer, colocou medo em

    Camilo. Chamando-o imoral e traidor, chamava a atenção para o fato de

    que todos já sabiam daquela aventura. A saída foi rarear as idas à casa de

    Vilela e Rita. É claro que o advogado notou-lhe as ausências. A resposta

    de Camilo era uma desculpa ingênua: uma paixão à toa em que se

    envolvera. Era um modo cândido de parecer astuto. Gradativamente, das

    ausências passou Camilo ao definitivo cessar às visitas. A angústia pela

    deslealdade talvez estivesse a determinar também o afastamento.

    Rita não se fez de rogada: correu logo de volta à cartomante. O

    desaparecimento de Camilo atormentava-a. A cartomante, no entanto,

    restitui-lhe a calma, Camilo advertiu-a do perigo. Algumas semanas mais,

    Camilo a receber mais duas ou três cartas anônimas, talvez de

    pretendentes em despeito. Rita ao menos assim pensava, porque julgava

    ser próprio de quem tinha interesse contrariado, já que o interesse leva à

    ação e gasta-se mesmo nela, enquanto a virtude, esta não parece gostar de

    agir nem de usar o tempo para manifestar-se.

    Ainda assim, Camilo não sossegava: o tal anônimo poderia

    denunciar tudo a Vilela, a catástrofe era iminente. Rita viu também a

    mesma possibilidade:

    – Fico com os sobrescritos e ponho-me a compará-los com as

    cartas que eventualmente recebermos; no caso de haver alguma com a

    mesma letra, separo-a e mostro-a a você; do contrário, nem me dou ao

    trabalho: simplesmente a rasgo.

    Nenhuma outra carta apareceu, no entanto. A novidade estava no

    comportamento de Vilela, agora taciturno, carrancudo, talvez desconfiado.

    Rita contou rapidamente a alteração a Camilo, na tentativa de encontrarem

    algo a fazer. Na opinião da moça, Camilo deveria voltar à casa deles,

    sondar o que ocorria com Vilela, talvez para descobrir algo menos

    30

    corriqueiro nos negócios. Camilo não aceitava aquela saída: não pretendia

    aparecer depois de tantos meses, porque assim confirmaria a suspeita ou

    até se denunciaria. O cuidado era o melhor remédio. Tudo poderia ser

    resolvido em algumas semanas, cartas poderiam ser trocadas com algum

    modo mais seguro, em caso de necessidade. As lágrimas selaram a

    despedida deles.

    A espera pela solução durou até o dia seguinte, quando Camilo, na

    repartição, recebeu de Vilela um bilhete: "Venha imediatamente à nossa

    casa; quero falar com você sem mais demora". Passava um pouco do

    meio-dia. Temeu pelo contido no bilhete, já martelava que seria mais

    natural ter Vilela chamado a ele ao escritório, não a casa. Algo de especial

    havia a ser tratado. Até a letra da carta parecia-lhe trêmula. O

    comportamento estranho da véspera, notificado por Rita, combinava com

    aquela carta em tom enigmático. Retornou os olhos ao papel, leu

    novamente a praticamente intimação de Vilela.

    A cena de sua morte passava-lhe em mente. Rita, totalmente sob o

    jugo do marido, em lágrimas, presenciaria o drama de seu final. O medo

    da morte fê-lo estremecer. O sorriso amarelo que se seguiu ao pânico não

    lhe paralisara; ao contrário, fazia-o caminhar a esmo. Pensou em ir a casa,

    talvez Rita lhe tivesse deixado um recado com alguma mínima explicação.

    Nada, porém. De volta à rua, a ideia da descoberta avultava. O anonimato

    daquelas cartas também seria o mesmo de uma denúncia a Vilela, por que

    não? Obviamente quem o ameaçara também o delataria. Seu

    desaparecimento sem motivo acabara por confirmar em Vilela o que já era

    por ele sabido.

    A inquietação marcava os passos de Camilo. Não voltara ao

    bilhete, mas as palavras ficaram-lhe na mente gravadas. Sua voz ou a de

    Vilela falavam a ele. Na voz do outro, o mistério crescia com a ameaça. O

    motivo era qual? Por que a pressa? Quase uma hora da tarde, cada minuto

    só provocava um aumento no abalo de Camilo. A imaginação já se

    transformara em crença ou praticamente em visão do que viria. Ele era o

    próprio medo a afirmar-se. Pensou em levar consigo uma arma, por

    precaução – se nada houvesse, voltaria também tranquilo. Em seguida,

    rejeitava a ideia, com um asco de si mesmo. Seus passos eram pesados,

    sem vontade de caminhar em direção ao tílburi que apanharia no Largo da

    31

    Carioca. Decidiu pegar o primeiro que vira, logo pediu pressa ao cocheiro

    era necessário ir logo e resolver aquela agonia..., pensou.

    A tensão só se agravava com o trote do cavalo. O tempo

    caminhava com seu passo cruel, aproximava-se rapidamente o confronto

    com o amigo, a representação acabada do perigo. Mas, no fim da Rua da

    Guarda Velha, um incidente; uma carroça caída entravava a passagem, o

    tílburi teve que parar. Parecia aquilo uma trégua, era razoável esperar.

    Nem cinco minutos decorridos, reparou ao lado da roda esquerda do

    tílburi o número da casa da cartomante, aquela mesma que Rita consultara

    e que ele só entrevira de soslaio, indiferente. Se pudesse crer nas cartas! As

    únicas janelas fechadas eram as da casa da cartomante. As demais traziam

    olhares curiosos do incidente na

    Está gostando da amostra?
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