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Zé Calabros Na Terra Dos Cornos
Zé Calabros Na Terra Dos Cornos
Zé Calabros Na Terra Dos Cornos
E-book684 páginas8 horas

Zé Calabros Na Terra Dos Cornos

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Sobre este e-book

Entre a caatinga e o mar, a Cornália é uma terra hostil, governada por coronéis, ameaçada por cangaceiros e habitada por feras lendárias. É uma época de terror. O Rei do Cangaço se ergue no leste, isolando a região e espalhando violência em sua cruzada sangrenta. Porém, quando o errante Zé Calabros, cabra-macho do sertão, salva a vida de um náufrago misterioso, inicia-se uma travessia perigosa por essa terra fantástica. No caminho, nossos heróis insólitos — e também você, leitor — encontrarão engenhos terríveis, feiticeiros poderosos, monstros selvagens e bandidos cruéis. Esta é a jornada de Zé Calabros na Terra dos Cornos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de fev. de 2017
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    Pré-visualização do livro

    Zé Calabros Na Terra Dos Cornos - Tiago Moreira

    Capa

    TIAGO MOREIRA

    Título

    1ª Edição

    Goiânia

    Tiago José Galvão Moreira

    2017

    Créditos

    Ideias e Textos: Tiago José Galvão Moreira

    1ª Revisão: Érika Cristina Alves de Souza

    Revisão Final: Thainara Gomes Rosa

    Capa/Logo: Renato Mesquita

    (Portfolio: be.net/renatomesquita)

    Ilustração: Gabriel Mesquita

    (Portfolio: be.net/gmesquita)

    ISBN: 978-85-922624-1-9

    © 2017, Tiago José Galvão Moreira

    Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial desse livro sem a permissão prévia e por escrito do autor.

    Visite nossa página na internet para contato, textos adicionais, mapas coloridos, notícias e futuras obras: www.as-cronicas-animicas.com

    A versao impressa deste livro pode ser adquirida através do Clube de Autores. Para mais informações, visite: www.clubedeautores.com.br

    Agradecimentos

    À minha querida esposa, Érika Cristina Alves de Souza, por estar ao meu lado, me incentivando, auxiliando e aturando em cada etapa do processo.

    A meu colega de trabalho, Militão Pereira Costa, pelo bom humor ao aceitar ser inspiração para um dos vilões da história (você saberá qual é, basta ler).

    A Diogo Peixoto Monteiro e Elias Miguel Thomé Júnior, por lerem (e se empolgarem) a cada capítulo que eu concluía.

    E a meus pais, Délio e Célia, sem os quais eu não seria ninguém.

    Introdução:

    A Terra dos Cornos

    "Há muito, muito tempo, existiu um reino,

    Que se estendeu por todo o mundo conhecido..."

    Naquele tempo, para fugir da loucura do rei-destino, um soldado lendário chamado Vatapá liderou uma legião de refugiados para uma faixa de terra erma no norte do continente, delimitada por duas penínsulas montanhosas. Espremida entre o litoral e o sertão agreste, aquela região era tão hostil, que mesmo o grande reino não ousara se expandir para lá.

    Em represália aos fugitivos, o rei-destino conjurou uma vasta tempestade sobre o golfo entre as duas penínsulas, impedindo a navegação e isolando a região quase completamente, exceto por uma pequena passagem junto à costa, nas montanhas a leste, por onde ainda mais refugiados viriam adentrar.

    Enfrentando feras terríveis, a secura hostil e o isolamento, o povo daquela terra se tornou forte e valente, e os maiores entre eles, para mostrar seu domínio, passaram a adornar seus chapéus com chifres, de forma que, vistas suas silhuetas, parecessem demônios.

    Eras se passaram, o grande reino dos tempos antigos ruiu, mas o mundo continuou a girar. O povo daquela região prosperou, e os forasteiros que ali visitavam retornavam dizendo: Aquela é a terra dos cornos.

    O próprio povo adotou o nome com orgulho, e a pequena nação passou a ser conhecida como Cornália.

    Aprochegue-se, meu amigo, pois tenho uma história a contar.

    É a história de um santo com um caminho a trilhar.

    Vou falar-lhe sobre um Zé, um homem peregrino,

    com uma força capaz de desafiar o destino.

    Essa história não é de agora não, ela vem lá de trás.

    Comecemos com ele menino, antes de tornar-se um rapaz...

    Prólogo:

    O dia em que eles vieram...

    Quatorze anos atrás...

    O sol ainda não estava alto no céu, mas o vento sul e o céu tão limpo já prenunciavam um dia quente, seco e empoeirado, como os dias de sempre daquelas bandas.

    Para os peões da fazenda, mais um dia árduo de trabalho.

    Para os jagunços do Coronel, mais um dia entediado de vigília.

    Mas para uma criança de sete anos, era um dia incomum, um dia sem escola.

    Na casa-grande, correndo do quarto, Zequinha descera rapidamente as escadas rumo à sala de refeições. Mal sentara-se à mesa e já engolia ansiosamente o pão fresco, alternando as mordidas vorazes com goles generosos de leite recém-ordenhado.

    A mente do menino não se concentrava no presente; pensava apenas em sair, juntar-se às crianças das redondezas e liderá-las em uma nova aventura de faz de conta. O que fariam naquele dia? Procurariam um tesouro enterrado próximo ao velho engenho? Cavalgariam pela fazenda em busca de malfeitores? Brincariam de piratas no rio? Procurariam animais exóticos na caatinga? Tantas possibilidades para um dia sem escola!

    Apesar dos pedidos de Nhá Rosa para que comesse devagar, o menino saltou da cadeira com a mesma ânsia com que sentara. Sorridente e impaciente, Zequinha correu para o salão de entrada da casa-grande, passando pela arrumadeira Dita sem dar bom dia — talvez nem a tivesse notado ali. Abriu a porta, e a luz quente da manhã banhou a pele morena do garoto, escurecida por tantas aventuras ao sol.

    Jão Bentecastro, chefe dos jagunços do Coronel, estava na velha cadeira de balanço na varanda, bem ao lado da entrada, com a espingarda em mãos. O súbito surgimento do garoto o fez se levantar num pulo. Zequinha parou ali mesmo ao ver o jagunço-mor, homem alto como uma montanha, de barba longa, grisalha e desgrenhada, uns dentes a menos na boca e um olhar de um olho só — sim, pois o outro, perdido numa briga de facas, se mantinha escondido sob um tapa-olho de couro preto.

    Dia, Jão!, sorriu Zequinha, mostrando também a falta de um dente que caíra há alguns dias. Ao contrário dos de Jão Bentecastro, o dente de Zequinha cresceria de novo, conforme afirmara sua mãe.

    Dia, patrãozinho!, sorriu o capanga, numa expressão de tranquilidade que o velho jagunço só mostrava a poucos.

    Cadê o pai?, arguiu o menino de cabelos pretos e encaracolados que lhe caíam à face.

    Jão Bentecastro apontou para o sul. O Coronel tá aí pela fazenda. Até quis ir com ele, mas o patrão me mandou vigiar a casa, então cá estou. Os animais estão agitados hoje, ele foi ver se não tem boitatá ou outro bicho perigoso andando por aí.

    Nossa, eu quero ver um boitatá, Jão!, disse empolgado o menino, já imaginando o que enfrentaria em seu faz de conta naquele dia.

    Quer ver não, moleque!, riu o jagunço, Agora vai brincar, que quero trabalhar.

    Trabalhar na cadeira de balanço e com o olho fechado, né?, riu Zequinha.

    Jão gargalhou. Mas é claro! É um trabalho bom demais da conta, vixe!

    Zequinha acenou em despedida e desceu os degraus que separavam a varanda do campo aberto e seco do sertão. Jão Bentecastro acenou em resposta, mas o menino nem notou, apenas seguiu correndo para a vila dos empregados.

    Com a cabeça envolta num turbilhão de ideias, Zequinha deixou a estrada de terra para cortar caminho pelo mato amarelado e ressequido. Movia-se com agilidade sem par, evitando buracos e espinheiros e desviando-se das árvores retorcidas. Logo chegaria à vila, onde encontraria Marianita, Bentinho, Quinzinho e os outros.

    A princípio, o menino seguiu em alegre ansiedade, sem perceber que uma nuvem negra pairava distante ao sul.

    Trabalhadores pararam para observar intrigados aquele fenômeno, mas Zequinha, perdido em pensamentos, nem reparou na anormalidade do evento. A nuvem negra se aproximava, dissipando-se em nuvens menores conforme ficava mais próxima.

    O menino também não notou quando a curiosidade dos camponeses deu lugar a pânico. Trabalhadores correram por abrigo apontando para os céus.

    De repente, um cavalo e seu cavaleiro bloquearam o caminho do garoto, finalmente removendo-o de seu estupor.

    José! Volte para casa agora mesmo!, ordenou aos gritos o Coronel Calabros, montado em seu corcel e de revólver em mãos.

    Mas pai..., o menino tentou argumentar sem entender o que acontecia. Seus olhos vasculharam os arredores, e só então percebeu a agitação. Trabalhadores corriam em diferentes direções, enquanto jagunços empunhando armas de fogo e facões vigiavam os céus.

    Não discuta, menino!, insistiu o coronel, Vai pra casa e se esconde!.

    As nuvens escuras já sobrevoavam a fazenda. Guinchados e urros ressoaram, trazidos pelo vento. Foi quando o menino percebeu: não eram nuvens, mas centenas de criaturas de cores e tamanhos diversos, vindas d'além da Catinga Danada. Os batedores da revoada circundavam pelos céus, e os primeiros deles já se lançavam ao solo, atacando os limites da propriedade.

    De olhos arregalados e coração disparado, o menino se virou apavorado e correu de volta à casa-grande. Já o pai se pôs a galopar na direção de um grupo de trabalhadores assustados para ordenar-lhes que também buscassem abrigo.

    Em passo apressado por meio da mata seca que ladeava as trilhas da fazenda, Zequinha olhou para os céus, onde mais e mais criaturas se ajuntavam. Percebeu que eram seres de asas coriáceas e corpos alongados.

    Tiros distantes ecoaram, indicando o início de conflitos. Logo os ruídos se misturaram a urros monstruosos e gritos de horror.

    Foi com ansiedade e um pouco de alívio que o menino deixou a mata seca e alcançou a trilha da casa-grande, que já surgia a umas poucas dezenas de metros à frente. Zequinha respirou fundo e voltou a correr. Trinta metros. Vinte metros. Quinze metros.

    E então um estrondo e uma lufada intensa de vento vieram por trás, tirando o garoto do chão e jogando-o com violência à frente.

    O menino caiu e rolou na terra batida e seca da trilha. Dor. Ouviu, então, um rosnado gutural e apoiou os braços para erguer a cabeça. Uma das criaturas estava diante dele, um monstro enorme, tão longo quanto três ou quatro homens altos, de olhos amarelos e apoiado sobre quatro patas. Escamas marrons cobriam todo o corpo da fera, e uma coroa de espinhos vermelhos nascia em sua cabeça e percorria toda a espinha até o fim da cauda longa e afunilada.

    Paralisado pelo medo, Zequinha não reagiu quando o monstro abriu a bocarra e ergueu a pata dianteira na direção dele. O apêndice, com três longas garras afiadas, revelou ser uma mão quando surgiu um quarto dedo, um polegar opositor a princípio escondido. A fera agarraria Zequinha, e o menino nada podia fazer.

    Foi quando veio um potente estampido, e o monstro recuou, urrando de dor e balançando a cabeça após um forte baque.

    Corre, Zequinha!, veio a voz de Jão Bentecastro, que vinha da casa-grande já recarregando a espingarda. O monstro se voltou ao recém-chegado. De um dos olhos da criatura, atingido pelo tiro, escorria sangue negro.

    Corre, seu moleque!, repetiu o jagunço.

    O menino se esforçou a levantar, mas as pernas fraquejaram e o corpo o desobedecia. A tentativa atraiu a atenção do monstro, que tentou avançar sobre Zequinha mais uma vez.

    Jão disparou novamente, e o tiro atingiu a cabeça da fera, mas não perfurou a couraça escamosa. Logo recuperada do impacto, a criatura se voltou ao atacante por um instante, mas não demorou a se atentar de novo no garoto, que se arrastava na direção do jagunço.

    Cê tá pensando em pegar o moleque e levar voando, né?, Bentecastro perguntou ao monstro, que surpreendentemente reconheceu as palavras e o fitou em resposta. Cê não vai conseguir, porque eu tô aqui!, Jão ameaçou, cuspindo para o lado, largando a espingarda e sacando em seu lugar o fiel facão. Se tiro não te fere, não faz mal. Sempre preferi brigar com faca! Em vez de pegar criança indefesa, calangão, vem em mim, que sou mais que homem crescido: aqui o cabra é macho!

    O monstro urrou para Jão, avançando furiosamente sobre ele. O homem rolou para escapar das garras da criatura, então saltou para longe dos dentes pontiagudos que tentaram envolvê-lo num segundo bote. Quando os dois se encararam de novo, o jagunço estava ileso, mas com o facão pingando sangue fétido. Já a fera exibia profundos e sangrentos cortes no braço e no pescoço.

    Nisso, Zequinha já tinha conseguido se pôr em pé. Bentecastro ordenou de novo: Já mandei correr, moleque da moléstia!

    O menino correu sem olhar para trás, deixando os dois combatentes a continuarem sua contenda. À frente, viu Nhá Rosa esperando à porta da casa-grande e gesticulando desesperadamente para ele se apressar.

    Nhá Rosa fechou a porta assim que Zequinha passou, então segurou o menino e puxou-o com ela. Vem pro meu quarto, sinhôzinho, informou a empregada, não sobe as escadas não, fica aqui no andar de baixo que é mais seguro!

    Assim feito, trancaram-se no quarto.

    O que são essas coisas, Nhá Rosa?, perguntou o menino, fitando a velha negra que por tantos anos servira a seu pai.

    São coisa-ruim, Zequinha, coisa do capeta!, a velha empregada falava com medo e fazendo sinais de benção para expulsar mau olhado. São dragões d'além da Catinga Danada, dum lugar onde nem o Divino Pai pisa! Um lugar chamado Vol'kor!

    E por que estão aqui?, o menino questionou.

    Antes que Nhá Rosa respondesse, ouviu-se barulho do andar superior: coisas caindo, madeira se partindo, vidro quebrando. A empregada puxou o menino e gesticulou para que entrasse embaixo da cama. Zequinha obedeceu, e, assim que ele se abrigou, o assoalho do andar superior desabou, cobrindo o quarto de entulho e deixando-o a céu aberto.

    A cama protegera o garoto, mas Nhá Rosa ficou imobilizada sob os escombros, parcialmente exposta. Zequinha tentou se arrastar para fora e socorrê-la, mas já era tarde. Num piscar de olhos, Nhá Rosa foi puxada aos céus pela garra escamosa de um enorme dragão.

    Desesperado, o menino permaneceu sob a cama e se encolheu, fechando os olhos e tapando os ouvidos. Ainda assim, ouvia a casa-grande ruindo, os disparos cada vez mais infrequentes de armas de fogo e os gritos apavorados de inocentes levados pelos monstros.

    Mesmo quando o conflito se aquietou, as feras ainda teimaram em partir. Às vezes, o garoto até achava que os dragões falavam entre si, vociferando ordens e avisos num idioma gutural e sibilante. Horas se passaram antes que os monstros fossem embora.

    ------------------------------------------

    Embora os sons tivessem cessado horas antes, Zequinha só criou coragem para sair do esconderijo ao entardecer. Faminto, apavorado e cansado, o menino lutou para mover os destroços e alcançar a luz já fraquejante do sol poente.

    Ele procurou por sobreviventes, mas todos foram levados. Seu pai, sua mãe, Jão Bentecastro, Nhá Rosa, Dita, Marianita, Bentinho, Quinzinho... Até os cavalos, o gado e os cães. Nada mais restara.

    Naquele momento, o menino Zequinha se viu sozinho. E chorou.

    Para muitos, um dia de tragédia.

    Para os vilarejos e cidades da Cornália, que só saberiam do ocorrido algum tempo depois, um dia negro.

    Mas para José Calabros, filho do Coronel, foi o dia em que eles vieram...

    Muitos anos se passaram desde a data desgracenta,

    mas ainda hoje vivemos numa era violenta.

    Este mundo, meu amigo, é cheio de tragédias.

    Raro é o sujeito que do destino toma as rédeas.

    Esse caos é herança do Diabo Velho de eras atrás.

    Mas a cada geração aparece algum cabra audaz,

    e quando isso acontece, meu amigo, você pode apostar...

    Que esse mundão todo está prestes a mudar!

    Capítulo 1:

    Vazios por dentro

    O barco chegou! O barco chegou!, gritavam as crianças vindas da praia. Corriam serelepes pela avenida do comércio, trazendo a boa nova que empolgava comerciantes e fregueses naquela manhã ensolarada.

    O barco chegou! O barco chegou!, repetiam os comerciantes uns aos outros. As crianças entravam nas vielas e ruelas de Curva do Vento para anunciar a boa nova tão animadora a todos. Naqueles tempos aguerridos, poucas novidades seriam mais alvissareiras.

    O barco chegou! O barco chegou!, o coro repetia, tornando-se cada vez mais intenso, espalhando-se do porto à feira, da feira às casas, do centro às periferias. Os ventocurvenses, assim como outros cornos e forasteiros ali refugiados, repetiam a notícia numa crescente e animada corrente. E assim começava a corrida pelos paralelepípedos da avenida do comércio, ladeira abaixo rumo à praia. Os que não se juntavam à frenética procissão, seja por falta de dinheiro ou de esperança, desejavam boa sorte aos que partiam.

    Fundada pela família Malícia, Curva do Vento nascera e crescera junto às falésias escarpadas do litoral ao norte e do braço esquerdo do Rio Seu Chico a oeste, tornando-se uma das maiores cidades da Cornália e atraindo gente de toda a região. Apesar de grande e costeira, a cidade dependia do comércio terrestre, e seu porto era apenas um conjunto de píeres e casebres de pescadores à beira de uma praia rochosa. Ali as famílias armavam suas barracas para vender o que os pescadores apanhavam quando a tempestade ao norte permitia: peixe, camarão, ostras e outros frutos do mar.

    Em geral, pouco movimentada, a praia naquela manhã experimentava o rebuliço de dezenas chegando às levas pela ladeira da avenida. O local não era convidativo, sua areia escura se misturava a constantes pedras de diversos tamanhos. Os esparsos casebres dos pescadores, mesmo construídos no limite da maré, eram elevados sobre colunas de madeira para proteção contra os alagamentos causados pelas tempestades frequentes. Ao norte, o mar escuro e a eterna tempestade negra no horizonte contrastavam com o céu azul e as poucas nuvens que desimpediam o sol intenso acima. O calor era exacerbado pelo estranho vento seco que dava nome à cidade, vindo das terras áridas ao sul ao invés do mar.

    O barco que todos esperavam, um pesqueiro adaptado de mastro único e vela triangular chamado Caixeiro-Viajante, já se encontrava atracado. Embora maior que a média das embarcações locais, mal suportava uma tripulação de cinco, e o espaço no casco para as mercadorias era limitado, apesar do número impressionante de caixas e caixotes que dali eram descarregados por pescadores e estivadores. Os trabalhadores formavam uma fila constante, indo e voltando entre o barco e a venda improvisada que se formava na ponta seca do píer.

    Cuidado com essas caixas aí, alertou Capitão Jacinto aos berros, sua voz quase se perdendo diante do ruído das ondas, do uivo do vento sul e do burburinho da multidão. Ver aquele tanto de gente acumulada na praia trouxe uma sensação, ao mesmo tempo, doce e amarga. Por um lado, tinha a certeza de lucrar com seu precioso carregamento. Por outro, não supriria as necessidades de toda aquela gente. Tonho!, gritou o capitão ao filho primogênito e segundo em comando, Cuida de descarregar o barco, que eu vou ali na praia pra modo de sossegar o facho desse povo todo!.

    Tonho assentiu de imediato, e o velho Jacinto coçou a barba já branca e seguiu pelo píer até a ponta seca, onde a multidão esperava. Ali, sua esposa Nadica e os filhos mais novos do casal, Jonín e Narinha, abriam as caixas recém-chegadas com pés-de-cabra e organizavam os produtos em cima de um conjunto de caixotes vazios, formando um balcão improvisado. Pequenas caixas continham bijuterias, joias e prataria. Caixotes maiores vinham com temperos, carne salgada, bebidas alcoólicas, medicamentos, ferramentas e utensílios. Além dos engradados, eram trazidos da embarcação rolos e mais rolos de tecidos raros por aquelas bandas. Cada tipo de item já vinha com uma etiqueta escrita à mão contendo o valor de venda definido por Jacinto.

    Não se avexem! Não se avexem!, repetia o capitão, erguendo os braços e sorrindo. Sejam todos bem-empregados! Eu trouxe tudo o que deu de Dragona, só tem coisa boa! Cada um leve só o que precisa, que aí vai ter pra todos, Divino Pai assim queira!

    Mas o público mal prestava atenção e, apesar dos pedidos, cada um só se preocupava em levar tanto quanto conseguisse pagar. Os preços eram salgados, variando de três a dez vezes o que seriam em tempos menos conflituosos. Não aceitamos barões! Sem barões!, avisava Dona Nadica quando os clientes mostravam as moedas de ferro. Aceitamos centos-avos de cobre! Vinténs de prata! Dobrões de ouro! Já barões de ferro não vão servir!

    E as pessoas pagavam, pois mesmo que os preços fossem altos a necessidade era ainda maior. Alguns o faziam sem reclamar, outros demonstravam a contrariedade nas faces pouco amigáveis. Entre resmungos, aquele sentimento velado crescia, e o Capitão Jacinto e sua esposa Nadica sabiam disso, mas seria impossível agradar a todos.

    Não foi surpresa para ninguém uma voz elevar-se na multidão.

    É um absurdo o que vocês fazem com a gente!, esbravejou Trambico Braz, batendo com força num caixote para fazer barulho. Conhecido encrenqueiro local, Trambico apontou o dedo para o Capitão Jacinto e esbravejou, atraindo atenção para si: O povo dessas bandas passando necessidade por causa do bloqueio, e vocês aproveitadores vêm para acabar com nossas economias! Os melhores produtos são só para os ricos! Deixam os pobres ainda mais pobres! E ainda não aceitam a moeda dos trabalhadores! Digo e repito: é um tremendo absurdo!

    Aquele tipo de acusação não era incomum, Jacinto já ouvira desaforos como aqueles a cada chegada de seu barco. O problema é que tal clamor inflamava a multidão, e não era raro acabar em confusão. Não me venha falar em pobreza, que já fui pescador humilde!, o velho capitão urrou em resposta, abrindo os braços fortes e inflando o peito peludo. Cresci com meu trabalho! Comprei esse barco com meu suor! Arrisco a vida indo pro leste e voltando com tudo isso! O preço que cobro é o preço que dá, ninguém é obrigado a pagar!

    Para vocês verem!, retrucou Trambico, elevando ainda mais a voz. O sujeito enricou e esqueceu o que é ser pobre! Não tem nem um cadinho de lembrança do que é passar necessidade! Se tivesse, não ia cobrar esse absurdo por remédio que os doentes precisam! E olha o preço desse tecido! Como que uma costureira vai pagar por isso pra depois cobrar uma miséria pela roupa que faz?

    As reações do povão ali ajuntado se multiplicavam. Uns silenciosamente concordavam com o capitão, sabendo das dificuldades que ele passava para trazer suas mercadorias. Outros pressentiam confusão e se dividiam entre ir embora ou se arriscar ali por necessidade de alguma mercadoria. Tinha aqueles que tomavam o lado de Trambico Braz, seja por concordar com a justiça de suas palavras ou pra barganhar com o oportunismo. E não duvide: ali no meio havia uns doidos por furtar uma coisa ou outra no meio da confusão. Assim sendo, os ânimos inflamados faziam outras vozes se elevarem.

    Minha mãe está doente e precisa desse elixir!, dizia um.

    Esses preços estão muito altos! Vou acabar na miséria se comprar!, falava outro.

    Tenha caridade com os mais pobres!, um coro repetia.

    Naquele momento, um dos estivadores, ouvindo toda a comoção, vinha pelo píer com mais um carregamento de caixotes. Enquanto outros iam e vinham com um caixote por vez, às vezes dois ou mais se ajudando para trazer os mais pesados, o rapaz alto carregava nas costas nada menos do que três caixotes grandes, unidos por uma rede de pesca fortalecida com cordas, um peso totalmente desproporcional à sua magreza. Chegando à vendinha, o jovem e atento estivador parou logo ao lado do capitão, inclinando as costas e dobrando os joelhos para pôr gentilmente o conjunto de caixotes no chão. E então, livre do fardo, cruzou os braços e continuou a observar atentamente a discussão.

    O capitão, já nervoso, urrou em resposta: Tenho que viajar semanas pro leste evitando a tempestade e o bloqueio, sem nunca saber quando vai dar condições pra partir ou voltar! E preciso zelar por minha família, que fica sem mim enquanto eu e meu filho mais velho estamos no mar! O preço que cobro é justo!

    Invenção sua! É ganância pura! O justo é ajudar as pessoas de Curva do Vento! Você abusa da necessidade dos outros!, retrucou Trambico Braz, voltando-se à multidão para inflamá-la ainda mais: Olha só, meu povo! Ele cobra caro porque sabe que vocês não têm opção! Se cobrasse o justo ia vender muito mais e atender todo mundo! Todo mundo ia ficar feliz, e ele ia ganhar só um pouquinho menos! Mas o que o capitão aí quer mesmo, é ganhar muito dinheiro com pouco trabalho!

    As palavras de Trambico eram uma provocação à honra do Capitão Jacinto, que se aproximou do agressor e apontou-lhe o dedo na cara, se contendo para não começar uma briga: Quem não quiser o meu produto que não compre! Eu ponho o preço que achar justo!

    Mas o público, tendo seus elementos mais cautelosos e pacíficos se afastado, já formava uma turba de uns dez a vinte que urravam impropérios e descontavam suas frustrações:

    É um absurdo abusar da gente assim!

    Esse capitão egoísta devia se preocupar com os outros!

    A gente devia pegar o que quer e pronto, que dinheiro ele já tem!

    Nisso o estivador se aproximou da venda e, pedindo licença para Dona Nadica, ficou em pé em cima do caixote mais ao centro. Já naturalmente alto, despontou acima de qualquer um ali e, atraindo a atenção de Jacinto e Trambico com uma breve e forte salva de palmas, avisou em voz alta: Quem quer confusão já encontrou. O capitão tá aqui pra vender e não pra discutir. Quem não está satisfeito que se arribe daqui!

    Alguns dos arruaceiros reconheceram logo de cara aquele homem, sussurrando entre si: Caraca, é o Zé Calabros!. Os mais inteligentes calaram a boca e se esconderam no meio do povo mais ordeiro, sabendo que se aquilo ali virasse briga, a coisa seria feia.

    Trambico Braz obviamente não tinha inteligência muito elevada, pois quis argumentar: Esses preços são injustos com o povo!

    Ao que Zé Calabros cruzou os braços e respondeu: Então pega um barco, seu abestado, e traz as coisas pro povo, pois aqui quem decide o preço é o Capitão Jacinto! Compra quem quer, ninguém mandou gostar!. Apontou então para Trambico Braz, encarando-o com os olhos castanhos e falando num tom ameaçador e com a voz tão alta, que ninguém ali presente conseguiria deixar de ouvir: E quem quiser discutir, que fale com os punhos e venha com o braço pra cima de mim, seu bando de fela-d'égua!

    A turba imediatamente se calou. Os que conheciam Zé Calabros, seja de ver ou de ouvir falar, nem pestanejaram. Os outros, notando o súbito silêncio, logo aquietaram. Trambico Braz encarou Zé, ensaiando alguma resposta ou ameaça, mas acabou nada dizendo ou fazendo. Ele já tinha ouvido as histórias: com o Zé só briga quem gosta de apanhar.

    E aí, seu aboletado?, Zé continuou a encarar, Vai comprar? Ou vai dar licença pra quem tá na fila?

    Trambico engoliu em seco, baixou a cabeça e, resmungando o tempo todo, pegou duas garrafas de vinho dragonino, daqueles de menor qualidade. Três vinténs! Eu costumava pagar oito centos por uma dessas!. Em seguida, deu um dobrão a Dona Nadica e pediu: Completa metade com ataduras e metade com elixires, ao que foi prontamente atendido. Assim que recebeu as mercadorias, jogou tudo numa sacola de pano sob o braço e saiu, ainda resmoneando. Calabros desceu do caixote tão logo o reclamão sumiu de vista.

    Dona Nadica respirou aliviada, e logo o público voltou a comprar ordeiramente. Embora fosse questão de minutos para que a sanha de compras voltasse ao ritmo frenético de antes, ninguém mais ousaria recomeçar a confusão.

    Zé Calabros se sentou num dos caixotes ainda lacrados, passou a mão na cabeça para afastar dos olhos os malcuidados cabelos encaracolados e ficou a observar o movimento.

    O Capitão Jacinto se aproximou, já bem mais calmo: Agradecido, Zé! Não fosse tu aí, ia dar peleja. Preciso te compensar por isso!

    Careço de compensação não!, refutou Calabros, Só quero o combinado pelos caixotes. Já está tudo aí na praia, exceto os que vão pra coronelinha.

    Ah, mas um pouco a mais de moedas você vai receber, te garanto! Você merecia era muito mais, mas vai ser o que posso dar, e que Padim te pague o resto! Quanto às caixas da Coronel Malícia, os guardas já deviam estar aí pra pegar. Alguma coisa atrasou aqueles imprestáveis.

    Os guardas devem estar ocupados, essa cidade está uma zona!, Zé Calabros avisou. Muita família capando o gato pra cá, pra escapar do bloqueio, e aí sobra gente sem emprego e sem dinheiro. Tá tendo muito ladrão, e tão comentando por aí que já tem bando de cangaceiro rodeando essas bandas.

    Capitão Jacinto se mostrou claramente preocupado com a notícia. Os cangaceiros já estão rondando por aqui? Você acha que é do bando de Severino?

    E hoje em dia tem por aí algum desgramado desses que não seja?, Calabros questionou.

    Então lascou-se tudo!, Jacinto comentou baixando a cabeça.

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    Já passava do meio-dia e o sol ardia no alto. A venda já tinha terminado, e até os caixotes vazios sumiram, comprados por pescadores e artesãos que reaproveitariam a madeira. Sob a sombra de palmeiras próximas à falésia, a família saboreava o almoço preparado e trazido por Firmina, a filha já moça do capitão. Também eram servidos os pescadores e trabalhadores que ajudaram a descarregar o barco, Zé Calabros entre eles.

    O delicioso peixe assado na folha de bananeira, acompanhado de macaxeira frita, tinha um cheiro irresistível. Todos comiam com gosto, parando apenas para tomar uns goles de garapa ou cachaça, tudo por serventia do capitão, que estava mais do que feliz pela boa venda daquela manhã. Durante a refeição, os presentes contavam piadas e histórias, tanto reais como absurdas. Zé Calabros, contudo, pouco falava e muito ouvia, pois comia com a ânsia de quem raramente pode ter o luxo de tão farta refeição.

    Pegou a todos de surpresa o soar de um apito três vezes em rápida sucessão, interrompendo os risos e conversas animadas.

    A atenção se voltou aos seis guardas a cavalo, vestidos em uniformes e bonés azuis, que chegavam ao limiar entre os ladrilhos da avenida e as rochas da praia. No cinto, cada um tinha coldre para a garrucha e bainha para o sabre. O capitão se diferenciava por portar revólver, levar uma espingarda nas costas e vestir um chapéu adornado com medalha e chifres, um símbolo de prestígio na Cornália. Atrás da pequena tropa vinha um sétimo homem, um jovem recruta desarmado que conduzia um carro de boi.

    Finalmente apareceram!, exclamou Capitão Jacinto, levantando-se num pulo para recepcioná-los, mas antes virou-se a Tonho: Meu filho, pega o pessoal aí e vai até o Caixeiro-Viajante descarregar os caixotes da Coronel Malícia, faz favor?

    E assim fizeram Tonho, Zé e os demais. Enquanto percorriam o píer, um dos pescadores curiosamente questionou: Afinal, Tonho, o que tem nesses caixotes da coronelinha?

    Tonho respondeu: Bom, tem dois só de trecos e cacarecos. Bebida, tempero, roupas chiques e coisas caras assim, mas o resto é pros guardas e jagunços da Coronel Malícia. Tem um caixote maior só com coisa alquímica: ataduras, daquelas caras que besuntam com pomadas pras feridas, e um monte de elixir e medicamento.

    E o outro caixote, o grandão?, questionou um pescador.

    Tonho murmurou: Arma e munição. Muita munição.

    Meu Padim do céu!, exclamou alguém do grupo. É por causa dos cangaceiros, né não?

    Outro comentou: Ontem chegaram uns pescadores lá da Bota do Judas. Tavam falando que a cidade já tá cercada pelo bando de Severino!

    Pois é, Tonho assentiu, Pior que se tiver conflito aqui, sabe-se lá quanto tempo dura o estoque da Coronel Malícia. Se a guarda ficar sem munição, Severino vai é tomar a cidade também.

    Mas vocês vão continuar trazendo munição pra coronelinha, né, Tonho?, perguntaram.

    Tonho fitou a imensidão do mar, cujo horizonte parecia cada vez mais negro, tomado por escuridão só vencida brevemente por constantes relâmpagos. Respirou fundo diante daquele breu que contrastava tanto com o céu azul acima e respondeu: Sabe-se lá quando que vai dar de navegar de novo...

    Zé Calabros, em silêncio durante toda a conversa, não se surpreendeu com os olhares desesperançados e suspiros preocupados dos presentes.

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    Nas terras agrestes de Cornália, o calor da tarde é um fato incontornável. Após o almoço, é costume retirar-se para a sombra e tirar uma soneca. O comércio então fecha para só reabrir perto do entardecer, e os trabalhadores dormem sob a sombra ou vão tomar uns goles no bar. Ai, ai, que preguiça, diriam os cornos.

    Naquele começo de tarde, Zé Calabros corria ladeira acima da avenida do comércio. Barriga cheia, pé na areia, diziam por aquelas bandas. O calor nem o incomodava tanto, sua pele de cor bronze já estava mais do que acostumada com o sol, mas de barriga e bolsos cheios, ele queria também descansar as pestanas. Fora um dia proveitoso, no qual ganhara quinze centos do capitão, sete a mais do que o combinado. Mas antes do descanso precisava de água, e para isso o rapaz se dirigia para a praça no centro de Curva do Vento, onde havia um velho poço.

    O poço da praça era o marco original da cidade, inicialmente uma fazenda da família Malícia. Mais cedo naquele dia ali estavam muitas barracas de comércio vendendo artesanato, roupas, calçados e as comidas típicas da região: macaxeira, caju, carne-seca, frutos do mar e derivados. Naquela hora da tarde, contudo, a praça, ocupada por barracas vazias, mais parecia o centro de uma cidade fantasma, cena esta exacerbada ainda pelo uivo insistente do forte vento seco que sempre soprava do sul.

    Do poço, Calabros puxou um balde cheio, do qual bebeu até se saciar e depois usou o que restava para refrescar-se, jogando a água sobre a cabeça. Não se importou em molhar as roupas velhas e surradas, pois logo o vento trataria de secá-las. Em seguida, abriu o embornal que trazia consigo e tirou dele dois odres, os quais encheu. Aquilo daria para matar a sede pelo resto do dia.

    Afastando-se a passos lentos do poço, Calabros fitou ao sul uma maravilha que sempre o fascinava: o forte onde se abrigava a Coronel Malícia, um casarão enorme cercado por muros altos de alvenaria. O fascínio não vinha da construção em si, mas de sua peculiar fundação: a fortaleza fora erigida sobre um enorme bloco espesso de terra flutuante, quase uma pequena ilha que voava a dezenas de metros acima do chão e tinha um formato cônico, plano em cima, como se algum deus tivesse arrancado um pedaço do solo e largado ali pairando no ar. O único acesso àquela estranha ilha era uma ponte de corda que a ligava ao prédio da guarda municipal.

    Esse fenômeno de terra flutuante não era único em Curva do Vento. Aqui e acolá encontravam pequenas ilhas como aquela, mas nenhuma tão grande quanto a que a família Malícia tomara para si nos primórdios da cidade. Ninguém sabia ao certo como aquilo era possível, nem por que tais ilhas voadoras não eram varridas para longe pelo vento. Os cidadãos contavam histórias de terras flutuantes ainda maiores perdidas nos sertões agrestes ao sul, e até se falava de uma cidade inteira que flutuava nos céus, um lugar maravilhoso e de tecnologia prodigiosa chamado Matríxia, que Zé Calabros sonhava em visitar um dia.

    Recobrando-se do arrebatamento, Calabros voltou a apressar o passo. Seguiu para o oeste, correndo por vielas e ruelas, entre casarões e casas. Então deu um turno para o norte, de volta ao litoral. Ali não havia uma ladeira com acesso ao mar, e a falésia íngreme de uns dez metros de altura separava a cidade das rochas praieiras abaixo. Com o passo rápido, Zé escalou um ipê amarelo e dele saltou para um casarão vizinho, construído à beira da escarpa, correndo pelo telhado sem danificar uma única telha. Por fim, do alto da construção pulou o vão de uns quatro metros para o seu refúgio: um pequeno pedaço de terra flutuante que voava uns vinte metros acima da praia.

    Zé Calabros descobrira aquele estranho pedaço de chão por acaso e fizera dele sua casa enquanto ficasse na cidade, visto que ninguém mais parecia ligar para ele. A ilha não era grande coisa: não tinha mais do que uns cinco metros de uma ponta a outra, mas nela crescia grama e um belo cajueiro, que providenciava fruta docinha e sombra farta. A visão era privilegiada: dava pra ver o vasto oceano ao norte, toda a cidade ao sul, as árvores do Vale Verde a leste, e o Rio Chico Sinistro, que a oeste delimitava a cidade e desembocava no oceano. Perscrutando mais longe, via-se também as terras áridas que dominavam todas as direções da Cornália, com exceção do norte.

    Deitando-se à penumbra da árvore, Zé se pôs a pensar. Curva do Vento, como tudo em sua vida, era um destino temporário, e não demoraria a vir o dia em que ele voltaria a pôr o pé na estrada. Mas aonde iria?

    Para o oeste nada havia além de pequenos vilarejos costeiros. As cidades maiores e mais próximas eram Bota do Judas a leste e Santa Rita ao sul. Essas duas estavam nas outras pontas do Vale Verde, a porção de terra mais fértil e verdejante da Cornália, delimitada pela divisão do Rio Seu Chico em dois braços, chamados braço esquerdo ou Chico Sinistro, a oeste, e braço direito ou Chico Propício, a leste.

    As notícias que vinham de Bota do Judas não eram boas. Estaria Santa Rita segura? Calabros não ouvia nada de lá fazia um tempo. Tudo o que tinha certeza era que toda a Cornália vivia dias muito ruins.

    Sim, dias ruins, mas Calabros nunca conhecera tempos bons. Antes de Severino, houve o Coronel Tibúrcio. Antes de Tibúrcio, houve o dia em que perdera sua família. Lembranças amargas, que deixavam Zé receoso, mas ele não perderia a esperança de ver dias melhores. O que foi mesmo que Madre Magnólia disse uma vez? Esperança é como o céu? Pensar na velha clériga trazia lembranças mais agradáveis.

    Deitado ali sob a sombra, fitando o horizonte ao norte, onde o céu azul se tornava a eterna tempestade sobre o mar, Zé não demorou a cair no sono. Mas pensar em Magnólia faria seus sonhos recordarem-no de outro dia fora do comum...

    Outro dia em que monstros vieram...

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    Nove anos antes...

    Vila Maria era um vilarejo no sertão às margens do Catengão, o segundo grande rio da Cornália. Como ficava na estrada que ligava São Vatapá do Norte, a leste, a todo o resto da Cornália, as notícias de toda a região sempre passavam por lá. Era uma terra geralmente pacata, e em seus arredores existia um rancho que se tornara um pequeno orfanato.

    Monstros! Monstros!, Cisso veio aos berros correndo pela estrada de chão. As crianças do orfanato de Vila Maria logo se assustaram, algumas até imitando os avisos antes mesmo de saberem o que acontecia: Monstros! Monstros!

    É claro que a agitação repentina chamaria a atenção das sacerdotisas que cuidavam do lugar. Madres Magnólia e Hildinha e a jovem Irmã Mirna correram de um lado para o outro para arrebanhar as crianças e levá-las para o interior do casarão.

    Calma! Calma! Que história é essa, Cisso?, questionou Madre Hildinha, ajoelhando-se diante do menino e segurando-o pelos braços.

    Monstros, Madre! Monstros na Vila Maria!, repetia aos berros. O choro do menino era alimentado por um medo real, ficando claro que não se tratava de uma molecagem para assustar os colegas. O espanto inicial das crianças deu lugar a um misto de medo e curiosidade, e as outras treze crianças do orfanato foram se aglomerando ao redor dele para ouvir sua história.

    Que monstros, menino? O que você viu?, insistiu Madre Hildinha.

    Vi quando iam pra vila, Madre!, Cisso choramingava, Fui comprar pão igual você pediu. Quando tava chegando na vila, vi dois capirotos enormes chegando pela estrada pra São Vatapá! Era um maior que o outro, falando coisas esquisitas e rindo feito diabos!

    Eram monstros iguais aos que levaram a família do Zeca?, perguntou a órfã Ritinha, apontando para o menino José Calabros, então com 12 anos.

    Não, não, choramingava Cisso, tentando conter o choro para melhor falar, eles andavam, não voavam, e pareciam gente, mas eram grandes, enormes! Um deles era coberto de pelos e com uns chifrões na cabeça! O outro era ainda maior, parecia um homem, mas era tão grande que podia pisar numa pessoa e nem notar! Eles faziam tudo tremer quando andavam!

    Crianças, acalmem-se!, aproximou a velha e sábia Madre Magnólia. Se eles riam, é porque são inteligentes. E se são inteligentes, então podem não querer fazer mal! Façamos assim: orem a Padim, peçam proteção para o povo da vila, que eu mesma vou até lá para ver se está tudo bem.

    Madre Magnólia! Não faz isso não! Eles vão te fazer mal!, implorou Cisso.

    A clériga, contudo, abaixou-se ao lado dele, tocou-lhe gentilmente o ombro e sorriu: O Divino Pai está comigo e com todos vocês, meus filhos! Nenhum mal há de me acontecer, e havendo qualquer perigo, voltarei para tirá-los daqui, está bem?

    Havia algo em Magnólia que transpunha simples calma, uma verdadeira aura de tranquilidade. Ela era conhecida e querida no orfanato não só pela sabedoria e paciência, mas também pelas histórias fantásticas que contava sobre terras distantes. Falava de locais maravilhosos, monstros e dragões, e sobre santos da Cornália e de outras terras, grandes heróis que realizaram feitos até então considerados impossíveis. Ela própria às vezes fazia pequenos milagres, como curar os feridos com o toque, ou espantar animais selvagens apenas com seu olhar plácido. Bênçãos de Padim, ela explicava, e o povo da vila a procurava por tais dádivas.

    E se você não voltar, Madre?, perguntou o jovem e apreensivo Zeca.

    Magnólia continuou a sorrir. Tenha esperança, José! Ore por mim, se tem alguma dúvida. Padim vai me proteger!

    Então, quando Madre Magnólia partiu para a Vila Maria, as crianças confiavam que ela voltaria bem. Por via das dúvidas, contudo, as demais clérigas insistiram que todos no orfanato orassem por ela.

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    Foi quase uma hora de apreensão. Num dia normal, as crianças estariam em aula, aprendendo modos, leitura, escrita, matemática, plantio e criação de animais. Naquele dia, porém, as atividades foram atrasadas até que se tivesse notícias de Magnólia e do povo de Vila Maria. Houve, portanto, um enorme alívio quando a clériga retornou sorrindo. As crianças saíram correndo para recepcioná-la com abraços, num verdadeiro clima de festa.

    E os monstros? E a Vila?, perguntavam os órfãos, Estão todos bem? Te fizeram mal?

    Madre Magnólia sorriu. Não são monstros, meus pequenos, mas viajantes de terras muito distantes!

    Eram tão grandes quanto o Cisso falou?, perguntou a pequena Nina.

    Não os vi, pois já tinham partido quando cheguei, mas me disseram que eram realmente enormes!, falou a madre, rindo de satisfação. Quando os viajantes foram avistados, o povo ficou todo assustado, igualzinho o Cisso. Uns pegaram em armas, outros já fugiam, mas aí os viajantes chegaram, sorriram, cumprimentaram as pessoas e prosseguiram em viagem sem muitas explicações, deixando todos muito atônitos!

    Zeca se aproximou admirado com a coragem da clériga. Você não teve medo, Madre? Eles podiam ter te feito mal!

    Medo?, Magnólia pousou o olhar sobre o menino, Medo tive sim. Mas mais importante do que minha vida era me assegurar que vocês, meus anjos, estariam seguros. E eu tinha esperança de que nada de ruim aconteceria!

    Esperança, Madre?, Zeca fitou-a incrédulo, E se quisessem te fazer mal?

    Ah, José..., Magnólia suspirou, Esperança não é esperar que tudo corra bem.

    E o que é esperança, então?

    "Esperança é como o céu, José! Não importa o quão forte é a tempestade, nem o quão negra é a noite, o céu sempre volta a ser

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