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Escola Para Deuses
Escola Para Deuses
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E-book364 páginas5 horas

Escola Para Deuses

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Sobre este e-book

O mundo estava se transformando quando João, Celeste e Marcelo nasceram. As mortes já aconteciam e eles apenas tinham curiosidade em saber o motivo dos corpos serem tratados daquela maneira. Tudo não passava de mera curiosidade. Até que conheceram Joaquim. O que cada um fez com o que recebeu de Joaquim selou seu destino. Entretanto, João de Lata era mesmo diferente, ele se recusava a morrer. Para ele, faltava alguma coisa. Faltava entender: Por que eles fariam parte dos assassinatos? Por que eles sempre fizeram? A busca pelas respostas, levou João a uma viagem onde ele descobriu muito mais do que procurava, muito além do seu tempo e da sua existência. Mas ele só quer Celeste, ele só pensa em Celeste e, finalmente, depois de tudo, ele pode salvá-la.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de jul. de 2020
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    Pré-visualização do livro

    Escola Para Deuses - Marshal Wanderson

    Antes de começar, em uma de nossas conversas, ela disse:

    Acho que você deveria mesmo escrever.

    Então escrevi.

    Escrevi porque sei o quanto ela gosta de ler.

    Ela, que esteve comigo todo esse tempo.

    Sem você não aconteceria.

    Obrigado, Roseli.

    Agradecimentos especiais às pessoas de São Mateus do Sul.

    E ao Sebastião, que ficava horas no Vapor, contemplando o

    Rio Iguaçu.

    Nunca comprou minha maquininha, mas contou-me tudo

    sobre as duas pedras, a cor da água, o pé vermelho do Curicaca...

    Também nunca dizia onde morava. Talvez já soubesse

    que estava prestes a ir para o céu. Ele parecia mesmo saber

    tudo, como Joaquim.

    Escola para Deuses

    João de Lata

    Marshal Wanderson

    Prólogo

    O pai de Marcelo voltava para casa quando a sacola de pães que carregava rasgou-se, derrubando quase todos no chão. Ele exclamou em voz alta, amaldiçoando a si mesmo, dizendo que aquilo não era vida. Que só poderia estar no inferno e não sabia.

    De dentro da casa, em frente onde estava, ele ouviu uma voz rouca e doce de alguém dizendo que não era o inferno, mas talvez fosse uma escola.

    O pai de Marcelo tropeçou em um livro velho, ele não notou que, apesar da chuva, o livro não se molhava. Então perguntou ao senhor, dentro da casa, se aquele livro velho, com as folhas todas em branco, era dele.

    Aquele senhor de voz rouca e doce disse que não, que poderia ser do seu filho e perguntou se, realmente, ele não enxergava nada naquelas páginas. A resposta foi que não, que era apenas um livro velho, cujas letras já se apagaram. Aquele senhor então disse:

    - Se não consegue ler, então não deve ser do seu filho. Eu sou Joaquim. Por favor, entre, coma um pedaço de bolo e deixe-o comigo. O dono desse livro deve nascer logo.

    O pai de Marcelo entregou o livro e seguiu seu caminho achando ser aquele senhor apenas mais um senil. O senhor idoso pegou o livro e refletiu:

    - Como não pôde enxergar estes escritos? Bom... Então já está quase na hora... O dono deste livro deve mesmo nascer logo.

    O Início e o Fim

    E

    stava frio quando ele nasceu, chuvoso também. Um clima atípico para dezembro de 1983. A natureza talvez estivesse errada naquele dia, mas após o nascimento de João ela parecia querer comemorar, pois o tempo ruim não passou dos primeiros risos do menino.

    Sim, todo bebê chora ao nascer, mas João apenas sorria. Logo, viu-se o sol e também pássaros. Porém, as pessoas do hospital não sabiam disto, pois João fora encontrado pelo Sr. Joaquim em um latão de tinta vazio e deixado na porta do hospital. Não demorou muito para que o menino recebesse o apelido de João da Lata. A primeira manhã de João passou então, mas seu alvorecer para o mundo apenas começara.

    Ao lado, encontrava-se Celeste, com muitos mimos e presentes para ela, que nasceu antes de João. O destino os colocou ali, lado a lado, separados, porém, pelo vidro e pelo balão de oxigênio.

    Celeste tinha uma marquinha de nascença atrás da orelha que parecia uma pequena borboleta, ela usava um laço rosa que enfeitava seus pequenos e poucos cabelos.

    Todos que fitavam os olhos de Celeste se assustavam com a beleza, eram os mais belos já vistos por todos naquele hospital e estavam sempre abertos. Era quase obrigatório ficar olhando. João arranhava uma máscara de oxigênio verdinha. Ela chorava muito, ele ainda sorria, quando sua máscara o deixava.

    Fora do hospital a vida andava agitada. Uma pequena multidão marchava e gritava:

    - Diretas já! Diretas já!

    Era um tempo de libertação, de um sentimento de poder e liberdade que tomava o povo brasileiro, fazendo-o sair às ruas para lutar pelo direito de escolher seus governantes. A palavra democracia corria em todas as bocas e becos e, quando a massa é movimentada em uma única direção, fica difícil impedi-la de conseguir o que quer.

    Alguns diziam que era tudo uma ilusão. Que os heróis de hoje eram os inimigos de amanhã. Para muitos daqueles heróis sim, o dito era verdade.

    - Diretas já! Diretas Já! - a multidão continuava a gritar.

    Fogos e mais fogos eram soltos e os gritos não paravam. Como todo movimento descontrolado, a linha entre civilidade e histeria é bem pequena. O choro de Celeste talvez já estivesse prevendo o desfecho daquela tarde.

    Os gritos de Diretas Já! mudaram quando um dos fogos atingiu a rede elétrica do hospital:

    - Corre!! Tira eles de lá!! - gritavam desesperados.

    - Meu Deus!! Ajuda!!!

    - Misericórdia!!! Meu Deus!!! Meu Deus !!!

    O fogo consumiu o hospital muito rápido, havia muitos lençóis, papéis e materiais inflamáveis no local. Não havia nada que pudesse ser feito. Sim, foi triste, muito triste.

    É incrível o que uma situação desesperadora faz com o ser humano, alguns ficam estáticos, parecendo não se importar ou não conseguir se mexer. Outros se transformam em heróis de maneira improvável. Faz parte do equilíbrio de cada ser. Quando tudo terminou, salvou-se muito pouco e, naquele pouco, não estava João, nem Celeste.

    Naquele dia, muitos morreram como anjos, salvando outros. Tem também quem não conseguiu sair.  Alguns se salvaram naquela tarde por sorte, a mesma sorte que faltou ao soltador de fogos, morto dias depois.

    Todos estranharam aquela morte, menos Gugulú. Quem era Gugulú? Era um maluco vendendo pamonhas na rua. Ele dava gargalhadas, pulava, batia os braços e gritava:

    - Esse não come ma... ais! Esse não come ma... ais! - e gargalhava até perder o fôlego.

    A polícia logo teve de retirar Gugulú do local, pois estava contrastando com a reação de espanto das pessoas em volta do corpo, que fora encontrado na calçada. Alguns tampavam o rosto, outros faziam humor negro com a situação. Havia aqueles que conheciam a pessoa e se surpreendiam, mas uma coisa era certa: não dava para não notar.

    Causava espanto mesmo, todos olhavam de qualquer ângulo e viam um desenho triangular feito com algum objeto pontiagudo na testa da vítima. Logo olhavam outra vez e reparavam que os olhos estavam furados, pois as pálpebras murchavam para dentro do crânio.

    Talvez algum perito soubesse o motivo de haver sangue saindo pelos ouvidos, mas as pessoas dali se perguntavam mesmo era o porquê daquilo com a língua do cadáver. Ela havia sido arrancada e estava pregada pouco abaixo do desenho de um triângulo na testa, entre as sobrancelhas.

    Havia ainda os analistas, que afirmavam que o desenho na testa teria sido feito com o prego estranho que fixava a língua no crânio do pobre infeliz. Essa morte ficou na cabeça de muitos durante um bom tempo.

    Alceu, famoso investigador local, não conseguia encontrar o assassino, alguns pensavam que ele não fez muito esforço, pois era pai da bebezinha Celeste, e sua esposa também morreu naquele fatídico dia. Outros porém, curiosos, se perguntavam:

    - Por que judiar do coitado? Não foi por querer! Tem que encontrar e punir quem fez isso!

    Tinha ainda quem se espantava:

    - Acha?! Furar os olhos e arrancar a língua?! Que crueldade!!

    Mas o ser humano tem uma alma bem diversificada. Teve sim, quem comemorasse:

    - Bem feito!! Tenho dó é dos parentes daqueles que morreram! Quem será o nosso vingador pra eu dar os parabéns?

    Já o local, porém, não foi mais o mesmo. Nos anos que se passaram após o incêndio, muitas outras coisas tentaram funcionar naquele lugar, mas nada prosperou. Donos de casas nas redondezas tiveram que vender os imóveis, pois ninguém queria morar ali.

    Todas as semanas, parentes dos mortos no incêndio do hospital acendiam velas e deixavam flores para seus entes queridos. O cheiro de vela derretida se juntava ao cheiro de flores e, rapidamente, confundia-se com o cheiro de morte.

    Ninguém queria acordar de manhã com cheiro de morte, característica da maioria dos humanos, queriam esquecer o que foi ruim para não atrapalhar a busca de algo melhor. Comércios também não queriam associar a imagem àquele trágico acontecimento. Algum tempo depois, um cemitério foi ali construído.

    Transformado em cemitério, o antigo hospital e sua redondeza ganhara nova fama, há quem diga que, ainda hoje, em dias que começam chuvosos e terminam com sol, ouvem-se ao anoitecer risos apavorantes, seguidos de um choro de dois bebês. Estes andam entre os túmulos, desaparecendo com quem lá estiver. Tudo ficou pior para as pessoas da cidade depois que o coveiro do local fora trabalhar um dia, e nunca mais voltou. Sua esposa, Maria, jurava que ele estava preso no cemitério. Ela dizia à todos:

    - Ele está lá! Eu não estou louca! Ele está lá! Está preso em um plano astral. Eu ouço ele!!

    A maioria não prestava atenção, até que, um dia, Maria também sumiu. Gugulú disse que viu quando ela entrou no cemitério, mas Gugulú não é digno de crédito, diziam todos.

    Gugulú também sabia que tanto o coveiro quanto sua esposa haviam sido mortos por traficantes. Se lhe perguntassem, ele saberia dizer onde estavam os corpos. Mas ele não era digno de crédito.

    Embora exista uma história, um conto, de que Gugulú ficou louco depois de encarar os fantasmas, sendo o único até hoje que viu os bebês e continuou vivo. Certo é que, na verdade, ninguém se arrisca a ir ao cemitério quando chove.

    O Cemitério de Jonas e Elisa

    P

    or todo o entorno do cemitério, havia árvores plantadas, havia construções inacabadas e bastante espaço onde as crianças adoravam brincar. Três delas se destacavam das demais por estarem sempre juntas, eram Jonas, Elisa e Marcelo.

    Jonas e Elisa eram irmãos, mas de fato, é incomum irmãos daquela idade serem tão grudados. Jonas não gostava de bonecas, mas para agradar Elisa ele brincava. Até fazia roupinhas para as duas únicas bonecas de Elisa.

    Elisa, por sua vez, aprendeu a jogar futebol, pois Jonas não era lá muito bom de bola, mas com Elisa eles se divertiam. A menina até brincava de ‘pé na lata’ com Jonas e os outros meninos mesmo detestando pois, todos sabiam, que na vez dela de procurar, era só se esconder no cemitério, já que lá ela não ousava entrar:

    - Jonas, diz pra eles que no cemitério não vale! - pedia Elisa.

    - Tá bom, tá bom.

    - Jonas? - continuava ela.

    - Oi. - respondia.

    - Será que é verdade?

    - Não, Elisa, não é. É só uma história de fantasmas.

    - Mas todos dizem que quando faz sol no fim de um dia chuvoso, aparece dois bebês fantasmas no cemitério?

    - O Seu Joaquim disse que não, ele sabe de tudo. - respondeu Jonas.

    - Só você mesmo pra conversar com aquele velho doido, eu tenho medo dele. - confessou Elisa.

    - Ele não é doido. É cisma sua. Quer ir lá depois? - perguntou Jonas.

    - Deus me livre!! - brincou Elisa com um sorriso tímido - Chama o Marcelo!

    - Marcelo acha que ele é algum macumbeiro, feiticeiro ou coisa do tipo, ele também não gosta de ir lá.

    - E onde o Marcelo foi?

    - Ele não disse, mas está vindo ali. Onde você foi Marcelo?

    - Temos madeira para construir a nossa sede no campinho! Há, há. Eu fui buscar.

    Jonas já conhecia o amigo. E sabia que o buscar significava roubar.

    - Marcelo... Vamos lá! Vou te ajudar a devolver. Vamos logo. -disse Jonas.

    - Lá vem você! Que falta faz umas tábuas naquela construção enorme? Me diga, Jonas?

    - Não importa. É roubo não é?! Então é errado. Marcelo, você precisa parar com isso.

    - Ah! Então você que se dane! Vá devolver se quiser. Fica ouvindo as anedotas daquele Joaquim e quer parecer o bonzão comigo. Meu pai já me disse que o mundo é dos mais espertos. Vá se foder. Vá lá ouvir o feiticeiro então. Vá logo!

    Naquele dia, Jonas devolveu todas as tábuas. Marcelo havia retirado também pacotes de pregos e algumas vigas. O dono foi visitar a obra para ver o andamento e chegou no exato instante em que Jonas devolvia o material. 

    Pouco antes, Marcelo se arrependeu de deixar Jonas sozinho, deixou o jogo para contar ao seu pai o acontecido, queria ir lá com Jonas e explicar tudo. Seu pai, porém, lhe proibiu, dizendo:

    - Não criei filho idiota. Já disse que o mundo é dos espertos! Deixa isso pra lá e vai jogar sua bola. O outro que quis ir lá que se vire. E se alguém te perguntar, negue até morrer. Há, há, há.

    Enquanto Marcelo jogava bola no campinho da rua com os outros meninos, Jonas apanhava do dono da obra. Tentou explicar no início, mas o homem chegou batendo, sem perguntar nada, sua opção foi correr. A casa mais perto que ele conhecia era a de Joaquim, e foi mesmo para lá que ele foi.

    Joaquim era um senhor já bem velhinho que morava em uma casa próximo dali. Tinha hábitos estranhos, guardava objetos simples e sem valor que encontrava pela rua, mas raramente alguém via o velho Joaquim sair.

    Joaquim também fazia bolos, ele utilizava um forno de pedra bem grande e antigo, talvez o forno fosse o segredo do bolo ser tão bom. Embora Jonas apenas tivesse reparado o número vinte e dois entalhado na chapa de ferro do fogão.

    Fazer bolos era algo incomum para um homem daquela idade e região. Jonas gostava demais daquele bolo e Joaquim gostava de Jonas e Elisa. Talvez por saber da dificuldade da vida daqueles irmãos.

    A mãe de Jonas e Elisa era reclusa em casa e tratava os meninos de maneira diferente. Jonas parecia ser amado e era tratado com carinho. Porém, não se podia dizer o mesmo sobre Elisa. A sorte de Elisa era Jonas que, embora com apenas nove anos, por ser criado com a liberdade e os perigos da rua, podia ser considerado um mini adulto. Jonas era bom e tranquilo, mas para defender Elisa ele se transformava.

    A economia do país em 1992 estava confusa. Existia um fenômeno chamado superinflação, que corroía o poder de compra do dinheiro muito rápido. Houve quem enriquecesse se aproveitando desse fato, mas a grande maioria das pessoas perdeu muito dinheiro por não conseguir se adaptar.

    Entre os que não se adaptaram à superinflação da época e perderam quase tudo que tinham estava o pai dos dois irmãos, que em uma manhã de domingo, foi encontrado morto. Todos disseram que foi suicídio. Embora algumas poucas pessoas juravam que havia sinais de luta no local.

    É incrível a capacidade humana de direcionar suas frustrações para aqueles mais fracos. A mãe, de algum jeito, culpava Elisa pela morte do marido e sempre que podia resmungava:

    - Essa peste! Que veio de sobra aqui! Chorava o tempo todo e vivia doente. Ela que deixou o pai louco!

    A opção de Elisa era ficar perto de Jonas. Os tempos estavam difíceis para ela, com Jonas tendo muitas vezes que interceder. Marcelo ajudou algumas vezes, escondendo Elisa em sua casa até que Jonas chegasse da escola.

    A sorte não foi generosa com Marcelo em beleza. Era muito feio, mas demonstrava ter um bom coração. Em uma ocasião ele enfrentou a mãe dos meninos. Ao ver os xingamentos pesados desferidos à Elisa, ele gritou:

    - Sua velha nojenta!! Por que faz isso com ela?!

    E ele era conhecido por não poupar as palavras quando estava com raiva. A mãe respondeu:

    - Cuida da sua vida! Molequinho horroroso!

    Foi então que Marcelo continuou, sem ter freios. Houve muitos xingamentos e ofensas horríveis, ditas de maneira mais baixa, que não dava para os vizinhos ouvirem, mas entre os muitos outros que eram ouvidos, destacavam-se estes:

    - Eu achava que era mentira essa história de que o pai de Jonas se matou. Achava que era você quem tinha matado ele. Mas depois de te conhecer, até eu me mataria se fosse seu marido. Sua peste nojenta! Gorda! Baleia! Biscate! Vaca do inferno!

    - Some daqui, moleque!!

    - Gorda! Gorda! Vaca do inferno! Biscate! Puta! Nojenta! Você é bonita então??? Velha do capeta! Filha de uma égua!

    - Some daqui! Eu te mato moleque!

    - Baleia! Baleia! Eu sou feio... mas você é desgraçada de feia!! Há, há, há... Vaca! Sua Vaca!

    As pessoas saiam nas janelas para ver um menino pequeno com um arsenal de palavrões inacreditável. É desnecessário dizer que, na casa de Jonas, Marcelo não poderia ir mais. Embora ele houvesse pedido desculpas para Jonas mais tarde.

    - Desculpa Jonas. Eu não aguento ninguém maltratando vocês. Me desculpe também tia, eu falei sem pensar.

    Alguns dias se passaram e, curiosamente, a mãe estava tratando Elisa até bem, talvez fosse porque a vizinhança estava reparando. Mas não durou muito tempo. Em uma segunda feira, depois de ouvir muitas ofensas da mãe, ela concordou em ir na casa do velho Joaquim. Enquanto saiam, dava pra escutar a mãe falando alto:

    - Some peste!  Some!

    O peso das palavras insanas da mãe pareciam diminuir à medida que Elisa crescia, pois esta é outra natureza humana, talvez a mais forte de todas, a facilidade de se adaptar. Elisa sabia, dentro de si, que ela não era o problema e nesse dia começou a simpatizar com o velho Joaquim. Ele dizia:

    - Sabe mocinha, é de criança, assim como você, que se tem os melhores olhos para a vida. Enxergue com a visão do condor. Enxergue além do que as coisas aparentam. Enxergue além da decepção ou da alegria.

    Depois de comer bolo e quando sabiam que a mãe já dormia, saíram para voltar pra casa. Jonas sempre mantinha uma chave da porta escondida para esses dias. Enquanto andavam Elisa brincou:

    - Viu, Jonas? Eu não disse que não dá pra entender nada do que o Seu Joaquim fala? A verdade é que eu nem prestei muita atenção, Jonas que gosta de dar importância para o que ele fala.

    - Dessa vez eu também não entendi, foi estranho. Mas o bolo estava bom, não estava?

    - É, mas bolo é coisa de mulher. Velho maluco. - brincou Elisa.

    Jonas não continuou a conversa. Estava preocupado. Era tarde da noite e percebeu que estavam sendo seguidos. Poderia virar a esquina e se esconder no cemitério, mas com Elisa não dava, ela não entraria lá.

    Pararam na casa de Marcelo. Ele disse:

    - Podem esperar aqui. Mas meu pai não vai deixar vocês dormirem aqui, pois não quer encrenca com sua mãe. Espera... já sei. Podemos ficar a noite inteira no velório?! Seremos invisíveis! Há, há.

    De repente, Jonas avistou um grande movimento em uma casa alguns metros à frente, com as luzes todas acesas e reparou que era mesmo um velório. E os três foram juntos.

    - Invisíveis? - perguntou Elisa.

    - Espere só. Vocês vão ver. - respondeu Marcelo.

    Ele estava certo, de certa forma. Ficaram ali e não foram notados. Mas Marcelo não quis ficar. Disse que teria que voltar antes que o pai percebesse sua saída. Na verdade, estava planejando roubar o quintal do vizinho.

    - Marcelo?! Vá mesmo para casa. Você está de olho nas carambolas da Dona Zefa, não está? Por que não pede pra ela amanhã? Tenho certeza que ela não vai negar.

    - Relaxa Jonas! Não tem graça nenhuma pedir! São só umas carambolas, quem liga?

    - Carambolas hoje, casas amanhã. Isto é corrupção também Marcelo, você não deve ser assim.

    - Lá vem você! Fica aí no seu velório e seja invisível. O que foi que eu disse? Ninguém vai notar vocês. 

    E não notaram. Naquela época era costume velar os mortos na própria casa, era bem comum, na verdade. É certo também que crianças têm um superpoder em algumas ocasiões: o da invisibilidade. Quem os via, ou achava que eram filhos de alguém, ou amigos de outra criança do local. O certo é que conseguiram ficar ali até se sentirem seguros.

    Assim que chegaram e entraram em sua casa, Jonas certificou-se que a mãe dormia e mostrou à Elisa, de uma fresta na janela de madeira, o homem que os seguia. Ele vestia uma roupa escura e usava um chapéu.

    No dia seguinte, Jonas levantou cedo e a mãe não estava, era um dia bem chuvoso e logo ela chegou, acompanhada de um homem bem vestido. Jonas tinha de ir a escola, ele gostava pois a comida da escola era melhor que a de casa. Mesmo chovendo muito, Jonas foi. Elisa, por sua vez, não tinha aula nesse dia.

    Jonas, já no intervalo das aulas, sentou em um canto junto com Paulinho, outro amigo de escola, não tão amigo quanto Marcelo. Os dois se deliciavam com a sopa da escola quando Paulinho perguntou:

    - Elisa não tem aula hoje?

    - Não, ficou dormindo. - respondeu Jonas.

    - Hoje é o melhor dia, dia de sopa, dia bom pra não ter aula é sexta, que tem arroz doce. - disse Paulinho, sorrindo. 

    Jonas sorriu, eles se davam bem. Paulinho não era tão pobre quanto Jonas, mas tinha lá suas necessidades. Jonas disse:

    - Queria que Elisa pudesse vir, mas eles não deixam entrar quando não tem aula. E também estou curioso.

    - Com o quê? - perguntou Paulinho.

    - Tinha um homem em casa, falando com a mãe. Ele era alto, usava um chapéu e era bem vestido. Não deu tempo de ver o que ele queria. - disse Jonas.

    - Não deve ser nada, talvez seja emprego. - ponderou Paulinho.

    Mas, de repente, Jonas saiu correndo, pulou o muro da escola e deixou Paulinho sem entender nada. Jonas lembrou-se da noite anterior. Lembrou-se do homem que os seguira e lembrou-se, principalmente, do chapéu. Ao chegar em casa, já quase sem fôlego, perguntou:

    - Mãe, cadê Elisa ?

    - Não sei, deve estar por aí e já volta. - respondeu a mãe, parecendo nervosa.

    Jonas procurou muito e seus amigos o ajudaram, até Paulinho, e principalmente Marcelo, que até foi à casa de Joaquim.

    - Ô Seu Joaquim! A Elisa sumiu. Estamos procurando já faz um bom tempo. O senhor a viu ou sabe de algo?

    - Não, pequeno. Eu não a vi.

    - Por que o senhor guarda todas essas coisas? O senhor é algum feiticeiro? – perguntou Marcelo, assustado com a quantidade de objetos estranhos e antigos guardados ali.

    - Eu não faço feitiços. Logo, não posso ser feiticeiro, não é? Quer um pedaço de bolo?

    - Sei... O senhor é estranho Sr. Joaquim. Esse bolo é bom. Eu quero.

    Marcelo recebia os mesmos tipos de aconselhamentos de Jonas, mas, diferente do outro, nunca dava atenção. Chamava Joaquim de feiticeiro maluco. Enquanto saía de lá para continuar procurando. Joaquim disse a Marcelo:

    - Sabe, o medo dá forças para alguns e paralisa outros. Para os que estão paralisados o tempo passa muito mais devagar.

    - Lá vem você com seus enigmas de feiticeiro. Eu vou embora daqui.

    - Sim. Você pode ir, mas procure lembrar-se que você tem escolhas. Que pode sempre escolher fazer o bem.

    Poxa! Que velho esquisito. Nem sei porque ainda venho aqui.

    Ninguém encontrou Elisa. Jonas voltou pra casa e tentou indagar a mãe novamente:

    - Mãe. Elisa sumiu. Ela falou algo? A senhora a viu saindo?

    - Vi nada não, Jonas! Aquela menina não é certa, você sabe! Deve estar por aí e já volta. - esbravejou a mãe.

    - Quem era aquele homem que estava aqui hoje cedo? -perguntou Jonas.

    - Coisa minha! Não se meta não! - respondeu a mãe.

    Veio a tarde e a chuva parou, até esboçando um solzinho. Jonas, que dizia não acreditar naquelas coisas, ainda pensou ser aquele um típico dia dos fantasmas dos bebês mortos aparecerem. Mas, sua preocupação era Elisa. E anoiteceu. E Elisa não apareceu.

    Jonas desconfiava de alguma coisa da mãe com aquele homem do chapéu envolvendo Elisa, enquanto ele estava na escola. Depois de procurar em todo lugar até tarde da noite, apenas um lugar não fora tentado, o cemitério.

    Mas lá ela não entraria! Ela nunca entrou ali! Ela tem pavor daquele lugar! Será Jonas?! Será? Não, ali não. Mas já procuramos em todos os lugares?! Só tem um jeito de saber...

    Elisa não entrava no cemitério nem com Jonas, nem em bastante gente. Nunca. Mas não havia mais onde procurar. Ou melhor, ainda tinha a casa do velho Joaquim. Até Marcelo havia ido lá, mas Jonas não sabia. Não pensou duas vezes e correu para a casa do velho.

    - Elisa veio aqui? - perguntou.

    - Não, pequeno. - respondeu o velho.

    - Estou com medo, ela nunca sumiu assim. - confessou Jonas.

    O velho Joaquim então, calmamente, olhou para o céu e voltou o rosto de novo para Jonas, dizendo pausadamente:

    - Sabe, o medo dá forças para alguns e paralisa outros. Para os que estão paralisados, o tempo passa muito mais devagar.

    A verdade é que dessa vez Jonas não entendeu nada. Apenas tentava imaginar o que teria acontecido para Elisa sumir, e se ela estivesse mesmo no cemitério, teria um motivo muito, mas muito grande para entrar lá. E, claro. Havia sim o receio com os fantasmas.

    Enquanto corria para o cemitério, pensava nas palavras do velho Joaquim. E se Elisa estiver com tanto medo que ficou paralisada? Não reparando no tempo que passou? Mas ele não tinha certeza. Só queria encontrá-la, e então, quando percebeu, já tinha chego ao cemitério.

    Ele subiu em uma árvore, uma sibipiruna, na verdade. A vontade de encontrar Elisa suplantou o medo de cair. Embora quase aconteceu quando escorregou no galho ainda molhado. Estava pronto para pular, mas as pontas de setas afiadas no alto da grade exigiam uma preparação melhor para o salto.

    Se eu ficar espetados nestas coisas não poderei ajudar Elisa. Na verdade, serei eu a precisar de ajuda.

    Avisado pela quase queda com o galho molhado, Jonas decidiu descer, ali não daria para entrar. Era melhor contornar e ir para o local onde estava acostumado, onde brincavam de pé na lata com Marcelo, que fez um buraco na cerca, propositadamente, para poder se esconder.

    A decisão de contornar se mostrou razoável. A entrada no cemitério foi fácil. Mas Elisa não estava ali por perto.

    Por que ela iria para o interior do cemitério? Não deve estar aqui! Dia ruim pra ficar aqui dentro. Choveu o dia inteiro e fez sol no final da tarde, agora está anoitecendo... Dia ruim para vir aqui. Elisa... não deve estar aqui. Por que viria pra cá? Ainda mais em um dia como hoje?

    Mesmo com o pouco sol feito no final da tarde, antes de escurecer, os restos de água daquele dia chuvoso se juntavam até formarem um pingo de água bem grosso, pela falta de vento. Quando caíam no chão, pareciam passos de alguém.

    Eu sei que são pingos d’agua. Mas tinham que parecer tanto com gente andando? Elisa... Cadê você, Elisa?

    Não havia mais luz para iluminar o cemitério. As luzes da rua não eram vistas mais. Tão escura quanto carvão, estava aquela noite. Choveu e ventou durante todo o dia, mas naquela hora da noite não havia vento. Dava pra ouvir qualquer barulho, por menor que fosse.

    Cada coruja que piava lhe proporcionava um arrepio, que subia dos calcanhares até o couro cabeludo e parecia

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