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O Enigma Da Face Oculta
O Enigma Da Face Oculta
O Enigma Da Face Oculta
E-book636 páginas8 horas

O Enigma Da Face Oculta

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Sobre este e-book

Tudo o que ele lembrava era a casa escura e abandonada onde retratos o haviam intrigado. Depois dela, do barão e da insígnia, seus olhos despertariam confusos e aflitos por ostentarem um sujeito nu, escoriado, atado a uma árvore, inciente do próprio passado ou identidade, cercado por hominídeos que examinavam cada parte de seu corpo. Quem seriam? O que almejavam? De onde vinham tantos entes e situações infestando sua razão enquanto fome, solidão e dor o debilitavam numa caverna? Seriam lembranças embaralhadas que emergiam? Delírios sem sentido? Contatos extraplanares? Onde ele estava realmente? Teria enlouquecido? Vivencie os tormentos de um homem enquanto ele tenta desesperadamente recuperar cada peça de seu quebra-cabeças interior desmantelado, resistindo aos horrores de um mundo implacável e selvagem para lembrar-se de quem é antes que seja tarde. Mergulhe em seus medos e mistérios por planos que misturam magia, misticismo e símbolos oníricos; interaja com personagens e criaturas que podem esconder pistas, auxiliá-lo, ignorá-lo ou aniquilá-lo, pois grandes revelações espreitam sua caminhada, mas você precisará escapar da morte para conhecê-las.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de set. de 2020
O Enigma Da Face Oculta

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    O Enigma Da Face Oculta - Luiz Mendes Junior

    O ENIGMA DA FACE OCULTA

    Luiz Mendes Junior

    O

    enigma

    da

    face oculta

    1ª Edição

    Luiz Carlos Mendes Junior

    Rio de Janeiro

    2012

    © 2012 Luiz Mendes Junior

    ISBN: 978-65-88367-16-2

       Capa:

       Rafael Falconi

       Adaptação da capa:

       Liliane Reis e Luiz Mendes Junior

       Diagramação:

       Samuel Duarte Marini

       Revisão:

       Sandra Santos

       Conversão ePub:

       Samuel Duarte Marini

    PRIMEIRA PARTE

    CATIVO

    ****

    Essa casa... está escuro aqui.

    Não totalmente, claro. Há um pouco de luminosidade vindo da janela com grades.

    Lua cheia? Algo não me deixa ver com perfeição. Aquela coisa branca no céu por entre as árvores. Sim... lua cheia... lá fora. Frio também. Deve estar bastante frio do outro lado destas paredes, creio. Aqui dentro está um pouco.

    Devo tatear mais. Achar uma lareira e também tochas. Tochas! Preciso encontrá-las e acendê-las, mas como?

    Algo se move por entre as folhagens lá fora. Um vulto que desaparece tão rápido quanto surgiu. Tenho de acender alguma coisa... preciso de fogo. Continuar tateando... continuar apalpando... até sentir... a maçaneta gelada.

    Metal enferrujado... abandonado. Lugar abandonado. Eu também?

    Girar... abrir... rangido... luminosidade ao fundo. Luminosidade em movimento. Chamas? Verificar...

    Última olhada na pequena janela gradeada do cômodo de pouco espaço que deixarei. Não há alternativa senão explorar o breu até a luz.

    Passos modestos... cautelosos. Chão formado por blocos de pedra. Blocos maciços mas escorregadios de vez em quando.

    Continuar caminhando... coisa suave e barulhenta sob os pés... abaixo-me para apanhar... pergaminho que não posso ler.

    Chegar perto da luz... caminhar devagar... mais fácil enxergar agora... cômodo bastante grande este.

    Há uma enorme mesa no centro, como num castelo. Mesa comprida e estreita.

    Numa cabeceira existe um trono. Na outra, nada. Muitas cadeiras ao longo das bordas. Cálices, tigelas e um pequeno candelabro sobre a toalha que reveste o tampo.

    De quem seria tal trono? Ou a mesa? Ou a casa?

    Resolvo parar. Preciso pensar. Examino a labareda que brota de uma obstrução cuidadosamente construída na saliência semicilíndrica da parede. Não vejo sinais de lenha ou qualquer outro alimento para o fogo que parece  simplesmente  emanar  do chão. Minha atenção é então interrompida pelo saldo da centelha que quase me atinge o olho.

    Quem acendeu esse fogo?

    Viro-me para o resto da sala. Uma espiada rápida nos oito quadros da parede oposta que seriam bem mais visíveis se estivessem próximos à lareira. Observo ao redor, em seguida. Dois candelabros maiores largados no assoalho. Um dos suportes está quebrado. Telas rasgadas também se acham dispostas pelo chão junto com livros, pergaminhos soltos, tigelas e garrafas quebradas. Nada de janelas por aqui.

    Continuo a explorar. Tochas finalmente! Resolvo acendê-las com o fogo da lareira e o cômodo se revela muito mais acolhedor.

    Certamente é uma sala de jantar. Grande... nada suntuosa... mas com um toque nobre.

    Falsamente nobre.

    O título ostentado pelo brasão pregado numa das paredes parece ter sido concedido como favor, talvez até inventado. Uma análise mais profunda dos elementos que simbolizam este estranho baronato revela possíveis conexões com uma linhagem Tirenat. O leão, entretanto, não se encaixa bem com a simbologia da família fortemente ligada a atividades religiosas. Noto também esta cobra retorcida: esquisita e familiar. Nem seria leviano de minha parte admitir que conheço tal emblema, embora não me seja possível recapitular sua natureza.

    Tirenat...

    Sou incapaz de lembrar o nome de qualquer membro da família. A denominação apenas me veio quando percebi o brasão.

    Culto.

    No momento anterior eu podia recordar tudo e fazer uma série de conexões, mas algo subitamente se apagou em minha memória, ou talvez a recordação tenha apenas surgido e passado.

    Encaro o símbolo novamente e noto haver uma estranha ligação entre nós. Percebo a possibilidade de ter visitado essa sala e jantado nessa mesa algum dia, talvez como um convidado do barão a quem o trono e a casa pertencem.

    Sinto como se a primeira peça de um enorme quebra-cabeça acabasse de me ser concedida. A residência onde estou pertence a um barão que deve me conhecer, caso eu realmente tenha partilhado um banquete em sua companhia.

    Procuro por um nome: o do nobre em questão. Rastreio lembranças e me deparo com um enorme abismo entre elas e minha consciência. Há algo bastante errado. Minhas recordações estão difusas. Mal consigo resgatar os eventos que antecederam este lugar, como também sou incapaz de soletrar o próprio nome ou mencionar o de um parente. Concentro-me em recapitular termos e lugares conhecidos, mas o fluxo do tempo só torna este embranquecimento maior, até expandi-lo para cada canto de minha razão. Já ignoro quem sou, idade, origem... tudo. Não tenho amigos, endereço ou ocupação. Evaporou-se até o desenho de minha face. Tal circunstância, entretanto, não me parece tão anormal. E é nesta parte que o quebra-cabeça se mostra infinitamente maior do que imaginei. De certo modo, percebo não ter sido acometido de um súbito esquecimento, mas de uma estranha revelação.

    Sinto-me confusamente livre.

    O embranquecimento inicial dá lugar a um vazio por onde minhas poucas lembranças remanescentes podem circular e interagir de novas e variadas formas.

    Ah, sim! Há lembranças remanescentes.

    Se tal apagamento fosse total, não me seria possível elaborar e traduzir os pensamentos da forma complexa que faço nesse momento.

    Não! Minha mente permanece intacta. A diferença é que parece ter assumido um novo estado.

    Mas quando isso aconteceu?

    Ou teria ocorrido aos poucos quando adentrei esta morada?

    O engraçado da situação é sentir-me ainda no controle, como um bêbado que se apercebe diferentemente das coisas e perde os receios habituais, tomando atitudes fora dos limites de sua normalidade.

    Normalidade.

    Sinto-me mais normal do que nunca. Mas nunca quando? Em que momento fui anormal, se é que isso se deu?

    Em que momento estive fora daqui?

    Em que momento conheci esse barão?

    Em que momento comecei a esquecer?

    Onde está tal homem? Tal casa? Tal mundo?

    O que há fora dessas paredes ou do outro lado daquela porta afinal?

    Bêbado.

    Não me sinto assim e sei que não experimento tal estado familiar cujas sensações ainda me são relembráveis. Infelizmente, o mesmo não se dá em relação às circunstâncias onde ocorreram.

    Mas outras substâncias também geram diferentes estados de consciência. Substâncias de nomes complexos, feitas por homens misteriosos em vestimentas esquisitas. Homens capazes de alterar o comportamento natural das coisas, que podem ler e controlar mentes, ver além dos próprios limites, invocar divindades e entidades espirituais, modificar formas ou apenas sumir. Homens como o do retrato no chão.

    Ah, sim! Existem telas rasgadas dispostas pelo assoalho, além de livros, pergaminhos soltos, candelabros jogados e outros objetos espalhados sobre o chão da sala. Por alguma razão, entretanto, meus olhos não conseguem deixar tal retrato de lado. Um indivíduo calvo de feições finas e cavanhaque pontiagudo me encara sério com o olhar mais malicioso possível. Seu semblante reflete certa sabedoria misturada a um profundo rancor. O homem devia ter por volta de quarenta anos quando esta tela foi pintada. Mas a tinta... há algo estranho nela... as cores parecem... suas roupas estão... Minha nossa!!!

    O retrato não se encontra mais em minhas mãos que agora tremem.

    Seu rosto... está envelhecendo!

    Olho em volta novamente... para a mesa... os candelabros... tudo que se encontra pelo chão... mas o retrato...

    Não pode ser! O rosto é o mesmo que encontrei anteriormente! Mas eu o vi envelhecer!

    O que acontece comigo? Por que não me lembro? Por que esse retrato pareceu tão vivo? Por que visto esses trapos? Como vim parar aqui?

    Observo minhas mãos trêmulas. Uma delas continua retendo seu pergaminho sujo.

    Olho o retrato novamente. O rosto do homem está lá da maneira que encontrei pela primeira vez.

    Medo.

    Ainda sinto um pouco de frio, preciso chegar perto das chamas.

    Fogo.

    Apanho o retrato de novo, lanço-o na lareira e ele é desfigurado quase que instantaneamente.

    Aproximo-me da labareda mas não sinto o calor. Chego perto até quase tocá-la, porém não noto qualquer diferença, e o mais impressionante é que uma coisa aqui dentro me diz que isso é absolutamente normal.

    Pego então um manuscrito do chão, arremesso-o contra o fogo e ele se desfaz.

    Apanho um livro, repito o procedimento e este vira cinzas também.

    Ameaço fazer o mesmo com o pergaminho que tenho em mãos, mas mudo de ideia subitamente.

    Talvez eu deva lê-lo.

    Está sujo, rasgado e amassado. Estico-o com as mãos e o aproximo da claridade.

    Tem algo escrito aqui.

    Eu bem que avisei.

    O susto é inevitável. Fecho os olhos instantaneamente.

    E tremo.

    Volto a encarar a antiga pele de carneiro que já foi alva um dia. Não há mais palavras ali.

    Examino detalhadamente o pergaminho. Nada escrito. Nada além de sujeira.

    Sou ludibriado por minha mente o tempo inteiro enquanto cogito quanto tempo resta para amanhecer.

    Parece-me que jamais haverá uma manhã. Ou um amanhã. Jamais haverá esperança novamente. O barão não retornará e este lugar permanecerá perdido e desolado pela eternidade junto àqueles que aqui estão. Presos no tempo. Fora da corrente. Esquecidos.

    O fogo está me fazendo pensar e ver essas coisas. Talvez eu deva apagá-lo, depois de queimar todos esses objetos inúteis.

    Há outros retratos... rostos que nunca vi. Exceto o da mulher...

    Linda. Talvez eu a conheça. Sinto uma coisa estranha ao encará-la, como se fôssemos íntimos, talvez irmãos.

    Talvez amantes.

    Há tantos elementos estranhos nesse cômodo. Tantas anormalidades. O brasão, o rosto que envelheceu, a mensagem que nunca existiu, o fogo sem lenha que não faz calor, a mulher, os livros, os pergaminhos, minha memória, o nome Tirenat, a porta...

    Quase esqueci...

    Caminho até ela sem pressa e sem parar de prestar atenção no ambiente que me envolve. Retiro uma tocha da parede e empurro lentamente a madeira podre da qual o obstáculo é feito, deparando-me com um buraco ao invés de uma maçaneta. Será que ninguém pensou em consertar isso, ou estaria o lugar realmente abandonado? Certos sinais até negam isto, mas meus instintos insistem em corroborar tal hipótese.

    A pequena sala onde entrei tem uma janela. Meus olhos preferem ignorá-la, e já passeiam pelas três cadeiras em torno da mesinha redonda que sustenta um amontoado de cartas e três taças de bronze, muito bem elaboradas por sinal. Tão logo examino esses recipientes, percebo haver líquido dentro deles. Viro-me então para a esquerda e noto uma escada-caracol ligando este recinto ao segundo andar, postada bem diante da porta principal que permite acesso à residência, construída com madeira de qualidade e revestida por barras metálicas resistentes.

    Observo as cartas agora... estão viradas, todas. Retiro uma e verifico seu lado oposto esperando por revelações que se dão sob a forma de um ovo. Ovo... mas o que significa? Talvez renascimento... minha mente está tão limpa! Acho que nunca consegui refletir da maneira que faço agora. Quem sabe eu devesse retirar outra? Pode ser esta... vejamos... o que?

    O outro lado é idêntico, como se a carta não tivesse símbolo algum e estivesse sempre virada! Seria este o significado? Algo como um espelho cujo reflexo bloqueasse uma realidade desconhecida, talvez hostil?

    Viro uma terceira... que é igual à segunda!

    As outras... todas... são apenas o verso... nada mostram! Que tipo de cartas seriam essas? Só uma contém símbolo, as demais...

    Quem sabe se em vez do ovo eu apanhasse outra carta, o resultado teria sido diferente? A escolha que fiz pode ter... selado meu destino ou talvez nem houvesse possibilidade de optar por qualquer sinal senão o ovo.

    Parece que disponho de todo o tempo do mundo para refletir a respeito. Tirenat. O nome me vem à tona novamente. Os Tirenat são religiosos. Eles são nobres e religiosos. Nobres e religiosos. Outro nome... Amadeus... Amadeus Tirenat. Pode ser o barão... pode ser o meu nome. Tenho de recordar mais... refletir... profundo... minha mente limpa... nome não importante... mente clara para descobrir... nome não importante... ovo importante... renascimento importante... barão... casa... descobrir... há uma revelação... ovo... minha mente está turva... cartas viradas... frio... ainda frio aqui... fogo da tocha não faz calor... janela... brasão... vento lá fora... escuro... retratos... janela... tenho de parar agora... janela... nada faz sentido... homem na janela... água pingando em mim... frio aumentando... homem na janela me encara... frio aumentando, estou ensopado... homem me olha da janela... homem do retrato... é o homem do retrato! Ele está lá! Está me encarando e sorrindo! Ele é mau e está sorrindo! Quero sair daqui mas não consigo mover um músculo! Está dizendo alguma coisa! Quero ouvir! Quero me aproximar... lá fora... ele está falando... não consigo entender! Estou fraco e paralisado... janela... frio... turvo novamente... revelação... maçaneta gelada... linda mulher... homem do retrato está falando... nunca amanhecerá... lugar abandonado... não consigo mais pensar... fraco e ensopado... acho que... clarão... meus olhos estão ardendo...

    ****

    Levei tempo para acostumar minha visão à claridade e o corpo àquela nova situação, estranha e desagradável. Não só pingos de chuva o atacavam voraz e incessantemente, como também um ardor contínuo provocado por cordas puídas muito bem atadas visando prender-me a um imenso eucalipto. Tremedeiras de frio e desconforto proporcionado por mãos que manipulavam minhas feições sujas, vasculhando cautelosamente os adornos de minha nudez, só serviam para enriquecer aquele ritual de tortura.

    De fato eu já avistara tais criaturas anteriormente numerosas vezes. Sabia com plena exatidão o que eram, mas se porventura decidisse precisar uma situação onde os possíveis encontros tivessem ocorrido, não conseguiria, pois embora desperta àquele momento, minha memória permanecia em estado semelhante ao que experimentara no sonho recém-terminado (no qual explorei a casa de um barão e percebi que não podia lembrar meu passado ou identidade). Mas a leveza espiritual de antes desaparecera, dando lugar à angústia. À dor. 

    E dor era o que mais influenciava a fonte dessas ideias. O frio provocado por gotículas de chuva não desviava a atenção de meu espírito, mas multiplicava o sofrimento resultante de inúmeros hematomas, uns de origem conhecida: a corda, a árvore... A maior parte, porém, parecia resultado de algum tipo de espancamento sofrido horas antes de acordar, provavelmente sem o uso de armas cortantes ou algo que pudesse me colocar à beira da morte imediata. Quem fez isso desejava que eu despertasse consciente de meu estado e incapaz de tomar qualquer atitude senão esperar um fim lento e agonizante nas mãos da fome, quer fosse a minha ou a de alguma criatura selvagem.

    Mas os seres por ali não pretendiam me comer, pelo menos naqueles instantes. Contentavam-se apenas em me examinar de forma bastante incômoda, trocando palavras ininteligíveis entre si. Um deles retirou da cinta um punhal para depois esfregar o gume na corda puída que não resistiu, fazendo-me tombar em direção às calejadas mãos de uma fêmea com orelhas pontiagudas. Era jovem como os outros e seus olhos refletiam um fascínio pela situação típico dos inexperientes ávidos em se aventurar por terrenos desconhecidos. Tal encantamento, partilhado pelos companheiros, dava-me a certeza de que ignoravam quase tanto quanto eu os antecedentes de minha condição. Os autores daquela brutalidade não se encontravam mais nas redondezas. Pelo menos até onde minha visão alcançasse.

    Eu estava nas mãos de murgons. Criaturas selvagens muito semelhantes aos humanos na forma, e bem diferentes nos modos. Há incontáveis tipos de murgon por essa região. A maioria tem pouco contato com a civilização, mas um número significativo desses seres transita entre comerciantes, ladrões e vigaristas em geral. Têm baixa estatura e raramente são robustos ou obesos. Tal espécie, extremamente ágil, esconde-se facilmente em terreno selvagem, preferindo ações de emboscada a confrontos diretos com o inimigo. Muitos são nômades, por isso é raro que humanos encontrem comunidades murgons que, quando existem, ficam em territórios pouco acessíveis e bem disfarçados nas partes mais densas da floresta.

    Em minha mente, porém, uma pergunta emergia inquieta. Como poderia eu saber mais da natureza dessas criaturas do que da própria identidade? Lembranças esparsas e palavras desconexas surgiam e desapareciam a todo instante, fazendo-me crer que alguém poderia estar manipulando minhas recordações. Eu não despertara completamente. Já podia ver mas não me mover, também podia ouvir mas não falar. A dor era bem forte e eu sentia calafrios. Um dos murgons me enrolou num cobertor tão logo percebeu isso.

    Nem demorou para que o dono destas ideias fosse carregado por dois dos machos enquanto outros lideravam a frente como batedores ou os seguiam pela retaguarda. Andavam com uma rapidez que impressionaria qualquer humano do mundo civilizado. Seus físicos aparentemente frágeis não refletiam a força e a agilidade que possuíam. Eram quase como macacos. Subiam em árvores como se fossem escadas, desaparecendo repentinamente para ressurgir entre arbustos no instante seguinte. A maioria nem vestida estava. Suas peles assumiam tons esverdeados que variavam de um quase alvo até a cor das folhagens. Dois deles usavam trajes civilizados de tamanho bem superior ao do próprio corpo, assumindo a estranheza de crianças em roupas adultas. Todos estavam armados, alguns cobertos com mantos ou envoltos em cintas. Circulavam também entre os murgons sacolas com objetos provavelmente roubados dos humanos.

    E eles prosseguiram. Troncos passavam, folhas resvalavam por meu rosto. A fraca luz solar continuava me atacando os olhos, embora gotas d´água não mais caíssem sobre a terra. Meu espírito persistia arduamente na busca de um maior entendimento da situação e enquanto o corpo era carregado inerte, a mente permanecia viva atrás de lembranças. Lembranças de qualquer natureza. Informações que me possibilitassem entender pelo menos uma parte daquilo que acontecia. E havia muitas. Palavras. Definições. Lugares, coisas, rostos. Peças avulsas de um quebra-cabeça gigantesco ainda longe de ser montado.

    Era possível sentir o frescor do vento entrando por minhas narinas, trazendo os cheiros da floresta, alguns até familiares. Eu queria respirar aquele lugar, digerir sua essência – apesar de sofrer com o frio, a dor e a angústia. Um murgon então se aproximou, me encarou e sussurrou palavras enquanto colocava a palma da mão sobre minhas sobrancelhas.

    ****

    Continuo por entre as árvores, mas o céu está quase escuro... e ninguém mais me acompanha.

    Estou só novamente com as folhagens.

    O frio diminuiu um pouco... as dores passaram. Não há mais hematomas em minha pele branca e já sou capaz de gesticular livremente, por isso estou de pé. Sem roupas. Desarmado.

    Examino o próprio corpo novamente através da claridade proporcionada por essa estranha lua cheia.

    Árvores balançam, mas não sinto vento algum. Capto um timbre suave e contínuo em algum lugar à minha direita e sigo andando na direção do som, arrepiando-me ao lembrar histórias sobre o canto das harpias e das sereias, porém este parece mais uma lamúria. Aproximo-me mais. Devagar. Atento.

    Há um homem à beira do riacho adiante. Está de cócoras observando a passagem da água. Olha-me de soslaio e volta sua atenção para o fluxo numa expressão profundamente melancólica.

    Sento-me junto a ele que nem reage. Fito-lhe o rosto mas este continua com a atenção no líquido corrente como se eu não estivesse ali. Toco-lhe então o ombro esquerdo e o indivíduo finalmente me encara.

    Ele também está nu.

    Examino seus cabelos longos e lisos, seu nariz afilado, seus lábios secos e a sobrancelha espessa. Os lamentos já silenciaram, mas a angústia permanece incólume.

    Tendo readquirido minha aptidão em enunciar palavras, resolvo perguntar-lhe o motivo de tamanho torpor e ele apenas abaixa os olhos. Continuo tentando arrancar-lhe informações, mas só recebo o silêncio como recompensa. Ao notar uma ameaça de desistência minha, o homem me indica uma direção, voltando seu olhar para a água sob essa crescente claridade lunar incomum.

    Ele contempla o próprio reflexo. Como se buscasse nos traços faciais uma saída para a amargura que carrega. Nesse instante, uma ideia... Por que não imitar seus gestos?

    Aproximo-me do riacho lentamente, temendo a revelação que está por vir. O líquido que simboliza a pureza do universo elucidará meu espírito e amenizará minha dor. Enfim encaro o monstro para conhecer sua natureza e...

    Nada. Permaneço estupefato.

    Esfrego os olhos, aperto-os, fito a água novamente e nada.

    Não há reflexo! Ninguém! Onde está meu rosto? Quem sou, afinal? Examino os próprios braços, as próprias pernas. Estão ali. Sou um indivíduo de pele clara com uns poucos pelos no corpo! Estou vivo, mas a água não me vê. Ela não me vê! 

    Pergunto ao homem pela razão de tudo aquilo e nem recebo resposta. Viro-me em sua direção para constatar que estou só novamente. Não há outro além de mim nas imediações porque meu companheiro simplesmente se foi.

    Volto-me para a superfície do riacho numa busca frenética por meu reflexo. Bato na água em desespero e grito pelo homem cujo nome nem conheci. Berro para todos os cantos desta terra misteriosa à espera de novas revelações. Lavo o próprio rosto, olho ao redor e decido andar na direção indicada por aquele que não mais se encontra.

    Enquanto caminho pela mata densa, tento focalizar a mente em tudo que ainda posso lembrar. Minha primeira recordação é o homem do retrato, o sujeito estranho que emanava malícia por todas as partes do corpo ao pronunciar termos ininteligíveis de uma janela. Seu olhar era a mais pura expressão do ódio e do desdém que já devo ter visto algum dia. Havia algo imponente naquele semblante, uma raiva contida, uma frustração prestes a explodir em ondas de fúria intermináveis.

    Logo acho uma trilha por entre as árvores e sigo. Ela termina na pequena casa de carvalho que parece oriunda de uma parábola infantil.

    Posto-me diante da entrada e tento girar a maçaneta em vão. Está dura. Bato à porta algumas vezes e, como não sou atendido, forço a madeira devagar que, para minha surpresa, rompe-se de imediato, garantindo-me acesso a um recinto totalmente escuro.

    Noto algo me impelindo a entrar e assim faço. Começo com poucos passos e vou aumentando o ritmo progressivamente até fazer o facho de luz oriundo da abertura que criei desaparecer por completo. Uma aura de segurança me invade quando sou abraçado pela escuridão. Sinto-me protegido das garras da floresta e do misterioso homem do retrato que pode estar à minha procura agora mesmo.

    E eu que achei que essa casa fosse pequena...

    Entro em devaneio no breu. O nome Tirenat me aparece novamente junto ao pergaminho e outros objetos da residência do Barão.

    Lembranças recentes se apoderam de mim.

    Tento parar de pensar por um instante e interagir com as forças ocultas que regem este lugar. Então algo acontece. Um ponto de luz brota do infinito, parecendo aproximar-se, aumentando de tamanho, invadindo meu esconderijo.

    Viro-me na direção oposta e ameaço fugir, mas meus membros ficam subitamente paralisados. Dores intensas tomam posse de cada um deles lentamente, trazendo uma luminosidade cada vez maior e mais próxima. Sinto um forte desconforto ao ser tocado por essa estranha energia.

    Nesse instante, noto uma presença, emitindo sons que tento entender, sussurros...

    E água! Ahhhhgua!!!

    ****

    Minhas pálpebras molhadas se abriram e pude ver o velho murgon... frente a frente... segurando um candeeiro aceso. Sua outra mão sustentava uma tigela vazia cujo conteúdo de instantes atrás jazia em meu rosto e iniciava lenta caminhada por diferentes direções, dando preferência a pescoço e orelhas.

    Havia outros murgons com o velho, claro, e todos me observavam no interior daquela caverna úmida iluminada apenas pelo utensílio do sujeito. Eu, por conseguinte, também os observava, examinando olhares curiosos que aguardavam qualquer manifestação repentina de minha parte. A maioria das criaturas ali era jovem, aparentando ter experimentado pouquíssimo ou nenhum contato com gente como eu.

    Gente. Como eu.

    Humana e civilizada... disso eu já sabia.

    Nunca pertenci àquele mundo rústico. Fui educado. Adquiri modos. Aprendi a ler e falar polidamente, além de precisar constantemente de utensílios, armas, livros e comida. Aliás, a fome já me corroía entranhas, competindo com a dor pelo domínio de meu espírito.

    O velho pareceu ser capaz de ler pensamentos quando me ofereceu uma tigela com algo pastoso feito de vegetais. Tentei mover as mãos e percebi que estavam atadas, assim como os pés. Pedi para ser desamarrado. 

    A voz saiu com dificuldade.

    Alheio a qualquer apelo que eu pudesse desempenhar, o infeliz apanhou uma porção da pasta com os dedos e dirigiu-os a minha boca, repetindo este procedimento constantemente até esvaziar sua tigela. O gosto era horrível, mas sentir fome era muito pior, portanto requisitei mais da substância em questão. O velho entendeu e mandou trazer uma nova tigela, que foi consumida rapidamente.

    Insisti também para me desatarem, mas aqueles murgons pouco fizeram senão me observar em expressões idiotas de vislumbre. Apenas o velho pareceu ter um controle maior da situação, trajando sua bata marrom bem larga e usando amuletos por todo o corpo. Dava claras impressões de exercer papel de sábio, chefe, sacerdote ou curandeiro dentro da comunidade.

    Dirigiu-se então à parede escura da caverna, pegou um cetro e o apontou em minha direção, dissipando aquela dor pouco a pouco. Logo ela seria só uma lembrança incômoda. Examinei-me ainda sem roupas e pedi um espelho.

    Mas eles não entenderam.

    Alguns proferiram exaltações indignadas para o líder que apenas os ignorou, preferindo aproximar-se de uma alcova na pedra tateando cálices, tigelas e garrafas até achar um saco de seda. Abriu-o e despejou nas mãos um misterioso pó branco. Deu passos em minha direção, atirou os grãos ao solo e de repente eles voaram, formando uma espiral em movimento no ar.

    Olhei boquiaberto. Os demais murgons permaneceram em estado de veneração sem se assustar com o fenômeno. O pó adquiria aspectos espectrais. Por fim pude identificar feições humanas em algo semelhante a um corpo se contorcendo freneticamente.

    Uma alma agonizando, pensei. De repente ela veio a mim.

    Virei-me para o velho que já se encontrava longe, junto aos outros. Todos assistiam de forma passiva e respeitosa. Se meus membros estivessem livres, uma fuga se iniciaria. Inutilmente, decerto.

    Por fim esperei. O espectro tinha minha vida em mãos. Mudou de forma outra vez quando voou para onde eu estava, reassumindo o estado de pó flutuante do início do feitiço.

    Enquanto a estranha entidade dançava louca a meu redor, um murgon, também envolto em talismãs, iniciava contorções semelhantes às anteriormente desempenhadas pela forma etérea, enunciando palavras com fervor e deixando as demais criaturas da câmara espantadas e imóveis. 

    O velho nada dizia ou fazia, permanecendo atento ao comportamento daquele murgon possuído como se aguardasse uma revelação. O pó, no entanto, apenas sucumbiu ao solo, e a magia se desfez tão repentinamente quanto começou. Logo não haveria mais espiral perambulando no ar, e quando todos ameaçaram sair daquele estado de assombro em que se encontravam, o possuído perdeu os sentidos, transformando o que era espanto em terror. 

    O líder chegou perto do desfalecido e o tocou. Parecia não entender. Balbuciou palavras, fazendo com que quase todos se afastassem da câmara e sumissem. Apenas o velho, o moribundo e eu ainda estávamos por lá. Continuei aturdido com tudo. Só sabia que o infeliz estava morto e que aquilo podia ter acontecido por minha causa. Exigi explicações.

    Mas a criatura só permaneceu muda me encarando, sem raiva ou rancor no olhar, apenas surpresa e espanto. Tocou-me o rosto. Examinou-me enquanto os outros retornavam cautelosamente. E eles também se aproximaram querendo me tocar, mas o velho não permitiu, parecia pedir cautela.

    Foi então que tentei um grito e o chefe murgon me silenciou com sua mão direita, emitindo também ordens a um súdito. Tal comandado, por conseguinte, caminhou até a mesma alcova onde estava o pó, apanhou uma garrafa contendo um líquido amarelo e entregou-a ao velho, cujos dedos decidiram abandonar minha boca para se dirigir ao saco de couro preso em sua bata. Lá havia uma tigela menor do que as exibidas anteriormente. Colocou nela um pouco do líquido amarelo e pediu o punhal de um companheiro, usando-o para fazer um pequeno corte em meu polegar. Desta vez consegui gritar e recebi um tapa no rosto. Minhas mãos, claro, permaneciam atadas, embora jamais impedissem que eu vislumbrasse o próprio sangue invadindo e tomando conta do líquido da tigela vagarosamente. Nem demorou para que o líder terminasse sua cerimônia, entregando o recipiente ao dono do punhal. Olhou para mim, o maldito, depois segurou meu queixo, sussurrou palavras com seu hálito nauseante, deu-me um tapa nas costas e emitiu novas ordens. Dois murgons se aproximaram em seguida, levando-me até outra parte da caverna, bem longe daquela câmara. Havia mais três que se encarregariam de remover o indivíduo morto para um destino desconhecido.

    Andei escoltado por um par de criaturas nuas com lanças em mãos enquanto a fraca luminosidade de onde acordei diminuía paulatinamente atrás de mim, tornando tudo um verdadeiro breu. Talvez eu até conseguisse espancar a maldita dupla se estivesse em condições físicas melhores, além de desamarrado, claro! Pelo menos meus pés já se moviam, menos mal.

    Na escuridão, podia-se sentir o ar opressivo das paredes. O que antes se constituía numa caverna transformava-se pouco a pouco no corredor de uma masmorra fétida e abandonada.

    Lamúrias e sussurros advinham de todos os cantos. Portas enferrujadas surgiram entre nós no exato instante em que uma luz amena começou a brotar do fim do túnel. Quando a primeira placa de ferro rangeu, abrindo uma das celas, odores terríveis dominaram o lugar. A luz recém-surgida adentrou aquele cárcere e seu dono – um murgon empunhando tocha – removeu a razão do fedor. Devia estar morta há uns quatro dias e eu iria substituí-la.

    Entrei empurrado, com as mãos ainda atadas. A porta rangeu novamente, deixando-me apenas aquele maldito cheiro de companhia. Claro que ainda restavam os ratos, vermes e insetos que me serviriam de alimentação nos dias em que passaria ali à beira da loucura.

    Ressalto que minha situação anterior também não era das melhores, pois apesar de sanada a dor e a fome, frio e tremedeiras esparsas resultantes da chuva e da fraqueza continuavam constantes.

    Mas que diabos sucedera para que eu acabasse amarrado àquela árvore em tais condições? Quem havia me espancado e por que minhas lembranças sumiram? E quanto aos sonhos? A casa, o barão, o homem e a mulher dos retratos. Ainda havia o ovo, a carta virada, a ausência de reflexo; nada fazia sentido, mas por trás desses elementos devia existir alguma chave para as respostas que eu precisava obter. Se ao menos tais criaturas me tivessem concedido um espelho...

    O tempo passou, minha barba cresceu um pouco. Não havia condições de saber quando era dia ou noite. De vez em quando um murgon aparecia com um cântaro contendo a pasta verde oferecida pelo velho em nosso primeiro encontro. Infelizmente tal alimento não se fazia suficiente para aplacar a fome voraz, responsável por minhas atitudes cada vez mais animalescas. Os insetos se constituíram na única saída.

    Comê-los era um desafio, visto que minhas mãos permaneciam atadas. Eu os esmagava com um pé e os levava à boca no chão mesmo, gritando impropérios para quem quisesse ouvir. Os lamuriantes do corredor não pareciam se importar com qualquer palavra por mim pronunciada. Nem demorou para que falar sozinho ou conversar com as pequenas criaturas da cela se tornassem minhas rotinas triviais.

    Tive momentos esparsos de sonolência, mas não pude recordar sonho algum ao acordar, exceto na ocasião em que me vi em outra cela, com paredes de tijolo muito bem construídas. Lá também havia uma porta de ferro. A abertura com barras situada do lado oposto do aposento permitia-me contemplar um bosque em torno do lago que circundava a fortaleza onde estive preso. Mais tarde percebi algo estranho: a pesada porta do sonho estava entreaberta. Dei passos em sua direção e a empurrei, iniciando caminhada por um amplo corredor com pilastras em espiral.

    O chão era de mármore e havia entalhes nas paredes douradas ao fundo. O lugar estava iluminado, mas nenhuma fonte de luz me foi visível por todo o percurso. De repente aquele corredor se tornou uma galeria imensa onde o teto mal podia ser visto e as pilastras se faziam incontáveis em qualquer direção que eu olhasse. Parei para observar o lugar quando notei que eu também era observado.

    Virei-me a ponto de perceber um vulto passar por trás de mim rapidamente. No instante seguinte, nada havia. Somente eu acompanhado da estranha sensação de desconforto e desconfiança.

    Então veio o susto. Acordei com uma aranha passeando por minha face barbada. Mexi o rosto, enxotando-a, e tentei voltar a dormir inutilmente.

    Devo ter permanecido uns cinco dias nessa rotina agonizante. Sons vindos de lugar algum traziam sofrimento e anunciavam o que me esperava nos dias vindouros. Num instante qualquer me pegava balbuciando palavras sem sentido. Um nome veio à memória. Dontenair. Outro. Valks, Ingrid, Valit, Boyed, dezenas de nomenclaturas, lugares, situações; minha mente era um turbilhão terrível e dela parecia brotar um mundo fora de sintonia. Talvez tudo estivesse voltando ao normal, mas não podia ser assim, não com aquelas vozes chorando, gemendo. Então subitamente a brancura voltou, e o silêncio também.

    Sereno.

    Até que um besouro me chamou.

    Virei-me para a parede próxima onde estava o enorme inseto. A escuridão era total mas por razões desconhecidas eu era capaz de enxergá-lo. Minhas palavras foram para ele.

    – O que foi? Já não se contenta com meu sofrimento e ainda zomba de mim? Volte para o buraco de onde saiu!

    – Está enfraquecendo, homem! Pensa que é o único a sentir as mazelas da fome nesse breu? Todos aqui lutamos dia e noite pela sobrevivência e cedo ou tarde você tombará. Nessa hora poderei vingar todos os meus irmãos que teve a audácia de mastigar sórdida e impiedosamente. Degustarei cada pedaço de sua carne vil, beberei cada gota de seu sangue podre e farei um ninho nessa barba malfadada.   

    – Cale-se, criatura das trevas! Não esqueça que ainda posso devorar mais irmãos seus até terminar de vez com essa linhagem infeliz. Lembre-se de que ainda respiro e enquanto houver um sopro de vida neste corpo enfermo, não me atacará sem que isto se constitua num risco à própria vida.

    – Como deve saber, a paciência de um besouro é quase inesgotável comparada a de um ser quase morto como você. Cada dia que o vejo, noto sua magreza aumentando. Prevejo para você um futuro macabro, desfalecendo lentamente ao som das criaturas que come, visto que num certo momento nem será capaz de mastigar e terá de engoli-las vivas, concedendo-lhes a chance de devorá-lo aí de dentro mesmo. Suas entranhas serão nosso alimento e sofrerá agonia bem superior a dos enterrados vivos, morrendo de dentro para fora, desfalecendo lentamente ao som das criaturas que come. 

    – Deixe-me, besouro imundo! Que cada pedaço meu lhe cause a pior das indigestões até torná-lo apenas uma incômoda companhia no mundo dos mortos! Ao menos estará junto dos próprios irmãos e das demais criaturas infelizes que aqui habitam. E quanto aos meus? Nem sei se lá estarão ou quem são. Agradeça aos deuses por ter uma família que pode conhecer!     

    Aquele inseto se preparava para iniciar uma nova frase, mas nosso diálogo foi bruscamente interrompido pelo rangido do ferro pesado. A voz que surgia era bem conhecida mas pouco inteligível. Eu não via o chefe murgon desde aquele encontro na câmara. Seu semblante não revelava boas intenções.

    Trazia três acompanhantes consigo agora. Um deles tinha o corpo todo pintado e estava nu. Outro vestia uma bata rasgada, assim como o velho, e usava amuletos no braço e no pescoço. O anel que ostentava tinha um globo negro preso ao metal. O terceiro não era ele mas ela, estava nua também e segurava uma espada de lâmina curta.

    Acompanhei a lamparina da criatura pintada desde sua mão até o instante em que foi colocada no centro da cela, atraindo pequenos insetos voadores. O líder fez um sinal para que todos sentassem e me ofereceu mais da pasta verde quando o obedecemos. Aceitei prontamente, mas tive de ser alimentado na boca, visto que minhas mãos ainda estavam atadas.     

    Encarei o velho no fundo dos olhos e deixei a raiva fluir.

    – Olhe para mim, infeliz! Veja minha situação! Ainda tem receio de que eu reaja? Desate-me as mãos pelo menos, para que esse martírio seja mais suportável! Sei que não me quer morto, do contrário, não estaríamos nos encarando! Solte-me pela glória dos...       

    Meu discurso foi cortado pelo tapa da criatura. O infeliz devia sentir um prazer enorme nessa atividade. Talvez esbofeteasse alguém logo ao acordar, para ganhar fôlego e encarar o dia, repetindo a atitude após o almoço e antes de dormir. Para um murgon seria então uma grande honra receber esta palma sagrada no rosto, e neste caso eu estaria em situação privilegiada, o que não bastaria para que minhas palavras voltassem a ressoar. Melhor um profano saudável do que um santo nas últimas. Se bem que eu já devia estar nas últimas, mesmo profanamente.

    O ser pintado repousou os dedos em minha testa enquanto o anel do colega era apontado para mim. A fêmea apenas observava, ouvindo as palavras que saíam da boca do velho.

    Parecia uma reza. Ele parou, colocou a mão na bolsa que carregava e retirou um saco de seda vermelho. Abriu-o. Lá havia um pó branco semelhante ao do ritual da câmara. O murgon portador do anel bebeu o conteúdo de um pote que desconfiei ser a mistura que carregava meu sangue e os farelos reassumiram aquela forma espectral de novo, de modo ainda mais aterrador. À exceção do velho, todos se sobressaltaram levemente, o que encheu meu rosto de preocupação. Levantei-me para fugir, mas a espada da fêmea não permitiu, fazendo-me esperar sentado pelas partículas de olho em duas criaturas que iniciavam algum tipo de concentração enquanto o líder voltava a falar, e cada vez mais alto. Um uivo cortou o ar. Era a aparição, o fantasma do pó. Ele me queria. Gritei tão alto quanto pude.

    A cela se tornou uma cópia do inferno. Os dois concentrados, o velho recitando palavras, o uivo, a murgon de guarda, ainda assustada. Isso sem contar com meus gritos pavorosos. Tal mistura macabra contaminou a ala inteira, tornando as lamúrias de fora berros também. Aquele ritual adquiria proporções cada vez maiores.

    O fantasma frenético me encarou e soltou um grito. Tentei levantar novamente, mas algo me impediu. Senti uma fortíssima dor de cabeça; era o pó tentando rastrear minha mente. Trinquei dentes para tentar impedir o processo e comecei a sentir enjoo, percebendo então um estranho brilho emanando em minha carne. Foi quando o fantasma desfaleceu outra vez, e ao contrário da situação anterior, seus farelos não despencaram ao solo, preferindo voar fulminantemente para as paredes em todas as direções, como numa explosão. 

    Estranhas forças tomaram conta de meu corpo, permitindo-o romper as malditas cordas. Duas daquelas criaturas tombaram ao chão. O velho colocou suas mãos sobre o próprio rosto e a mulher murgon correu para protegê-lo. Nesse momento ela me encarou e mostrou a espada, fitando também os desfalecidos. Um tinha sangue escorrendo pelas narinas e ouvidos. O outro estava com um rombo na cabeça de onde também jorrava o precioso líquido vermelho. Estavam mortos, eu tinha certeza. Tentaram rastrear minha mente, como na ocasião anterior, mas algo ou alguém me protegeu. O fantasma falhou de novo.

    Foi com rancor que a velha criatura olhou para mim dessa vez, pois a surpresa de antes se tornara um grande desafio. Talvez a dupla morta fosse seu trunfo mais valioso e o infeliz não esperava falhar na oportunidade. Nem sempre tudo sai como prevemos. A mulher se encaminhou até mim ameaçando atacar, mas o companheiro a interpelou. De certo modo, eu ainda era importante para o líder. Tinha de permanecer vivo até que conseguissem entrar em minha mente ou desvendar algum segredo. Mas se nem eu havia sido capaz disso, como conseguiriam? De repente aqueles seres serviriam de algum modo, poderíamos até trabalhar juntos!

    Loucura total. Ficar em cárcere estava destruindo o pouco que restara de minha sanidade. O velho se dirigiu à porta e saiu; a fêmea continuou me apontando sua lâmina enquanto carregava o murgon desfalecido – portador do anel – para fora da cela. Fechou a porta e pelo som que ouvi depois, já estava trancada.

    Bom... sentei-me à luz da lamparina e contemplei o moribundo. Fiz o mesmo com as próprias mãos, já livres, criando sombras na parede com os braços depois – os insetos adoraram. A cicatriz do polegar ainda não tinha desaparecido e meu corpo exibia sinais claros de inanição oriundos da comida precária. Dali a um tempo eu mal conseguiria caminhar.

    Estava fraco. O feitiço que rompeu minhas amarras foi momentâneo, por isso regressei àquele estado de debilidade aguda anterior. Fiquei me tocando e comecei a fazer o mesmo com o corpo pintado, sentindo cada parte de sua nudez, experimentando diferenças de textura em relação a minha pele. A dele nem pelos tinha, exceto pelas fracas sobrancelhas e pela fina cabeleira branca. Seu rosto embaixo da tinta era suave como o de um bebê. Difícil imaginar algo assim vindo de tais criaturas rústicas que deviam ser bem mais calejadas do que nós; apenas seus pés e as palmas das mãos exibiam sinais de vida selvagem. Lembrei-me então das mãos femininas que me seguraram quando os murgons arrebentaram as cordas na floresta. As do jovem eram iguais. Mesma pequenez, mesmos calos.

    A gritaria lá de fora estava diminuindo e quando agucei os ouvidos, deparei-me com um som familiar. Era o besouro de novo.

    – Pozinho interessante, acabei de engolir um grão! Talvez eu me torne um besouro mágico!

    – O que foi agora? Veio atrás da luz também?

    – Errado, mancebo! Quero apenas participar do banquete!

    – Do que fala afinal, criatura?

    – Não se faça de idiota! Pensa que não sei o que há nessa cabeça quase oca? Está louco para devorá-lo!

    – E você, não? – espetei-lhe o alfinete.     

    – Mas como é estúpido! Não acabei de pedir participação no banquete? Essa cabecinha é quase oca mesmo!     

    – Se sabe tanto assim do que acontece nela, por que não conta logo a eles? 

    – Por que razão eu faria isto? Presenciar esse seu sofrimento tem sido a maior dádiva que já recebi. Ver a morte saindo desses olhos tolos, esperando a oportunidade de tomar-lhe o corpo de vez, e com minha humilde ajuda, claro. Nada se compara a isto. Que eles morram tentando saber o que já conheço!

    – Então me diga o que é para que eu possa sabê-lo também!

    – Vai me deixar participar do banquete ou não?

    – Fique à vontade!

    – Siga-me então, homem, e eu lhe mostrarei. Vamos!

    O besouro disparou em direção à porta da cela e pude perceber que não estava trancada, mas só encostada. Fiz força e consegui abri-la. Um ponto de luz ao fundo me capacitava enxergar o corredor. O animal

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