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Espiral: Contos e vertigens
Espiral: Contos e vertigens
Espiral: Contos e vertigens
E-book114 páginas1 hora

Espiral: Contos e vertigens

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Sobre este e-book

A escrita vem em tom confessional, na forma de diários ou cartas, e cada conto parece formar um mosaico de uma narrativa maior, que é a vertigem da própria vida, com seus laços, seus nós e seus desencontros. É assim que alguns elementos-chaves vão se fechando, em espiral, ao longo dessas histórias que se desvelam da forma mais intimista – como se fossem narradas para alguém muito próximo, que é como nos sentimos ao entrar num universo de ficção que quase parece real.
IdiomaPortuguês
Editora7Letras
Data de lançamento15 de set. de 2020
ISBN9786586043648
Espiral: Contos e vertigens

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    Amei o livro, a autora domina as palavras e as transforma em imagens nítidas de um universo particular e verdadeiramente emocional. Tudo está no lugar certo, não deixem de ler.

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Espiral - Luciana Chardelli

Sumário

O diário de Maria

Um conto triste ou O sapato virado

Traição

Cartas a ninguém

A caixa

O menino onda

Noites sem sapatos

Caracol

Texto de orelha

Sobre a autora

Tenho uma dor de concha extraviada.

Uma dor de pedaços que não voltam.

Eu sou muitas pessoas destroçadas.

manoel de barros

O diário de Maria

Preciso lembrar dos dias que antecederam o grande dia, o dia em que tudo estava para se consumar. Sinto um desconforto, pareço confusa. O vizinho faz barulho e minha cabeça dói.

Preciso desesperadamente me lembrar da tarde em que tudo se modificou. Sei apenas que era um sábado qualquer, apenas um sábado, que amanheceu com a sina de ser diferente.

Talvez as anotações em meu diário possam me lembrar do momento em que virei uma mesa coxa. Aquele móvel cambaleante que ora diz sim, ora diz não, menos pelas incertezas das coisas e mais, muito mais, pela certeza das coisas, pois foi assim que virei isso tudo que sou agora.

Acho insuportável pessoas que, bêbadas de sua própria existência, ficam se lamuriando em uma roda de amigos. Seguindo o conselho de meu terapeuta, que não vejo há pelo menos um ano, comecei a fazer anotações e terminei por escrever um diário. Meu terapeuta dizia que as anotações me ajudariam a controlar a raiva, ou seja, uma forma de me manter elegante, contrário fosse cuspiria no prato que comi e entregaria para que Miguel lambesse a sobremesa. Me detive em mim, poupei os amigos, poupei até mesmo o terapeuta, mas não sei se me poupei.

Entro na cozinha, pego um café e volto para o quarto. O diário escondido na gaveta de calcinhas como se alguém realmente se importasse. A casa parece possuir uma luz vermelha intensa e fosca, um bordel com cheiro ocre. Parece que a casa inteira fede a ferro, como se escorresse ferrugem por seus cantos mofados de lembranças.

Pego meu diário, folheio suas páginas com uma mistura de tédio e necessidade. Meu tédio nasce pela compreensão das palavras vividas; minha necessidade nasce de uma condição, a de estar vinculada ao passado tal qual uma coisa à sua denominação, e sinto que já não me é possível modificar minha condição, muito menos minhas opções. Os nomes se agarram às coisas de tal modo que determinados eventos só podem existir mediante o nome escolhido.

Sento no chão para ler o diário.

* * *

sábado de um mês de outono

Vê-lo nadar me afoga, mas é assim que me mantenho viva. Ele nada pelas ruas e madrugadas, eu coleciono silêncios.

terça-feira e as folhas caem

Os dias passam, nada muda e tudo continua diferente.

quarta-feira fria

Fui adquirindo hábitos trôpegos, teço toda noite um casaco enorme de nossas vidas, um sobretudo de sobretudos, e a cada ponto de cruz... Nossa, como essa cruz pesa! Vou agasalhando a minha solidão. Inexplicável como a solidão que me mata me transforma, aos poucos, na própria liberdade.

Em gestos lentos e cintilantes, traço o desenho que eu lentamente teço, gestos estrábicos, astigmáticos, que por fim me levam à cama. Durmo pensando neste sobretudo que aquece os sobretudos de minha vida.

domingo de um mês de folhas mortas

Eu tento. Não sei se é uma tentativa vã, mas eu tento adquirir regras: evitar comer qualquer coisa de pé na cozinha é uma obsessão. Mas como me sentar à mesa? Qualquer mesa simples parece cruelmente esticada e se torna, em minha mente solitária, uma mesa gigante de jacarandá com vinte e quatro cadeiras também solitárias. Tudo, absolutamente tudo, é sombrio. Então, eu como ali, em pé. Olho meu gato, velho companheiro, em cima da geladeira; natureza morta.

Miguel nunca chega para o jantar. Miguel nunca gostou de gatos.

Peço ao Padre Eterno que olhando o meu inferno venha me abençoar.

segunda-feira de um mês longo

Tique-taque-tique-taque, e o dia finalmente terminou. Preparei um café. Café? Sinto sua falta.

quinta-feira de um mês qualquer

de um ano inesquecível

Olhei-me no espelho: eu já não era quem era, quem fui, quem seria e o que seria. Ao aproximar meu rosto do espelho, olhei o mais fundo que pude para o fundo do meu olhar. Uma caixa circular e negra. Veludo negro. Caixa de Pandora de apetites imêmores e saudades inomináveis.

Em que momento tudo se perdeu? Que momento é este que se eterniza?

terça-feira silenciosa de um mês bonito

Cheguei em casa acompanhada das gotas de chuva que escorriam de minha capa. Odeio guarda-chuvas. Tomei um banho mudo e quente. Ao sair do chuveiro, enrolei-me no roupão esquecido ou abandonado por você. Deitei molhada na cama, esperando que um milagre acontecesse. Milagres esperados nunca acontecem.

Levantei, fechei os olhos e fui tateando até a cozinha. Gosto de testar meus conhecimentos, mas desta vez chutei Astolfo, o gato. A vida sempre traz surpresas, por mais que se tenha certeza do caminho escolhido.

A cozinha me pareceu triste, e assim era, porque os temperos estavam sem vocação. Abri o armário e peguei um pão simples para um sanduíche humilde que nasceria apenas para cumprir o papel burocrático de alimentar um ser sem maiores desejos.

Impossível evitar: senti uma saudade imensa de cheiro de calzones. Calzones saídos do forno que preparávamos juntos. Senti uma saudade imensa do que fomos um dia.

um sábado que poderia ser um sábado qualquer,

mas não foi

Foi um encontro casual, desses que você antevê, mas ignora por saber-se nada mediúnico. Foi um encontro casual e constrangedor. Lá estávamos: Eu, Você e Ela.

Bem, lá estava: Eu; Você, que um dia foi o meu amor e agora é o amor de outro você; Você, que é o amor do meu Você, que não era mais meu e que nunca foi meu; contrário fosse, hoje, não seria dela.

Estávamos todos lá, parados, no meio da calçada, um grupo de Vocês.

Queria que vocês fossem para a puta que os pariu. Apaguei o cigarro e humildemente pensei: eu, inclusive.

Fingimos que o encontro não aconteceu e assim seguimos com nossas vidas.

sábado de um mês que se aproxima

Não foi fácil conjugar certos verbos, mas eu os conjuguei assim mesmo; mesmo sem acreditar naqueles tempos verbais. Mas agora, silêncio. Não conjugo mais certos verbos. Há verbos que jamais poderei conjugar no pretérito, então não os conjugo.

sábado de uma manhã lenta

Ver você passar sem me ver. Ver você passar sem me olhar. Ver você me ver sem me ver... Ver você passar e passar por você sem que nada aconteça, apenas um encontro slow motion de desconhecidos.

Miguel... o que significa Miguel? Mikhael, aquele que é como Deus. Ninguém é como D’us.

Ninguém é como D’us, repeti três vezes baixinho. Gostaria que você soubesse, Miguel: Ninguém é como D’us.

Vi você me ver sem me ver; não havia nada ali, havia tudo ali.

Estava tudo ali, em nada: isto é o que mais me dói.

Éramos realmente nada. Tenho que admitir que você mente. Sempre mentiu. Mentia o tempo todo. É muito fácil mentir, difícil mesmo é não esquecer a verdade.

sábado de um mês que veio

Acordei com aquele gosto de bílis na alma. Incrível como na solidão tudo profere, pronuncia, mas nada fala. Há um silêncio absoluto em cada minuto. É possível

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