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O romance da violência: sociologia das metamorfoses do romance policial
O romance da violência: sociologia das metamorfoses do romance policial
O romance da violência: sociologia das metamorfoses do romance policial
E-book341 páginas4 horas

O romance da violência: sociologia das metamorfoses do romance policial

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Sobre este e-book

Este livro percorre uma genealogia da crítica literária e sociológica do romance policial. O livro segue um percurso analítico que vai de Charles Baudelaire até autores latino-americanos atuais. Descreve o romance do enigma, de Edgar Allan Poe a Conan Doyle; o romance hard-boiled, ou roman noir, de Dashiell Hammett e Raymond Chandler, nos Estados Unidos dos anos de 1930; e o polar, na França, na Suécia e em outros países, a partir dos anos de 1960.Uma morfologia de um novo gênero literário, o romance da violência na Era da Mundialização das Conflitualidades, é aqui esboçada: a universalização do romance policial e do romance da violência. Múltiplas faces da crítica da sociedade contemporânea. Convidamos o leitor a comparar as análises aqui presentes com suas próprias experiências de leitura e seguir esta aventura sociológica, do enigma ao mistério.Compreender uma certa cultura da violência presente na América Latina é necessário para que se possa construir uma cultura da paz. Este livro é um estudo em Sociologia do Romance e tem como objeto o romance da violência na América Latina. O leitor encontrará análises de obras do realismo mágico que tiveram ditadores como personagens até romances de escritores contemporâneos como Carlos Fuentes (1928-2012) e Elmer Mendoza (1949-), do México; Ernesto Mallo, da Argentina (1948-); Fernando Vallejo (1942-), Jorge Franco (1962-) e Laura Restrepo (1950-), da Colômbia; e Rubem Fonseca (1925-2020) e Luiz Alfredo Garcia-Roza (1936-2020), do Brasil. Os romances aqui trabalhados permitem a identificação das figurações sobre a violência na modernidade tardia. Ainda que partindo dos elementos do romance policial (desde a novela do enigma ao roman noir dos anos de 1930 e o polar dos anos de 1960), a hipótese sustenta que está se configurando um novo gênero literário.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de nov. de 2021
ISBN9786588538074
O romance da violência: sociologia das metamorfoses do romance policial

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    O romance da violência - José Vicente Tavares dos Santos

    © dos autores

    1ª edição 2020

    Direitos reservados a Tomo Editorial Ltda.

    A Tomo Editorial publica de acordo com suas linhas e conselho editoriais que podem ser conhecidos em www.tomoeditorial.com.br.

    Série Sociologia das Conflitualidades

    Coordenação

    José Vicente Tavares-dos-Santos

    Editor

    João Carneiro

    Diagramação

    Tomo Editorial

    Capa

    Atelier @Arte

    Revisão dos textos em português

    Moira Revisões

    Revisão Técnica:

    Enio Passiani

    Tavares-dos-Santos, José Vicente.

    T231r

    O romance da violência : sociologia das metamorfoses do romance policial . – Porto Alegre : Tomo Editorial, 2021.

    (Série Sociologia das Conflitualidades; vol. 11)

    ISBN 978-65-88538-07-4 (Ebook)

    1. Sociologia da violência. 2. Violência na literatura. 3. Romance policial. I. Título.

    CDU 316.462:82

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Bibliotecária: Ketlen Stueber CRB 10/2221)

    Tomo Editorial Ltda. | Fone/fax: +55 (51) 3227.1021

    Rua Demétrio Ribeiro, 525 | CEP 90010-310 | Porto Alegre | RS | Brasil

    tomo@tomoeditorial.com.br | www.tomoeditorial.com.br

    Agradecimentos

    Este livro resulta de um projeto de pesquisa intitulado Conflitualidades: violências, representações sociais e segurança cidadã na América Latina, realizado desde 2011, com financiamento do CNPQ – Conselho de Desenvolvimento Científico e Tecnológico / Bolsa de Produtividade em Pesquisa, a quem agradecemos.

    Seu desenvolvimento deu-se em seminários no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a cujos alunos muito somos gratos por sua atenção e interesse. Agradeço aos membros dos Grupos de Pesquisa Violência e Cidadania (CNPq/UFRGS) e Grupo de Trabalho Violência, Segurança e Cidadania, do CLACSO – Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, os quais sempre proporcionaram um fecundo debate intelectual.

    Ao longo desses anos, apresentamos e discutimos o projeto em múltiplos ambientes acadêmicos: Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Programa de Pós-graduação em Segurança Cidadã, da UFRGS; CEA – Colégio de Estudos Avançados da Universidade Federal do Ceará; IEATs – Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da Universidade Federal de Minas Gerais; Congressos da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), da Associação Latino-americana de Sociologia (ALAS) e da Associação Internacional de Sociologia (ISA) – e em Universidades de diversos países: Universidad de Buenos Aires; Universidad de Costa Rica; Universidad de Guatemala; Universidad de Guadalajara, México; e Université de Montreal, Canadá.

    As longas conversas com o saudoso Octavio Ianni estiveram na origem dessa aventura sociológica. Muitos foram nossos interlocutores nesse período: Enio Passiani, Maira Baumgarten, Letícia Schabbach, Lígia Madeira, André Marenco, Ivaldo Gehlen, Alex Niche Teixeira, Caleb Faria Alves, Carlos Machado, Elisabeth Mazeron Machado, Nelson Fujimoto e Vladimir Araújo, de Porto Alegre; César Barreira, Maria Glaucíria Mota Brasil, Maurício Russo, Leonardo Sá, do Ceará; Wilson Barp, do Pará; Maria Stela Grossi Porto, de Brasília; Michel Misse e César Caldeira, do Rio de Janeiro; Sérgio Adorno, Renato Sérgio de Lima, Renato Ortiz, Paulo Menezes e Ana Lúcia Teixeira, de São Paulo; Paulo Henrique Martins, do Recife; Juan Pegoraro, Adrían Scribano, Gabriel Kessler e Sergio Tonkonoff, da Argentina; Nília Viscardi, do Uruguai; Joaquim Michael, da Alemanha; René Levy, da França; Roberto Briceño León, da Venezuela; Jaime Preciado, Arturo Alvarado e José Alfredo Zavaleta, do México; Julio Mejía Navarrete e Jaime Ríos Burga, do Peru; Pablo Emilio Angarita Cañas e Jaime Zuluaga Nieto, da Colombia; Nora Garita, da Costa Rica; Eduardo Velásquez, da Guatemala; Boaventura de Sousa Santos, de Portugal; e Arnaud Salles, do Québec. De todos recebemos compreensão, paciência e estímulo. Agradeço a cuidadosa e competente revisão realizada por Enio Passiani.

    Minha filha Selena Comerlato Tavares foi uma primeira leitora, crítica e sagaz. Minha irmã Irondi Tavares Marcondes de Castro sempre foi de carinhoso acompanhamento.

    Enfim, muito tenho aprendido no ILEA – Instituto Latino-americano de Estudos Avançados da UFRGS, um espaço de criatividade e ousadia intelectual.

    Porto Alegre, julho de 2020.

    José Vicente Tavares-dos-Santos

    A Rosauro, meu pai, que me deu o primeiro livro.

    SUMÁRIO

    Introdução – Figurações da violência no romance

    A perspectiva da sociologia do romance

    A sociologia do romance

    A opacidade do poder e a violência das organizações: Kafka

    A tradição intelectual de análise do romance policial

    O romance policial

    A violência do Estado: os romances dos ditadores

    A violência na literatura da América Latina I

    Colômbia

    Fernando Vallejo: o amor homossexual e a morte

    Gabriel García Márquez, Noticia de un secuestro: o narcotráfico, o poder e a violência.

    Jorge Franco: de Rosario Tijeras a Isolda, a sicária e o amor impossível

    Laura Restrepo: o delírio e o feminicídio, violências contemporâneas

    A violência na literatura da América Latina II

    México: Carlos Fuentes

    México: Élmer Mendoza

    Argentina: Ernesto Mallo

    O romance policial no Brasil

    A violência na literatura brasileira: Rubem Fonseca

    A violência na literatura brasileira: Luiz Alfredo Garcia-Roza

    Morfologia de um gênero literário na modernidade tardia: o romance da violência

    Conclusão

    Referências

    Romances mencionados

    INTRODUÇÃO

    Figurações da violência no romance

    Assistimos a profundas transformações nas sociedades contemporâneas, configuradas por novas formas do social, novos agentes e diferenciadas representações sociais. Dentre as novas questões sociais complexas e mundiais, configura-se a violência difusa. Tal fenômeno social pode ser denominado de microfísica da violência e compreende os processos de conflitualidade social, contraditórios e tensos, que vêm a salientar a necessidade da discussão política sobre o controle social.

    Vivenciamos a sociedade normalizadora e regulatória, efeito de tecnologias de poder centradas na vida, de um Estado orientado para o controle social penal, com um processo de criminalização dos pequenos ilegalismos e dos movimentos sociais. Tal processo de dissolução das estruturas do bem-estar social resultou numa ruptura dos controles sociais, formais e informais, substituídos na esfera da socialização pelos meios de comunicação e pela literatura e cultura popular.

    O estudo das representações sociais, e em particular da produção literária, adquire enorme relevância se recordamos que o nascimento das ciências humanas ocorreu no momento em que se agregou à positividade do produzir, do viver e do falar, a representação da positividade:

    ... a ‘região sociológica’ teria encontrado seu lugar lá onde o indivíduo que trabalha produz e consome se confere a representação da sociedade em que se exerce essa atividade, dos grupos e dos indivíduos entre os quais ela se reparte, dos imperativos, das sanções, dos ritos, das festas e das crenças mediante os quais ela é sustentada ou regulada; enfim naquela região onde reinam as leis e as formas de uma linguagem, mas onde, entretanto, elas permanecem à margem de si mesmas, permitindo ao homem fazer aí passar o jogo de suas representações, lá nascem o estudo das literaturas e dos mitos (Foucault, 2007, p. 491-492).

    Este livro pretende analisar o romance da violência na modernidade tardia, desenvolvendo um estudo das teorias das representações coletivas mediante a análise do imaginário da violência e tomando como referência romances na América Latina contemporânea.

    Por um lado, serão estudadas as diversas teorias sobre a representação, a configuração da sociologia do romance e a novidade que a obra de Kafka trouxe à análise do poder e da finitude. Por outro, as características culturais da modernidade tardia serão evidenciadas. Em terceiro lugar, será analisada uma série de romances acerca da violência, desde as novelas sobre os ditadores até os romances da violência, publicados desde os anos de 1990 na América Latina.

    Nosso objeto específico consiste nas figurações sobre a violência na modernidade, com base em uma sociologia do romance policial e do romance da violência. Trabalhamos com a hipótese de um novo gênero literário que apresenta uma morfologia específica, ainda que partindo dos elementos do romance policial, desde a novela do enigma ao roman noir e ao polar dos anos de 1960. Na trama das narrativas está incluído o mapa cognitivo da microfísica da violência.

    Na sociologia clássica, Émile Durkheim discutiu o papel da consciência coletiva sobre a sociedade e sobre o Estado. Essa consciência é constituída pelos valores comuns à média dos membros da sociedade que determinam modos de agir e pensar. Durkheim aponta o crime como uma ruptura em um vínculo de solidariedade estabelecido: é crime tudo o que fere a consciência coletiva, o que será codificado no código penal. O conceito de representações coletivas está em Durkheim:

    O conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem sua vida própria; podemos denominá-lo a consciência coletiva ou comum (Durkheim,1967, p. 46).

    A punição, como prerrogativa do Estado, está em sintonia com as suas próprias funções: combater as desigualdades, impedir o retorno da anomia e manter a justiça. Podemos supor que crime e punição constituem dois lados de um mesmo princípio determinado pela consciência coletiva, em que o crime representa o conflito, e a sanção (a punição) restitui a ordem. Daí surge a diferença entre o crime e a violência, pois esta é sancionada pela consciência coletiva.

    Partindo-se do pressuposto de que a violência é o discurso da recusa e que nasce da palavra e do gesto emparedados, é necessário que se compreendam as mensagens que os atos de violência contêm. A violência é uma recusa da palavra, é a negação do outro como ator social, razão pela qual é necessário entender as mensagens implícitas nos atos de violência.

    Na América Latina, as tecnologias sociais em torno da violência, ou da segurança, foram deixadas nas mãos dos policiais, os governos não demonstrando interesse em se imiscuir nesses assuntos. Desde que as forças policiais mantivessem a separação entre os homens do bem e os homens do mal, poderiam reger autonomamente suas organizações, elaborar suas próprias doutrinas, administrar seu ensino e definir as suas modalidades de trabalho policial, incluindo o recurso à violência, legal e legítima, atributo que lhe foi concedido pelo Estado Moderno. Porém, se necessário, havia uma leniência quanto ao exercício da violência ilegal e ilegítima, cunhando uma brutalidade policial, em geral social e etnicamente seletiva.

    Diante desse cenário, fica clara a necessidade de desnaturalizarmos a violência sob pena de, em não o fazendo, acabarmos por banalizá-la a tal ponto que nada mais tocará nossa sensibilidade, tornando-nos cada vez mais duros com o outro, menos solidários e fraternos. Ou acostumados à violência como norma, aceitando este outro tipo de poder da norma, a violência difusa:

    O ‘difuso’ relaciona-se à possibilidade de que todos podem ser vítimas de práticas classificadas como violentas presentes em diversificadas situações sociais. (...). Outro elemento dessa possível violência difusa é o desaparecimento de lugares seguros, com proteção. Tais colocações não negam a existência de ‘vítimas preferenciais’ da violência, que vivenciam situações de maior grau de vulnerabilidade (Barreira, 2008, p. 9).

    Surgem, por consequência, várias perguntas: como está se desenvolvendo na América Latina o debate no campo do controle social: da intolerância punitiva à Segurança Cidadã? Quais os termos políticos e simbólicos em jogo? Quais os agentes e forças sociais envolvidos? Como ocorre a figuração da violência nas sociedades latino-americanas contemporâneas?

    As relações entre romance e sociedade, o romance policial e o poder, expõem várias dimensões da modernidade: são figurações da sociedade moderna. Trata-se de analisar as figurações sobre a violência na modernidade, com base em uma sociologia do romance policial e, depois, do romance da violência.

    Em romances publicados na Era da Mundialização das Conflitualidades, a novidade no eixo da trama é a presença da violência mediando as relações sociais. Ou seja, está se configurando outra forma do gênero, distinta do romance realista e do romance policial, a qual poderia ser denominada de romance da violência. Necessitamos uma explicação sociológica crítica desta complexidade cultural, em termos de uma história cultural do social como proposta por Christophe Charles: Uma das principais funções da literatura (...) é fazer com que, por intermédio dos faits divers, das canções e dos romances folhetins (...), a população se mantenha na ordem social global e na necessidade de a ela se conformar (Charles, 2018, p. 178). Nesse ponto, há matéria para invenção e construção de identidades nacionais (Chaves, 1994; Bernd, 2001).

    Estamos, deste modo, diante da possibilidade de analisar a infinita diversidade dos objetos culturais, como a literatura, o teatro, o jazz ou o romance policial. Uma história social do jazz foi escrita por Hobsbawm:

    Quis rastrear suas raízes sociais e históricas, analisar a sua estrutura econômica, seu corpo de músicos, a natureza de seu público, e as razões para seu extraordinário apelo, tanto nos EUA quanto em outros lugares (Hobsbawm, 2014, p. 12).

    O historiador inglês assinalava que os escravos negros tinham trazido elementos musicais que foram se mesclando com as tradições europeias no Caribe, e identificou cinco características básicas do jazz: 1. o jazz tem certas peculiaridades musicais derivadas principalmente do uso de escalas originárias da África Ocidental, a escala blue usada na melodia; 2. ele se apoia em outro elemento africano, o ritmo; 3. o jazz utiliza instrumentos próprios com grande originalidade; 4. desenvolveu certas formas musicais específicas, como os blues e as baladas; 5. Enfim, o jazz é uma música de executantes, subordinada à individualidade dos músicos, tendo a improvisação individual e coletiva uma importância grande (cf. Hobsbawm, 2014, p. 48 a 55). Finalmente, Hobsbawm acentuava o caráter de protesto e de rebeldia presente no jazz, originário da música dos povos e das classes oprimidas buscando a felicidade (Hobsbawm, 2014, p. 342).

    Tempos depois, uma história social do romance policial foi escrita por Ernest Mandel, assinalando que o verdadeiro tema dos primeiros romances policiais não é o crime ou o assassinato, mas o enigma (Mandel, 1988, p. 37). Os temas recorrentes sempre foram o dinheiro, o poder, o sexo, a diferenciação social e a distinção. O problema era analítico: o herói do romance policial clássico (...) confronta argúcia analítica com astúcia criminal. (...). A lógica formal reinava acima de tudo (Mandel, 1988, p. 51). Pôde, então, concluir:

    A desordem reconduzida à ordem e esta voltando à desordem; a irracionalidade perturbando a racionalidade; a racionalidade restaurada após as sublevações irracionais: aí está o cerne da ideologia do romance policial (Mandel, 1988, p. 76).

    Também Michel Foucault recordava que o romance policial no século XIX tinha por função mostrar que o delinquente pertence a um mundo inteiramente outro, sem relação com a existência cotidiana e familiar (Foucault, 1975, p. 292). Esse movimento de estranhamento do criminoso ocorreu em um momento de substituição dos ilegalismos no qual houve a criminalização dos ilegalismos populares e aconteceu a transformação dos bandidos sociais em bandidos, ainda que dourados, como Arsène Lupin.

    O romance policial aparece em Poe, nos Estados Unidos. Poe teve sua importância literária recuperada posteriormente por Baudelaire e Borges. Na Inglaterra, Conan Doyle desenvolve a narrativa policial, situando o crime, o personagem do detetive privado e a trama da investigação. Os temas recorrentes são o dinheiro, o poder, o sexo, a diferenciação social e a distinção social (Mandel, 1988). O surgimento deste tipo de narração no século XIX tem sido associado à explosão urbana, ao aumento do crime, à ascensão da ideologia do individualismo burguês e à constituição do público leitor. Inicia como uma literatura de folhetim, publicada regularmente e ampliando seu público leitor, cuja expectativa tinha que contentar (Ortiz, 1991).

    Os elementos da trama e da narrativa são os seguintes: sempre há um assassinato inicial, um investigador solitário perseguindo os indícios; e o espaço é a casa senhorial. Há um mistério inicial, com várias pistas. A narrativa é dominada pela investigação, e seu desenvolvimento se dá pelo domínio do método e das técnicas das ciências naturais. O desfecho da trama é a resolução do crime ou do enigma e a identificação do culpado: o leitor permanece em suspense, acompanhando as pistas até o surpreendente final.

    A compreensão da figuração dos meios de comunicação sobre o crime e a violência no período que recobre os últimos anos do século XX e as primeiras décadas do século XXI passa em grande medida pela análise do cinema e das artes visuais (Menezes, 2001). Nesse cenário, convergem duas grandes tendências contemporâneas do campo da comunicação: a primeira diz respeito à mistura de informação com entretenimento, o que se evidencia na dramatização das histórias de crimes reais; e a segunda tendência consiste em propiciar à audiência uma forma ampliada de interação com a representação da narrativa romanesca (Teixeira, 2009).

    Compartilhamos uma indagação cada vez mais presente nas ciências sociais acerca da explicação da violência, tal como a formula Tonkonoff:

    ¿Puede el lenguaje de la ciencia dar cuenta del fenómeno, tan fascinante como atemorizante, de la violencia? ¿Existen otros lenguajes que hagan posible una aproximación cualitativamente distinta? ¿Cómo nombrar lo completamente otro, lo excluido radicalmente del orden cultural? ¿Puede el lenguaje artístico, en sus múltiples y diversas variantes, aportar herramientas heurísticas que las teorías sociales tradicionales tenderían a desconocer? (Tonkonoff , 2014, p. 10).

    O eixo do romance do enigma seria a presença da violência nas relações sociais e nas formas de dominação. Todavia, surgem novas questões sociais mundiais. Como explicar várias dimensões da sociedade na Era da Mundialização das Conflitualidades, iniciada em 1991? Como seria a expressão romanesca do medo líquido ou da violência banalizada na vertigem da modernidade em crise? (Bauman, 2006; Sousa Santos, 2006; Young, 2007; Barreira, 2008).

    O conteúdo do romance, desde o realismo novecentista, foi composto por um mosaico social com alcance histórico e uma minúcia da vida e das paixões cotidianas. O romance realiza um modo de reconstrução social da realidade, marcado pela polifonia cultural e pelo multilinguismo, vindo a expressar literariamente o mundo social. Borges e Bioy Casares acentuavam o significado do gênero policial:

    Ambos géneros, el puramente policial y el fantástico, exigen una historia coherente, es decir un principio, un medio y un fin. Nuestro siglo propende a la romántica veneración del desorden, de lo elemental y de lo caótico. Sin saberlo y sin proponérselo, no pocos narradores de estos géneros han mantenido vivo un ideal de orden, una disciplina de índole clásica (Borges y Bioy Casares, 1997, p. 7-8).

    A literatura seria um conjunto de obras, segundo Antonio Candido: um sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade (Candido, 2006a, p. 18). Para compreender e reconstruir o sistema literário, o autor sugere que a análise literária deve combinar fatores internos e externos das obras e deve:

    averiguar como a realidade social se transforma em componente de uma estrutura literária, a ponto de poder ser estudada em si mesma; e como só o conhecimento desta estrutura permite compreender a função que a obra exerce (Candido, 2006b, p. 9).

    Em outras palavras, deve-se estudar o autor, a obra e o público. A literatura propriamente dita consiste, está claro, em um sistema de obras ligadas por denominadores comuns (Candido, 2006a, p. 25). Por um lado, temos elementos internos, individuais, que concorrem para articular as obras: língua, temas e imagens partilhadas. Por outro, temos elementos externos, sociais, decisivos para esta articulação: 1) conjunto de produtores conscientes, em vários graus, de seu papel; 2) conjunto de receptores, formando um público; 3) um mecanismo transmissor [de modo geral, uma linguagem traduzida em estilos. (Candido, 2006a, p. 25)]; 4) enfim, o texto literário se constitui como sistema realizando-se em uma articulação no tempo e no espaço.

    Entendo aqui por sistema a articulação dos elementos que constituem a atividade literária regular: obras produzidas por autores formando um conjunto virtual, e veículos que permitem o seu relacionamento, definindo uma vida literária: públicos (...); tradição (Candido, 2007, p. 16).

    Procura-se identificar um tema e a coerência das produções literárias que a ele se vinculam, embora nem sempre fielmente:

    Por coerência, entende-se aqui a integração orgânica dos diferentes elementos e fatores (meio, vida, ideias, temas, imagens, etc.), formando uma diretriz, um tom, um conjunto, cuja descoberta explica a obra como fórmula, obtida pela elaboração do escritor (Candido, 2006a, p. 39).

    A presença da violência, do sofrimento e da morte no conjunto de livros a serem analisados deve nos levar a esclarecer o sentido da tragédia na modernidade tardia. Nesse sentido, Terry Eagleton desenvolveu sua análise seguindo os temas fundamentais da cultura ocidental: a crítica da teoria, a tragédia grega, os valores da agonia e da ruína, os heróis e os demônios, liberdade e justiça, tragédia e destino: Estou interessado neste livro em como algumas notáveis obras trágicas salientam o que é perecível, restrito, frágil e lento sobre nós, como uma advertência à arrogância culturalista e historicista (Eagleton, 2003, p. XVI).

    Reconhecendo que as tragédias sempre foram narrativas de um acontecimento específico, Eagleton percebe traços universais nas diversas obras de várias épocas, tal como o sofrimento. O autor critica o foco da visão trágica no herói, levando a perceber a dimensão trágica na vida cotidiana, como a do caixeiro-viajante em Henry Miller, por exemplo. Assinala que as categorias de liberdade, destino e justiça e as de piedade, medo e prazer não são tipos antinômicos, mas convivem na obra trágica, sendo impossível isolar um ou outro como mais definitivo no relato. Conclui afirmando:

    Tragédia, deste tipo, é sublime em ambos sentidos, humanista e psicanalista – prazerosa, majestática, respeitosa, sugestiva de capacidades infinitas e imensuráveis valores, mas também punitiva, intimidante, reduzindo-nos selvagemente a nossa própria medida (Eagleton, 2003, p. 176).

    Afirma que há uma estreita relação entre tragédia e romance, e expõe a íntima ligação entre a modernidade e a tragédia, pois muitas vezes a ilusão de uma epopeia moderna serve à opacidade de um sofrimento humano, trágico, cada vez maior e em maiores espaços. A relação entre modernidade e tragédia estabelece-se pelos demônios dos últimos dois séculos, tão encantados ou escondidos pela cultura contemporânea: Se a tragédia emana da contradição inerente a uma situação (...), então a modernidade é trágica exatamente neste sentido clássico (Eagleton, 2003, p. 241).

    Lembrando Édipo, o crítico literário conclui que a convergência entre valores e sofrimento trágico chega à destruição e à transformação, vida e morte. Em uma palavra, busca um ato de discurso que rompa a trágica e silenciosa doce violência da modernidade, quiçá da tardia modernidade.

    Para realizar este livro, vamos estudar os autores e as obras. Essas serão percebidas mediante um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, no caso, a presença da violência. Por um lado, vamos analisar os elementos internos nos romances: personagens, temas

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