Singularidades da formação e do desenvolvimento profissional docente: contextos emergentes na educação
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Singularidades da formação e do desenvolvimento profissional docente - Ana Carla Hollweg Powaczuk
1
Contextos emergentes: formação, desenvolvimento profissional, avaliação e performatividade na Educação
Sérgio Roberto Kieling Franco
O fazer da Educação é fortemente marcado pelo discurso. Neste sentido, as próprias realizações no campo da Educação são vivenciadas e julgadas pelo discurso construído. Seja o discurso oficial, seja o discurso produzido pelos diferentes atores, e aqui nos interessa o discurso produzido pela Academia. Desse modo, a pergunta que norteia a reflexão presente neste capítulo é a seguinte: que mensagens são transmitidas (formal ou tacitamente) no processo de Educação Superior no Brasil? Em outras palavras, busca-se compreender o que se tem comunicado com as práticas da Educação Superior no Brasil e com o discurso acerca dessas práticas (crítico ou não). Afinal, o discurso não está somente no falado ou escrito. À medida que se desenvolve práticas diferentes, à medida que se implementa políticas, também se afirma um discurso. A análise feita aqui nasce do meu trabalho de pesquisa, mas é fortemente marcada pela minha experiência na gestão da Educação Superior, seja em nível institucional, seja em órgãos nacionais e internacionais. Serão enfocados três temas: formação, desenvolvimento profissional e avaliação.
Parto aqui da premissa de que o discurso assumido pelo campo da Educação (BOURDIEU, 1983) normalmente se constitui de modo dicotômico. Isto é, facilmente separamos a realidade em, pelo menos, dois elementos, o que faz com que nem sempre distingamos com clareza o que está sendo dito. Essa dicotomia, essa tentação em simplificar os fatos e a realidade como um todo nos torna reféns das nossas próprias interpretações.
Formação
Tratando primeiramente do tema da formação, é preciso afirmar que existem tensões entre visões com maior ou menor compromisso com a coletividade. Essa dicotomia tem a ver com as próprias palavras e como elas aparecem na legislação e também nas práticas e nos discursos.
A primeira dicotomia que podemos apontar é relativa aos termos ensino
e educação
. Não são poucas as vezes em que essa discussão vem à tona, devido aos significados que atribuímos às duas palavras. Afinal, é preciso perguntar-se o quanto elas têm em comum e o quanto carregam de diferença.
A discussão contemporânea tem apontado para a compreensão de que o termo educação
é mais amplo do que o termo ensino
. Este estaria ligado à ideia de transmissão de conhecimentos, enquanto aquela daria uma conotação abrangente, que englobaria, além da transmissão, o processo de aprendizagem e de desenvolvimento integral do ser humano. Também é preciso ter em conta a construção histórica do significado das palavras. O alerta que se impõe aqui é que, muitas vezes, se utiliza a palavra ensino
no sentido integral da Educação para referir-se à Educação Formal, como é o caso da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), que, inclusive, usa o termo – historicamente condicionado – instrução
[ 1 ]; e também vê-se o contrário, como em recente Parecer do Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 2020b), no qual o objetivo da Educação é reduzida ao cumprimento dos objetivos de aprendizagem.
Normalmente, quando nos referimos ao ensino/instrução, entendemos que são elementos que conduzem ao processo formativo. O conceito de Educação ultrapassa a própria transformação do ensino ou instrução em processo formativo, pois envolve todas as questões humanas (competências, habilidades, valores, sentimentos, convicções etc.). Assim, o simples fato de se escolher este ou aquele termo não é suficiente para se dizer o que está por trás dessa escolha. Muitas vezes a opção se dá por um costume ou devido a condicionantes. Necessariamente, é preciso analisar o contexto em que aparece o termo.
Uma boa chave para fazer essa interpretação e discernir as dicotomias presentes nos discursos e nas práticas é o conceito de autonomia. Considerando-se que o processo educacional visa ao pleno desenvolvimento da pessoa humana, ele deve necessariamente levar a um grau de autonomia, de constituição do sujeito enquanto indivíduo, ainda que condicionado por suas circunstâncias (o que foi magistralmente apontado por Ortega y Gasset), mas não determinado por elas (como tem sido usado o pensamento de Skinner com vistas a justificar formas de escravização simbólica). Portanto, considero que, se analisarmos o espaço concedido à construção da autonomia, poderemos ver se por trás dos termos ensino
e educação
está uma ideia de desenvolvimento pleno do sujeito ou a adaptação dele a um contexto social que busca se perpetuar.
As Fábricas de Planos de Ensino são um bom exemplo de práticas na Educação Superior que, aproveitando a dicotomia presente no discurso educativo, ameaçam a formação. Os grandes conglomerados educacionais têm feito isso em abundância. Uma central que produz todos os planos de ensino de todas as disciplinas das instituições que fazem parte desse conglomerado.[ 2 ] Os professores são convocados a executar planos de ensino produzidos previamente. Estas fábricas
são, inclusive, apresentadas pelos dirigentes dessas instituições como uma grande realização. É importante assinalar que se trata de uma prática de alienação do professor do seu trabalho de ensinar, que fica transformado em um mero executor de uma tarefa de instrução. É, inclusive, questionável se não se trata de uma afronta ao princípio da autonomia didática. A consequência disso é, inexoravelmente, a desvalorização do professor. As demissões de professores qualificados é apenas uma das faces dessa medida. Uma vez que a autonomia didática é ameaçada, consequentemente, a formação não vai à direção da autonomia, pois o modelo que se mostra ao estudante é que sua atitude deve ser de mera repetição do que é apresentado de uma matriz. Neste sentido, enfraquece-se a ideia de desenvolvimento nacional, de saídas sociais e econômicas a partir de elementos locais. Assim, pois, ainda que seja apresentada como um projeto educacional, fica clara a intenção não formativa presente nesse tipo de prática.
O movimento da Escola Sem Partido é outra dessas ameaças. Se não é feito o controle do que se ensina pelo plano de ensino pré-fabricado, cria-se formas de controle do que é feito em sala de aula. Assim, há incentivo para que os alunos gravem as aulas, não para estudarem posteriormente, nem para aprofundarem o debate, mas para transformar estas gravações em instrumentos de perseguição. Novamente, a autonomia docente fica ameaçada. Aos alunos é transmitida a mensagem de que não se pode pensar livremente, não se pode buscar interpretações alternativas, pois a ameaça ao diferente ao não hegemônico se concretiza e a submissão torna-se o valor supremo.
Outra ameaça é a terceirização da gestão administrativa e acadêmica, que é o que aparece no projeto Future-se (BRASIL, 2020a). Este projeto é apresentado como a solução para um problema que, realmente, é complicado no Brasil, ou seja, as formas como as IES públicas podem gerir os recursos não auferidos via Tesouro Nacional, mas por arrecadação direta. No entanto, isso é só um detalhe, porque o que há por trás é a proposição de que a IES abra mão da gestão, inclusive acadêmica, passando essa gestão a elementos ou grupos alheios ao dia a dia da universidade, inclusive possibilitando a contratação de fábricas de planos de ensino.
Esses são apenas três exemplos, entre outros, de ameaças à autonomia na formação. No entanto, pode-se afirmar que existe uma resistência dentro das IES públicas e privadas (estas com ou sem fins lucrativos): algo que chamaríamos (parafraseando Nietzsche) vontade de formação. Apesar de tantas ameaças, o processo educacional continua acontecendo. Apesar dos movimentos contrários, ainda se encontra processos formativos plenos.
Porém, no próprio discurso da resistência também há dicotomias. Algo central nas políticas de Educação Superior, principalmente de política universitária, é a defesa da formação de uma elite
intelectual e cultural. Sim. A Educação Superior presta-se para a formação de uma elite, mas, quando não se define claramente que elite é essa, facilmente se cai no entendimento de uma identidade entre elite econômica e elite intelectual. Há espaço para a formação de elites. Espera-se que aqueles que passaram pela universidade tornem-se uma elite, um grupo que possa vir a ser a liderança intelectual e cultural. Uma espécie de vanguarda. Ou seja, estamos novamente diante de discursos dicotômicos. Nem sempre a defesa da formação universitária como grau superior de formação se descola da visão segregacionista, e até escravocrata, muito própria do modo de funcionamento social brasileiro.
Desenvolvimento profissional
O segundo ponto a tratar tem muito a ver com a formação. Afinal, o desenvolvimento profissional está intimamente relacionado com o fato de que a formação (Educação) superior (universitária) no Brasil tem a cicatriz
, ou talvez a malformação, do modelo napoleônico nas nossas universidades (FRANCO, 2016).
Praticamente não há curso superior no Brasil que não esteja associado a uma profissão. Esta marca tão forte da formação de profissões não estava tão clara desde o início. Quando o MEC, há alguns anos, resolveu definir que os cursos superiores, no Brasil são ou bacharelados ou licenciaturas, de certo modo, acabou enfatizando isso.
Historicamente, os bacharelados eram cursos de formação científica, não voltados a alguma profissão. Inclusive, nas leis que criam várias profissões, há a distinção entre cursos de licenciatura, para formar professores, de formação profissional e bacharelados, sem levar alguma formação profissional. A partir dos anos 1970, os bacharelados, com raras exceções, transformaram-se em cursos de formação profissional. Um tipo de profissão diferente das licenciaturas. Com isso, hoje, praticamente todos os cursos universitários são voltados a uma profissão. Até mesmo, quando se propõe um curso novo em uma universidade, a primeira pergunta que se costuma fazer é: para que profissão esse curso vai formar?
Isso gera, também, uma disputa entre os conselhos profissionais e os órgãos educacionais a respeito da definição de quem deve se ocupar da relação entre a formação e o desenvolvimento profissional
A formação universitária deveria levar à reflexão sobre o mundo, sobre a vida, sobre o modo de lidar com o mundo. Por outro lado, a formação profissional é voltada à prática. Quando se forma um professor, em um curso de licenciatura, ele tem que saber como dar uma aula. Todo curso superior que tem uma formação profissional como meta precisa considerar esse aspecto prático, mas, carregando consigo o qualificativo de superior
, é necessário apresentar também a reflexão e não somente o aspecto prático (instrumental). A reflexão, própria da formação universitária, é uma das alavancas para o desenvolvimento profissional.
A universidade medieval dedicava-se aos cursos de Filosofia e Teologia, que não tinham uma conotação prática. Só com a introdução da Medicina é que a formação profissional entrou na universidade, cerca de um século e meio depois. Mesmo assim, é necessário apontar que, no início, o médico era quem entendia do corpo humano e das doenças. Não era o prático. O prático, normalmente, era o cirurgião barbeiro. Também, por muito tempo (até o início do século XX), houve a distinção entre os médicos práticos, formados, especialmente nas guerras e os médicos com formação