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Sujeitos, normas e aspectos históricos na Educação Profissional da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica
Sujeitos, normas e aspectos históricos na Educação Profissional da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica
Sujeitos, normas e aspectos históricos na Educação Profissional da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica
E-book446 páginas5 horas

Sujeitos, normas e aspectos históricos na Educação Profissional da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica

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Sobre este e-book

Esta coletânea de capítulos do livro em apreço, decorre de pesquisas que contemplaram aspectos históricos e normativos, referentes à capacitação profissional de nível técnico, no âmbito da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica de Minas Gerais. Ressalta-se que foi dado destaque ao trabalho docente por um lado e, por outro, às vivências e aprendizagens dos alunos, no âmbito das instituições investigadas. Os capítulos desta coletânea objetivam contemplar, sobretudo, os aspectos históricos, problematizando o enquadramento normativo que originou a ocorrência de núcleos, com um nível de tensionamento contínuo, desde a instalação das primeiras instituições da mencionada Rede.
O foco desta coletânea contempla as normas, disposições, emanadas das políticas públicas, além das ações e práticas dos sujeitos, consubstanciados, notadamente, nos professores e alunos. E, nesta perspectiva, se destacam as ações realizadas pelos principais sujeitos no interior dos estabelecimentos escolares, pelas corporações que resistem cotidianamente, ao não atendimento do direito à educação, disposto na Constituição Federal de 1988.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de nov. de 2022
ISBN9786588331118
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    Sujeitos, normas e aspectos históricos na Educação Profissional da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica - Daisy Moreira Cunha

    A Reforma Capanema do Ensino Industrial e as disputas em torno de projetos para o Brasil

    Cristiane de Castro e Almeida

    Daisy Moreira Cunha

    INTRODUÇÃO

    Este texto é resultado de pesquisa preliminar para o trabalho de doutoramento recém iniciado junto à linha Política, Trabalho e Formação Humana, do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação, da Universidade Federal de Minas Gerais, configurando a sistematização de notas que buscam apontar, tanto a narrativa já constituída sobre um momento decisivo da estruturação da educação profissional industrial no Brasil, quanto as ausências, os silêncios e as lacunas nela existentes.

    É durante o Estado Novo no Brasil, momento marcado por uma crise de hegemonia no bloco de poder das classes dominantes, da estruturação de um projeto de desenvolvimento industrial para o país e da constituição de um corporativismo autoritário bipartite, que excluía a participação dos trabalhadores dos processos governamentais de formulação de políticas, que se constitui o sistema de educação profissional industrial, marcado pela criação do Serviço Nacional de Aprendizagem do Industriários e das Escolas Técnicas Federais.

    Nosso objetivo na pesquisa é identificar, no processo de formulação da Reforma Capanema do Ensino Industrial, os projetos de formação profissional em disputa e seu vínculo com projetos políticos das diferentes frações de classe envolvidas no processo. Para isso, pretendemos analisar e diferenciar as propostas de formação técnica profissional apresentadas no processo de (re)formulação do ensino técnico industrial; identificar os sujeitos envolvidos na formulação das diferentes propostas e seus vínculos com diferentes categorias sociais e frações das classes dominantes e analisar a vinculação das diferentes propostas de formação profissional a diferentes projetos de desenvolvimento para o Brasil.

    O desenvolvimento da pesquisa baseia-se na produção bibliográfica e no levantamento e processamento documental. O levantamento bibliográfico inclui tanto a produção monográfica sobre o tema da Educação Profissional, quanto sobre o contexto histórico estudado (BASTOS; FONSECA, 2014; CODATO, 2008; DINIZ, 1978; GOMES, 2000) e sobre os aspectos teóricos de disputas políticas no processo de modernização capitalista no Brasil (ALMEIDA, 1984; FARIAS, 2010; SAES, 1998, 2008, 2016). Também será incorporada a produção monográfica sobre os sujeitos que participaram de maneira direta das discussões e comissões constituídas em torno da organização da educação profissional industrial (ABREU, 2010; PEDROSA, 2014; PEDROSA, SANTOS, 2015).

    O levantamento documental procurou localizar o discurso dos diferentes sujeitos envolvidos no debate, a partir de uma perspectiva que levasse em conta quem fala, de onde fala, o que fala, para quem fala, a partir da contextualização do discurso (momento e função). Obviamente o silêncio, a ausência de falas, o ocultamento de sujeitos e temáticas, são tomados como um dado importante na configuração dos discursos.

    O material documental inclui tanto documentos legais e arquivísticos, quanto o material bibliográfico produzido pelos atores envolvidos no processo de construção das propostas de Educação Profissional Industrial, no contexto em tela. O acervo no qual localizamos a produção documental mais volumosa e significativa é o Arquivo Gustavo Capanema, fundo arquivístico localizado no CPDOC-FGV/RJ. Também serão trabalhados materiais como discursos e publicações referentes ao assunto, de autoria de sujeitos ligados ao processo. Outro conjunto importante de documentos a ser utilizado é constituído pelos artigos publicados na Revista IDORT, órgão de imprensa produzido por empresários, para empresários (ANTONACCI, 1993; BATISTA 2015).

    Como resultado também preliminar da pesquisa, já está elaborado um levantamento da legislação e dos eventos mais relevantes relacionados ao Ensino Profissional Industrial, que cobre o período de dezembro de 1906, com a criação do Ministério dos Negócios da Agricultura, Indústria e Comércio – que inclui entre suas atribuições os assuntos relativos ao ensino profissional – até maio de 1945, com a Realização, em Teresópolis-RJ, da I Conferência Nacional das Classes Produtoras, que produziu a Carta Econômica de Teresópolis.

    SITUANDO A QUESTÃO

    A formação profissional industrial sistemática desenvolve-se no Brasil a partir das demandas colocadas pelo processo de industrialização que se inicia no último quartel do século XIX, se intensifica a partir dos anos 1920 e se torna um projeto de Estado a partir da segunda metade da década de 30 do século XX.

    Antes disso,

    O desenvolvimento precário das forças produtivas do capitalismo no Brasil, até o fim do Império e começo da República, conjugado com relações de produção também pouco desenvolvidas, convivendo com a escravidão durante todo o período colonial e praticamente todo o Império, deixava aos agentes da política de formação para o trabalho poucas opções. Fez-se o que era possível fazer – e nem sempre da melhor maneira (CASTANHO, s.d., p. 09).

    O surgimento de grandes indústrias e a ampliação da maquinaria colocavam como questão a necessidade da formação da mão de obra e de operários especializados, num contexto marcado pelo analfabetismo de grande parte da classe trabalhadora.

    Como política pública de abrangência nacional, a primeira iniciativa foi a criação das Escolas de Aprendizes Artífices, pelo Decreto n. 7.566, de 23 de setembro de 1909, durante o governo do presidente Nilo Peçanha. Por esse decreto foram criadas 19 escolas profissionais de nível primário nas capitais dos estados do Brasil, com o objetivo de formar operários e contramestres, através do ensino prático e os conhecimentos técnicos necessários aos menores que pretendem aprender um ofício [...] (BRASIL, 1910). Ainda que destinadas aos desfavorecidos da fortuna e atendendo meninos entre 10 e 13 anos, essas escolas marcam a saída do ensino técnico profissional da esfera exclusiva do ensino privado (caridade) e religioso, já que são mantidas pela União.

    Essa mudança se mantém na Constituição de 1937, que em seu Artigo 129 afirma que:

    O ensino pré-vocacional e profissional destinado às classes menos favorecidas é, em matéria de educação, o primeiro dever do Estado. Cumpre-lhe dar execução a esse dever, fundando institutos desse tipo de ensino e subsidiando os de iniciativa dos Estados, dos Municípios e dos indivíduos ou associações particulares e profissionais (BRASIL, 1937).

    Entre 1909 e 1937, quando as Escolas de Aprendizes Artífices foram transformadas em Liceus Industriais, pela Lei nº 378, de 13 de janeiro, muitas foram as mudanças em relação à organização do ensino, idade dos estudantes e cursos oferecidos.

    Podemos dizer que o modelo de formação profissional vigente no Brasil até hoje tem por base a legislação promulgada em 1942-43, que ficou conhecida como Reforma Capanema. Tal reforma abarca o conjunto das Leis Orgânicas do Ensino que estruturou o ensino industrial, reformou o ensino comercial e trouxe mudanças no ensino secundário[1].

    Em janeiro de 1942, num intervalo de oito dias, o governo Vargas editou dois decretos que estruturaram o Ensino Profissional Industrial no Brasil. O primeiro, Decreto-lei nº 4.048, de 22 de janeiro, criou o Serviço Nacional de Aprendizagem dos Industriários – SENAI[2]. O segundo, Decreto-lei nº 4.073, de 30 de janeiro, definiu a Lei Orgânica do Ensino Industrial. A partir dessa data, vários outros decretos se seguiram de modo a regulamentar os anteriores.

    Os dois decretos, que acabaram tomando a forma de complementaridade, revelavam uma disputa entre dois projetos de formação profissional que vinha se estendendo, de maneira mais intensa, desde maio de 1939, quando foi publicado o Decreto-lei nº 1.238[3]. De um lado, empresários, técnicos e burocratas vinculados ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e de outro, técnicos, burocratas e o próprio Ministro da Educação e Saúde Pública.

    Os trabalhadores, sujeitos da formação profissional que se (re)estruturava, nunca foram envolvidos no processo de discussão. Pelo contrário, a literatura existente indica que a entrega dessa formação aos sindicatos dos trabalhadores foi usada pelo Presidente Vargas como ameaça para que os empresários aceitassem se responsabilizar, ainda que parcialmente, por ela.

    O desacordo sobre a concepção, a estrutura, a gestão e o financiamento da educação profissional industrial levaram à constituição de dois sistemas de formação, que poderiam ser e, em certa medida, são complementares, mas que também se sobrepõem. Mais do que isso, o SENAI acabou por se constituir na referência nacional de formação profissional industrial, em detrimento das Escolas Técnicas Federais em especial, mas também das Estaduais.

    Importante ter claro que a disputa se dava não sobre todos os níveis da educação profissional[4], mas apenas em relação à aprendizagem industrial, isto é, ao nível da capacitação dos jovens que trabalhavam ou dos filhos dos trabalhadores que, para terem direito à formação, deveriam ser contratados como aprendizes.

    Para além da dualidade histórica verificada na educação, em que o ensino superior e médio se destinava à formação da elite dirigente e aos trabalhadores eram oferecidos, quando o eram, o ensino primário e profissional, estabeleceu-se outra dualidade, agora sistêmica dentro do ensino profissional industrial: operando a partir da separação entre trabalho intelectual e trabalho manual, a formação técnica coube às Escolas Técnicas Federais (e estaduais) e a aprendizagem passou a ser desenvolvida pelo SENAI.

    Compreender as concepções que subjazem à disputa que se estabelece especialmente a partir de 1934[5] e qual o papel da educação profissional nos projetos de desenvolvimento para o Brasil defendidos pelas diferentes frações de classe, num momento de disputa de hegemonia, pode contribuir para pensarmos outros contextos, dada a permanência da discussão sobre a necessidade da formação de técnicos para garantir o desenvolvimento brasileiro e sobre os formatos em que essa formação deva se dar.

    AS EXPLICAÇÕES SOBRE O CONFLITO E A AUSÊNCIA DA EXPLICITAÇÃO DOS INTERESSES POLÍTICOS FUNDAMENTAIS

    Esse processo e o conflito nele contido já foram descritos pela literatura existente sobre o tema[6], mas a sua análise restringe-se, na maioria das vezes, às questões de gestão e funcionamento. Pouco se diz sobre a identificação dos grupos em disputa e sobre quais interesses, propostas e/ou projetos estariam na base desses conflitos.

    Em trabalho que pioneiramente[7] se debruçou sobre o Arquivo Gustavo Capanema[8], Schwartzman, Bomeny e Costa (2000, p. 247-268) apresentam sucintamente as origens e o histórico do ensino industrial no Brasil, para então descrever o que se passa nesse campo a partir de 1930. As disputas entre diferentes concepções sobre formação da mão de obra que, segundo os autores, emergem a partir da década de 30, são apresentadas como um intenso conflito de bastidores entre o Ministério da Educação e Saúde e o do Trabalho, Indústria e Comércio[9], que tinha por detrás, principalmente a Federação Nacional da Indústria [sic][10] e Federação das Indústrias de São Paulo (SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA, 2000, p. 248).

    Ao descrevê-lo, os autores o denominam de o conflito com os empresários (SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA, 2000, p. 250), indicando a existência de duas propostas. Uma, do Ministério da Educação, mais abrangente e com forte verticalização do sistema de ensino, e outra, mais ligada às necessidades práticas da indústria, que buscava generalizar a experiência paulista, desenvolvida especialmente na Escola Profissional Mecânica do Liceu de Artes e Ofícios e no Serviço de Ensino e Seleção Profissional da Estrada de Ferro Sorocabana. Essa última proposta encontrava apoio na Federação das Indústrias de São Paulo e era endossada pelo Ministério do Trabalho.

    O conflito entre os defensores das duas propostas é descrito e seu resultado, a criação de dois sistemas de formação profissional, apresentado. Ao fim e ao cabo, os autores indicam a derrota do projeto do Ministério da Educação e o sucesso alcançado pelo SENAI.

    Apesar do ineditismo dos documentos utilizados pelos autores naquele momento, a avaliação histórica do processo de constituição dos sistemas de formação profissional industrial, sem referência direta a documentos e outros tipos de dados, reforça a interpretação mainstream sobre o tema: aquela na qual o projeto consubstanciado no SENAI foi exitoso e aquele materializado nas Escolas Técnicas Federais fracassou.

    Perpassa o texto certa indicação de inadequação, de falta de realismo, do sistema de ensino industrial proposto pelo Ministério da Educação. Os autores afirmam que,

    [...] isolado no ministério, gastando sua energia para salvaguardar suas grandes concepções dos desgastes diários dos conflitos interministeriais – conflitos estes envolvendo interesses de grupos poderosos – Capanema termina por conseguir implantar, na aparência, seus grandes projetos – a Lei Orgânica, a importação de especialistas estrangeiros –, mas somente para deixar que a própria realidade lhe escape pelos dedos (SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA, 2000, p. 268).

    Parece ao leitor que as propostas defendidas por Capanema representavam seus próprios interesses. Capanema era Ministro, fazia parte da cúpula da burocracia estatal, era ligado ao grupo dos intelectuais mineiros que havia apoiado a tomada do poder em 1930 e era apoiado pelos militantes católicos. Além disso, os autores indicam que a defesa da perspectiva mais radical dentro do Ministério da Educação era feita por Rodolfo Fucks[11], que é apresentado como pessoa ligada profissionalmente ao ensino industrial e que teria participação ativa nas diversas comissões, grupos de trabalho e outras atividades de assessoria ao ministério para este assunto (SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA, 2000, p. 249). Capanema certamente não estava isolado.

    O SENAI é apresentado como a experiência mais eficiente de ensino profissional já havida no país (SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA, 2000, p. 260 e nenhum dado é apresentado para sustentar tal afirmação.

    A que estavam vinculadas as propostas defendidas por Capanema do ponto de vista pedagógico, político, ideológico, econômico etc.? Quais interesses ele desatendia? Quais eram os grupos poderosos a que se refere o texto? Quais os desgastes diários enfrentados pelo ministro? A que interesses atendia a proposta conflitante? O SENAI foi eficiente em que sentido? Para quem? A partir de quais critérios?

    Para Pronko (1998), os conflitos existentes quanto ao modelo mais adequado para a formação da mão de obra se dariam, inclusive entre setores da própria elite dirigente. Para ela, de um lado encontrava-se o Ministério da Educação[12], com uma proposta de criação de um sistema de ensino industrial predominantemente de nível pós-primário, financiado, controlado e supervisionado pelo Governo Federal. De outro, as corporações empresariais com o apoio do Ministério do Trabalho, propunham a criação de um sistema de aprendizagem industrial mais diretamente ligado à indústria e às suas necessidades práticas (PRONKO, 1998, p. 23).

    Entretanto, a autora não explicita que interesses representavam os setores em conflito e nem detalha as diferentes concepções de formação em confronto. Afirma apenas que o modelo proposto pelas corporações empresariais desenvolveria um modelo de formação menos institucionalizado e mais flexível, financiado e controlado pelos próprios empresários, com uma forte influência das teorias psicotécnicas de seleção profissional (PRONKO, 1998, p. 23).

    Luís Antônio Cunha (1980; 2000; 2005), também descreve esse processo da construção de um novo modelo de educação profissional industrial como conflituoso. Segundo o autor, haveria dois níveis de conflito: um entre empresários e governo e outro entre o Ministério do Trabalho e o da Educação.

    O conflito entre os empresários e o governo, no qual os empresários resistiam à implantação de um sistema de aprendizagem industrial que contasse com o financiamento da indústria, revelaria um fato sociopolítico importante (CUNHA, 2000, p. 100):

    mais do que em qualquer outro momento de nossa história, o suporte sociológico da consciência de uma classe social mostrou-se aí claramente situado fora dessa classe. Vimos como os industriais não só não foram os elementos ativos na criação da aprendizagem sistemática e remunerada, custeada por eles próprios, como, também, resistiram todo o tempo a sua instituição. Eles não conseguiam perceber como isso era do seu próprio interesse. Foi preciso que o Estado, utilizando um poder arbitrário, próprio do regime autoritário, os obrigasse a assumir a instituição em pauta (CUNHA, 2005, p. 35).

    Segundo o autor, os industriais teriam sido pressionados pelo Presidente da República Getúlio Vargas a assumirem a formação profissional dos aprendizes, inclusive seu custo financeiro, ameaçando atribuir sua gestão aos sindicatos dos trabalhadores (CUNHA, 2000, p. 100). Essa afirmação é feita a partir da leitura de obras de três agentes[13] do ensino industrial, Joaquim Faria Góes Filho (1981), Stênio Lopes (1982) e Celso Suckow da Fonseca (1961), e de entrevistas realizadas por Cunha (1980) com participantes dos acontecimentos.

    O acordo conseguido consistia na instituição da aprendizagem industrial remunerada, na criação de um órgão privado encarregado de ministrar cursos em nome de todas as empresas, mediante ato do governo, mas dirigido pelos próprios industriais, financiado com recursos recolhidos pelos empresários via institutos de aposentadorias e pensões (CUNHA, 2005, p. 33).

    A resistência dos empresários apresenta-se ora passiva, ora ativa. No caso em questão, quando da consulta do Ministério da Educação à CNI sobre o anteprojeto elaborado pela Divisão do Ensino Industrial, em 1938, os empresários optaram por uma resistência passiva, deixando de responder à consulta. Já, em 1940, os empresários passaram a uma postura de resistência ativa ao Decreto nº 6.029, ameaçando boicotar a medida pela recusa do recolhimento da sobretaxa e do emprego remunerado de aprendizes (CUNHA, 2005, p. 32).

    Apesar da resistência inicial, os industriais passaram para uma postura cooperativa com o governo, de tal maneira que a história da criação do SENAI é apresentada pela instituição como uma iniciativa empresarial.

    Passados alguns anos, os empresários assumiram como criação sua o sistema Senai. Constatada a funcionalidade da aprendizagem sistemática e da contribuição compulsória para os interesses dos industriais, eles reescreveram a história, de modo a colocar-se como os autores da ideia (CUNHA, 2005, p. 34).

    Quanto ao conflito entre governo e empresários, não foi apenas no aspecto relativo à aprendizagem profissional que o governo varguista agiu no sentido de garantir os interesses de longo prazo da burguesia industrial. Num contexto de crise de hegemonia no bloco no poder, foi o Estado que assumiu a defesa dos interesses da produção e reprodução capitalistas, não sendo outra, contudo, a função do Estado capitalista.

    Cabe perguntar se o modelo resultante era o único possível. Provavelmente, não. O próprio autor afirma que o que houve foi uma "composição forçada[14] de duas modalidades excludentes de formação profissional" (CUNHA, 2000, p. 96).

    Um traço marcante do SENAI, segundo Cunha, é seu caráter paraestatal[15]. Constituído a partir de decreto-lei, regulamentado por decreto aprovado pelo Ministério da Educação e vinculado formalmente ao Estado[16], o Serviço tem um caráter público que garantiu a coerção necessária para obrigar os industriais a recolherem a contribuição compulsória que o financia e a empregar os aprendizes. Entretanto, a direção institucional e a gestão dos recursos são feitas pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), instituição privada. Essa ambiguidade é explicada pelo autor como uma decorrência do corporativismo do Estado Novo (CUNHA, 2005, p. 46), que adotando a definição apresentada em Boschi (1991), afirma como uma forma de dominação em que a interpenetração entre o público e o privado é enfatizada.

    Ao analisar esse aspecto, Weinsteim chama a atenção para o

    caráter sui generis do SENAI e do SESI enquanto organizações criadas pelo Estado, financiadas pela indústria e controladas por associações de industriais. Em outros países, esses programas sociais e educacionais funcionavam com o apoio do Estado, tendo surgido de um esforço combinado de governos, indústria e operariado, ou da iniciativa de firmas isoladas (WEINSTEIN, 2000, p. 358).

    Müller também verifica que

    a organização de um sistema de formação profissional por empresários, sob a chancela do Estado, é caso único no mundo. Única também é a questão do repasse de impostos diretamente ao órgão, sem interferência do Estado e sem a participação dos trabalhadores (MüLLER, 2009, p. 98).

    Além da experiência existente em outros países, o modelo defendido por Capanema e Fucks não era, enquanto sistema educacional, irrealizável.

    O conflito entre o Ministério do Trabalho e o da Educação é descrito como uma clara disputa [...] pelo controle do novo sistema (CUNHA, 2005, p. 32). Três aspectos marcariam esse conflito: a responsabilidade sobre controle do sistema de aprendizagem, o esquema de distribuição de seus custos e a relação entre as empresas e as escolas industriais mantidas pelo Ministério da Educação.

    O Ministério da Educação almejava o controle de todo o ensino industrial, da aprendizagem à formação superior. A posição adotada pelo Presidente Getúlio Vargas e pelo Ministério do Trabalho, tanto na gestão de Waldemar Falcão[17], quanto na de Alexandre Marcondes Filho[18], era de que o controle e financiamento da aprendizagem industrial deveriam ficar a cargo das entidades patronais.

    Segundo Cunha,

    a fonte desse conflito foi de caráter predominantemente político-ideológico. Embora a aprendizagem sistemática associando escola e oficina tivesse chegado ao Brasil na década de 1930, por fontes inspiradoras europeias, particularmente germânicas, na década de 1940, o paradigma norte-americano foi assumido por aqueles que, dentro do Estado, resistiam à intenção centralista e homogeneizadora de Capanema (CUNHA, 2005, p. 38).

    Em relação às explicações dadas pelo autor, podemos ponderar que ainda que certas disputas entre europeísmo e americanismo tenham marcado vários aspectos no Brasil, nos anos 1930 e 1940, reduzir o conflito entre os dois Ministérios a elas é insuficiente. E se a intenção centralista e homogeneizadora de Capanema era parte do caráter autoritário do próprio governo, como explicar o apoio do Presidente Vargas ao projeto do Ministério do Trabalho?

    Weinstein (2000) apresenta o conflito sobre a qualificação da mão de obra para a indústria de maneira bastante detalhada, mas ressalta como aspecto de litígio fundamental a amplitude que deveria vir a ter essa qualificação.

    Para os industriais paulistas e seus representantes, um dos objetivos primordiais era garantir um número suficiente de operários especializados – suficiente não apenas para atender à crescente demanda de trabalhadores em determinados setores, mas também para forçar para baixo os níveis salariais e limitar o poder de barganha desses mesmos operários. [...] Em contrapartida, muitos reformadores educacionais pertencentes à burocracia do regime de Vargas analisavam a carência de operários especializados e a perspectiva de educação profissional em termos muito mais amplos (WEINSTEIN, 2000, p. 104-105).

    A autora também chama a atenção para o fato de que as primeiras leis sobre formação profissional foram formuladas por técnicos dos Ministérios da Educação e do Trabalho, sem ligação direta nem aos empresários, nem aos trabalhadores (WEINSTEIN, 2000, p. 107). Adiante mostra como as lideranças industriais, a partir de argumentos racionais e científicos, articulavam a defesa de uma formação profissional ligeira, parcial e restrita às necessidades técnicas e numéricas das indústrias (WEINSTEIN, 2000, p. 118-119).

    Como o modelo autoritário-corporativista do Estado Novo era bipartite[19], os trabalhadores foram excluídos do processo de discussão sobre a formação profissional. Isso não quer dizer que não houvesse por parte deles apoio a um maior acesso à educação profissional, mas havia também trabalhadores que perceberam as limitações da instrução que lhes era oferecida (WEINSTEIN, 2000, p. 113). Reproduzindo um artigo publicado no jornal O Trabalhador Gráfico, de 07 de fevereiro de 1936, a autora nos apresenta a perspectiva de um membro da Escola Proletária, patrocinada pelo Sindicato dos Gráficos de São Paulo:

    Com o advento da indústria e a rápida evolução dos novos processos de produção, isto é, a racionalização do trabalho, os governos reconheceram a necessidade de ministrar educação alfabética ao proletariado, limitada, porém, ao estritamente indispensável ao exercício das respectivas profissões (WEINSTEIN, 2000, p. 1112-113).

    Na posição da autora, da qual compartilho, o Ministro Gustavo Capanema tinha uma visão semelhante a essa.

    Em [25 de] julho de 1940, Capanema escreveu à Vargas reclamando das novas diretrizes que estavam sendo traçadas para o ensino profissional. Ele afirmava ser difícil aceitar um programa de educação profissional em que seu ministro (sic) iria ter um papel marginal e que iria tratar da educação dos operários em função da demanda industrial (WEINSTEIN, 2000, p. 115).

    Tomando por referência Schwartzman, Bomeny e Costa[20], Weinstein faz referência à outra carta de Capanema a Vargas, esta datada de 19 de maio de 1941, na qual o Ministro defende que

    para que os estabelecimentos oficiais do país passem a dar ensino a seus operários e aprendizes, não um ensino de mera transmissão de processos técnicos rotineiros e inidôneos, mas de real elevação de sua qualidade profissional, força é que sejam obrigados a uma conveniente disciplina pedagógica e recebam orientação técnica de apurado estilo (SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA, 2000, p. 254).

    Ainda que o fundamental trabalho da autora vincule a constituição de um ensino profissional sistemático no Brasil ao processo de industrialização e expansão do capitalismo, sua análise não permite uma identificação da vinculação dos personagens a interesses de classe, de frações de classe ou de categorias sociais que estavam em disputa pela hegemonia no bloco no poder naquele momento.

    Alguns autores, como Müller (2009), apontam que o conflito entre o Ministério da Educação e o do Trabalho indicaria uma disputa entre frações do capital.

    A disputa dos ministros pode ser entendida como um embate entre frações do próprio capital tentando se acomodar, ou seja, uma ‘queda de braço’ para verificar quem mantinha a hegemonia para dominar o grupo adversário. No caso, quem estava mais próximo ao Estado conquistou essa hegemonia, sendo que o embate terminou pelo arbítrio do próprio presidente Vargas, que optou pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio para negociar com os empresários. Esses acabaram aceitando as normas impostas pelo referido Decreto [nº 1.238, de 02 de maio de 1939], assumindo, sem outra opção, os custos financeiros pela formação profissional de seus operários (MÜLLER, 2009, p. 138).

    Batista (2015, p. 169-170) também apresenta o conflito, situando-o em dois níveis. Em um teríamos de um lado os industriais e de outro o governo. Na verdade, os industriais queriam dar a direção e controlar essa área de formação dos trabalhadores, definindo como deveriam ser os cursos ou como funcionariam as escolas, entrando o Estado apenas com o financiamento. Em outro, a disputa entre o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e o Ministério da Educação, para decidir qual deles seria responsável pela implementação e gestão da educação profissional no país (BATISTA, 2015, p. 169-170).

    Em relação a esse segundo nível, Batista parece aderir à análise de Müller de que se tratava de uma disputa de interesses entre frações de classe no interior do governo, já que cita diretamente o trecho do trabalho em que a autora faz essa caracterização. Entretanto, as frações que estariam em embate não são identificadas por nenhum dos dois autores.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Ainda que haja uma ampla produção sobre o processo histórico que deságua na Reforma Capanema do Ensino Industrial e que alguns autores tenham apontado a existência de disputas que transcendem a questão de controle e financiamento da educação profissional, apontando para a existência de conflitos políticos mais profundos entre diferentes grupos, não encontramos uma caracterização de quais seriam esses grupos e qual a natureza desses conflitos.

    A tarefa que resta colocada é ir além da descrição sumária dos conflitos em torno da estruturação de uma educação profissional industrial sistemática no Brasil, buscando identificar de maneira clara as diferentes propostas de formação profissional em disputa e seu vínculo com os projetos políticos das diferentes frações de classe envolvidas no processo. Para isso, é imprescindível identificar os sujeitos envolvidos na formulação das diferentes propostas e seu vínculo com diferentes categorias sociais e frações das classes dominantes, bem como analisar a vinculação das diferentes propostas de formação profissional a diferentes projetos de desenvolvimento para o Brasil.

    O modelo dual resultante da Reforma Capanema resiste ainda hoje, com a existência de dois sistemas de educação profissional, um administrado pelo setor empresarial industrial, através de seus órgãos de classe, e outro pelo Ministério da Educação. A tentativa reincidente de tomar o modelo do SENAI como base para reformas do ensino profissional

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