A Face Obscura De Livia
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A Face Obscura De Livia - Veronica Yamada
Capítulo 1
O Presente
 Diamantes Dingbat Diamantes Dingbat
Livia havia terminado de pintar um belo quadro, um campo de tulipas de diversas cores, ao estilo impressionista de seu pintor favorito, Monet. Assim que dera seus toques finais, porém, ela o cobriu com tinta escura, negra, deixando apenas as bordas ainda visíveis da obra original. Eu ficara chocado com sua ação repentina de destruição, mas ela apenas se virou calmamente e disse:
- Este é você.
Eu somente a encarei atônico, sem que nada me ocorresse para respondê-la. Como se já esperasse minha reação, ela não disse mais nada e me deixou ali, sozinho com sua versão de mim. Examinei a tela mais de perto, tentando captar os detalhes das poucas tulipas sobreviventes, mas a visão do lado obscuro me penetrava a alma. Como aquilo era minha representação? Ela dissera que me daria uma tela de presente, feita sob medida. Porém, o que ela queria realmente me dizer?
Fiquei semanas sem vê-la, tentando entender mais a mim mesmo do que a ela e fui recordando os momentos que convivemos juntos, transcrevendo-os para que minhas ideias ficassem mais claras e meus pensamentos, organizados. Por fim, resolvi procurá-la. Contudo, relatarei aqui, com o máximo de precisão que minha memória me permitiu, o que se passou nos anos anteriores.
 Diamantes Dingbat Diamantes Dingbat
CAPÍTULO 2
O Início
 Diamantes Dingbat Diamantes Dingbat
Eu era ainda estudante de medicina quando a conheci no hospital. Ela havia causado múltiplos ferimentos na face interna da coxa, sendo encontrada inconsciente depois. Fora trazida às pressas, tratada na emergência, e após ser estabilizada, fora transferida para a enfermaria psiquiátrica, onde estava sendo meu estágio de internato. Eu havia ido buscá-la na sala de emergência, quando o plantonista me disse:
- Essa aí tem que ficar de olho, viu, porque ela quer morrer.
Notei, em seu tom, uma profunda irritação, além da preocupação. Ele continuou:
- Ela não disse uma palavra desde que chegou, nada. Se recusa a nos ajudar.
Eu a transferi, passei o mesmo aviso ao psiquiatra da enfermaria e fui vendo outros pacientes. Ao fim do dia, como de praxe, sentamos numa sala de reunião e discutimos os casos, mas naquele dia a discussão fora um pouco diferente. Dr. Carlos Foley, o psiquiatra chefe, me perguntou sobre a paciente que eu havia transferido.
- A que tentou suicídio? - perguntei sem muito interesse.
Dr. Carlos me olhou por uns instantes antes de responder com outra interrogativa.
- Acha que ela tentou suicídio? - havia em seu tom uma sugestão de que eu estava errado.
- Bom, ela se cortou várias vezes até ficar inconsciente. Estava tentando morrer - respondi com o tom mais confiante que pude.
- Você conversou com ela? - dessa vez seu tom era calmo.
- Não, ela não disse uma palavra desde que chegou ao hospital.
- Humm... Então, você não tentou falar com ela?
Obviamente, Dr. Carlos já sabia a resposta daquela pergunta, seu tom não era acusatório, mas sim, calmo. Eu não havia nem tentado conversar com ela, pois já imaginei que ela não iria falar comigo, mas não pude responder nada ao chefe, que interpretou meu silêncio como uma confissão. Então, ele se levantou e disse:
- Vamos lá, Arthur, vamos conversar com a paciente.
Segui Dr. Carlos até o quarto em que Livia estava. Ela dormia quando entramos, mas ele me fez acordá-la. Eu pensei mas aí é que ela não vai mesmo querer falar conosco
, mas ela abriu os olhos, nos viu e esperou, nos olhando como uma criança entediada. Não virou a cara, nem se cobriu com os lençóis, como eu imaginara. Apenas esperou pacientemente.
Dr. Carlos tomou a dianteira e se apresentou, além de me apresentar, mas ao invés de perguntar sobre seus ferimentos, ele começou a falar sobre o tempo, que estava chuvoso, bom para comer bolinhos de chuva com canela. Livia acenou com a cabeça um sim e abriu um leve sorriso triste. Então, ele lhe perguntou:
- Quer comer bolinhos de chuva?
Livia arregalou os olhos e ouvimos sua primeira palavra desde que havia sido internada:
- Sério?
Dr. Carlos sorriu e respondeu que sim, traria no dia seguinte. Ela o olhou desconfiada, mas o psiquiatra deu de ombros e disse:
- Sim! Até amanhã!
Assim, saímos do quarto, e esse foi meu primeiro contato com Livia. Claro que Dr. Carlos virou-se para mim e disse sorrindo:
- Você ouviu, traga bolinhos de chuva amanhã! Com canela.
 Diamantes Dingbat Diamantes Dingbat
CAPÍTULO 3
Bolinhos de chuva
 Diamantes Dingbat Diamantes Dingbat
No dia seguinte, apesar da minha incerteza sobre o comportamento nada convencional de Dr. Carlos, levei os bolinhos pela manhã. Encontrei-o, na sala de reunião, enchendo alguns copos com café e lendo uns artigos. Quando me viu, sorriu e me perguntou:
- Trouxe os bolinhos?
Respondi que sim com a cabeça, mas perguntei:
- Por que o senhor não perguntou mais nada ontem? Ela parecia mais aberta após sua conversa dos bolinhos.
O psiquiatra me olhou nos olhos, e eu vi algo que parecia pena ali, o que me incomodou. Mas, cortando o breve silêncio, Dr. Carlos disse:
- Aqui não existe pressa, Arthur. Não estamos perguntando a ela se está com febre, vômitos, ou dor. Aqui, perguntamos coisas muito particulares e íntimas, não podemos esperar que eles se abram tão facilmente. Afinal, não existe nada mais difícil que olhar para nossas próprias sombras - pegando os copos com café, ele foi saindo da sala de reunião, acrescentando - Vamos, antes que o café esfrie.
Livia já estava acordada, lendo um livro, quando chegamos. Ao ver-nos, ela fechou o livro e esperou, com uma expressão desconfiada, mas curiosa. Dr. Carlos lhe entregou o copo de café e eu abri o saco de bolinhos. E pude ver que ela relaxou um pouco, novamente abrindo um sorriso triste, e disse:
- Não achei que fosse mesmo trazer bolinhos de chuva - seu tom de voz era baixo, apenas suficiente para nós dois escutarmos.
- É claro, eu sempre cumpro minhas promessas, minha cara - Dr. Carlos deixou de fora o fato de que fui eu que levei os bolinhos. Mas não é como se eu esperasse algum reconhecimento.
- Por favor, coma. Imagino que faz algum tempo que não come.
Livia agradeceu e começou a comer os bolinhos. Dr. Carlos também se serviu e me indicou para que eu também comesse. Olhei para ele surpreso, havia sido ensinado que não se come na frente do paciente. Mas como ele mesmo estava comendo, imaginei que não seria repreendido por isso e peguei um bolinho. Após um tempo, Livia finalmente falou:
- Minha avó me fazia bolinhos de chuva quando eu era criança. Eles tem um sabor nostálgico.
- Quantos anos tinha na época? - perguntou Dr. Carlos.
- Seis - respondeu. E após uma pausa acrescentou, com uma mudança no tom de voz, que ficara mais triste - acho que desde então nunca mais comi.
Ela sorriu, ao finalizar a frase, novamente aquele sorriso, leve e triste. O psiquiatra continuou:
- Ela faleceu?
Livia não tirou os olhos dos lençóis que a cobriam quando respondeu:
- Não, ela está viva. Só não fez mais bolinhos de chuva - seu tom parecia querer dizer que o assunto havia acabado e eu não pude evitar ficar curioso para saber o que aconteceu então, se a avó estava viva, por que em todos esses anos não fez mais bolinhos para ela?
Dr. Carlos mudou de assunto, perguntando-a como estavam seus ferimentos, se estava com dor. Ela respondeu que estava tudo bem, não estava com dor, de forma quase automática. O psiquiatra se virou para mim e perguntou:
- Ela está com remédio para dor na prescrição?
Eu rapidamente peguei a prescrição dela e não havia nenhuma analgesia ali, o que achei estranho, afinal, era de praxe deixar já prescrito, ainda mais em uma paciente que estava com vários cortes. Olhei para Dr. Carlos, e respondi-lhe que não. Ele só me deu um sorriso e disse para a paciente:
- Você é muito forte para aguentar tão bem a dor.
Livia arregalou um pouco os olhos, surpresa com o comentário, mas só durou uma fração de segundo, e sua expressão já estava passiva novamente. Não respondeu nada, apenas encarou Dr. Carlos e eu, nenhum sentimento visível em sua face. Ele quebrou novamente o silêncio e disse, já se levantando da cadeira:
- Bem, caso sinta dor, não hesite em nos avisar - e saiu do quarto, sendo seguido por mim de perto.
Enquanto andávamos de volta até a sala de reuniões, vários pensamentos iam surgindo em minha mente. Como é a relação entre ela e a avó? Por que ninguém de sua família veio vê-la? Como é que ela não está sentindo dor? O psiquiatra se sentou, gesticulou para que eu também sentasse, e interrompendo meus pensamentos, disse:
- Eu não acho que ela tentou suicídio.
- Bem,