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Victória O'brien
Victória O'brien
Victória O'brien
E-book541 páginas7 horas

Victória O'brien

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Sobre este e-book

Victória O’Brien é uma jovem, de 15 anos, egocêntrica e teimosa que não se importa muito com os outros. É estudante do primeiro ano do ensino médio em um colégio de normalistas. Ela mora com a mãe que a cria com dificuldades. Ambas vivem em uma comunidade carioca onde tiroteios e confrontos armados são frequentes. Mas um dia Victória, vê um ser medonho apoleirado no telhado de sua casa. Então, uma criatura nefasta a ataca, bem como sua mãe. A mesma entra em coma e Victória vai morar com um tutor. Doente e morrendo, o homem não consegue cuidar dela e de sua outra filha adotiva, Alanis. Assim a jovem se vê forçada a buscar um artefato maldito para poder reverter o mal que recaíra sobre o homem e sua vida. Acompanhada pela esperta Alanis, da vizinha e amiga Paola e do misterioso Bernardo, na qual ela nutre uma paixão secreta. Atormentada por aparições, seres sobrenaturais e demônios bem como visões distorcidas e atrofiadas de possíveis destinos torpes, Victória O’Brien luta contra horrores fantásticos e forças sobrenaturais. Interagindo com os mortos de forma ácida e engraçada enquanto se depara com alguns problemas sociais cariocas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de jun. de 2018
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    Pré-visualização do livro

    Victória O'brien - Igor Ivanov

    Capítulo um

    O pressentimento

    Era cinco para o meio dia e eu já estava de saco cheio de tudo aquilo: fórmulas matemáticas? Quem precisa disso? Queria que o sinal tocasse logo e acabasse com toda aquela chateação! Olhei para a janela da sala de aula e vi pela borda retangular uma folha cair. Um pombo nesse momento alçou voo do outro lado do pátio. Queria ter essa liberdade.

    — Victória, qual é a raiz dessa equação? – Meu professor perguntou.

    Devo ter feito cara de paisagem e isso devia ser engraçado, pois até João o cara mais sério do primeiro ano do ensino médio da Escola Estadual José Bonifácio de Andrada e Silva, riu. Minha vontade era esmurrar ele por rir de mim, mas ele é tão gatinho que deixei para lá.

    — Escute, você não pode simplesmente achar que pode passar a aula inteira olhando para uma janela. Ei... guarde já esse celular mocinha! – O professor continuou.

    Não estava mais dando a mínima para disfarçar e fingir interesse. Preferia ficar de boa em uma rede social do que ouvir o tiozinho me dar um sermão.

    Trimmmm

    Tocou o sinal! Fui salva pelo gongo todos os vinte alunos da sala se levantaram e não esperaram o professor de matemática de meia idade – Zé Augusto – terminar de me dar esporro. Me levantei e saí acompanhada de minhas duas BFFs (best friends forever) Thaís e Julia. Thaís era morena de olhos castanho escuros como amêndoas. Seus cabelos eram bem compridos chegando a sua cintura! Eram lisos e bem brilhantes. Ela parecia uma índia.

    Já Julia era loira com cabelo repicado, olhos cor de mel e uma boca estilo a de um curinga. Sério eu zoava muito ela por isso. Elas e eu estávamos vestidas iguais: sapatilha preta, meia branca até o joelho, saia azul marinho e camisa social branca de meia manga. Sim estudávamos em um colégio de normalistas! Isso tudo não fazia muito o meu estilo, mas fazer o que né? Não tive como opinar sobre isso. Minha mãe decidiu e estava decidido.

    Eu era rebelde, mas nem tanto assim ao ponto de contrariar ela. Pelo menos não quanto a isso.

    — A propósito a resposta é 4.

    — Victória O’Brien, se você levasse o ensino médio a sério seria a primeira da turma. — Meu professor respondeu.

    Ele era um homem de meia idade com cabelos grisalhos, lisos e cortados curtos. Baixinho, barrigudo, tinha uma careca de frei e um nariz pontudo. Ele usava uma camiseta polo verde, jeans e sapato. Respondi sem pestanejar:

    — Professor, se o senhor levasse sua aparência a sério provavelmente teria uma namorada. Hashtag fica a dica.

    Pisquei meu olho esquerdo e saí com a minha mochila azul Tiffany a tira colo. Eu tinha olhos verdes bem claros. Minha mãe sempre dizia que ambos eram como um par de esmeraldas.

    — Um dia vai dar valor a isso, Victória. — Ele respondeu.

    Deixei ele e segui pelo corredor que dava para o portão da escola.

    Além de olhos verdes minha pele era branca e meu rosto tinha algumas sardas. É tinha gente na do primeiro ano que falava que minha pele era enferrujada. Aí eu dizia que ia bater em todos que me chamavam assim e o apelido acabou não pegando. Sempre fui meio esquentadinha para falar a verdade. Meu cabelo era longo mais não tanto quanto o de Thaís. Ele ainda era ruivo bem alaranjado como se fosse feito de fios de cobre. Eu também tinha uma franja que me cobria a testa. De corpo era magra. Não tinha um corpão sexy mais estava feliz assim. Era baixinha com 1m57cm com um rosto fino, delgado e um nariz afilado.

    Meu nome: Victória Del Valle O’Brien, carioca filha do fruto do amor de um irlandês com uma gaúcha de Santa Catarina. Bem, na verdade, não queria entrar nesse assunto, mas confesso que é até melhor porque tudo o que vou falar daqui para frente é bem... complicado. Pairando o bizarro, portanto recomendo que pare de ler aqui.

    Não parou? Acha que pode aguentar o que está por vir? Tudo bem.

    Ao sair da sala o assunto começou e foi Julia que disse:

    — Uma menina, chamada Giovana, também sumiu. Dizem que ela estava no segundo ano. — Julia parecia meio aflita como se o assunto fosse pesado demais para aquela tarde alegre de sexta.

    Sério, aula de matemática sexta-feira? Fala sério isso é tipo horrível, mas não vem ao caso o que importa é que Thaís disse:

    — Pare, essa história me dá arrepios.

    — Que história? — Eu estava boiando.

    — Há três semanas atrás, Jefferson, um garoto do segundo ano, achou um osso perto do portão. A princípio usou ele para assustar as garotas da sua sala. Ele dizia que era um osso humano e que a escola devia ser um cemitério em outros tempos. — Disse Julia.

    Eu franzi o cenho e comentei:

    — Isso é tão clichê não acha?

    — Eu não terminei, Victória. Um certo dia Jefferson faltou à aula, mas ele nunca havia faltado antes. Todos ficaram preocupados. Mandavam mensagem no perfil dele na internet e nada. No aplicativo de mensagens no smartphone ele não respondia. Foi assim o dia todo até que na hora da saída resolveram ligar para a mãe dele. Chamou até cair e seus colegas foram até a sua casa. Ele morava aqui perto, contudo para a surpresa de todos não havia ninguém no velho sobrado em que ele morava. O lugar tinha três andares e ele morava no terceiro. Nem mesmo os dois outros tinham pessoas. As portas estavam simplesmente abertas e ninguém dentro só os móveis.

    — Sério? — Thaís indagou.

    — Sim, e ficou pior, Thaís. — Julia respondeu e continuou:

    — Logo toda a semana sumia um amigo próximo de Jefferson na sala. Depois uma pessoa passou a sumir aleatoriamente na escola. Ninguém notou de início, contudo agora muitos já dizem que a escola está amaldiçoada.

    Gelei! Isso era bem estranho só que não podia simplesmente dizer que aquilo havia me abalado então perguntei:

    — A última a sumir foi a Giovana, certo?

    — Sim.

    Papinho estranho esse, mas com toda a certeza era só uma lenda urbana. Nada que pudesse ameaçar a paz e a tranquilidade do meu dia-a-dia de adolescente de quinze anos, Aluna do primeiro ano do ensino médio naquele belo mês de março. E o mais importante: era sexta-feira! A primeira de março! A curtição iria começar!

    Passamos pelo portão gradeado e saímos da escola. Eu me despedi de minhas amigas e fui em direção ao ponto de ônibus. O colégio ficava no centro da cidade já a minha casa na Zona Norte. Eu morava em uma casa simples em uma vila na subida do Morro do Coelho. Engraçado é que a minha comunidade não tinha nada a ver com o morro do coelho, ponto turístico de Poxoréo em Mato Grosso, mas a bem da verdade devo confessar que já estava ficando bolada com aquele lugar aonde eu morava.

    Quer dizer as pessoas eram boas, no entanto ontem mesmo um homem foi vítima de uma bala perdida. Isso é triste, pois não sei... acho que ninguém deveria ter um fim desses.

    O tempo estava cinza, nublado e até um pouco frio o que era novidade aqui no Rio. Começou a chuviscar. Estava no fim da Rua general Caldwell cruzando a esquina para a Av. Presidente Vargas quando uma sensação estranha me envolveu. Senti meu coração apertado como se algo de ruim fosse acontecer. Não sei porquê, mas peguei meu celular e liguei para minha mãe. Chamou e ela não atendeu.

    Céus, pensei: o que está havendo comigo? Isso não é nada demais! Ela deve estar bem! Não deve estar acontecendo nada. Atravessei correndo a Presidente Vargas e cheguei do outro lado da pista com os carros fazendo zuummmm as minhas costas quando atravessei a última pista. Queria atravessar logo. Não recomendo isso, mas no meu caso bem... eu sou vida louca mesmo!

    Um motorista me xingou e eu retribui a gentileza.

    Sério, eu precisava me conter mais.

    Peguei o ônibus e entrei por trás mostrando a declaração de que eu era estudante para a câmera. Na boa, por que aqueles cartões de gratuidade demoravam tanto para ficarem prontos?

    Liguei o celular mais dessa vez para ouvir música enquanto não chegava em casa. Estava torcendo para algum cracudo tentar pegar ele de mim pela janela para ele ver se eu não ia voar atrás dele pela mesma janela. Manchete do dia: garota doida pula janela e corre atrás de ladrão de celular pela Central do Brasil.

    Minha comunidade até que era bonita cheia de casinhas de tijolos, muitas delas coloridas nas mais diversas cores: amarelo, azul, rosa e até laranja! Não; eu não morava em nenhuma delas lá no alto do morro, porém apesar da escalada ser árdua eu queria morar lá em cima. A vista devia ser linda e poderia ver todo o bairro. Já fora lá algumas vezes em bailes funk apesar da minha mãe achar que eu estava dormindo. Um dia, contudo, ela me pegou saindo e foi tenso. Hoje tinha baile, pois era sexta e eu queria muito ir, mas ela nunca mais deixou. Aliás ela nunca havia deixado eu é que na rebeldia ia.

    Só não podia fazer isso de novo porque minha mãe estava adoentada. Era só uma gripe (ou resfriado nunca soube a diferença não sei por que duas doenças têm que ser tão parecidas! Da raiva as vezes isso!), todavia achava melhor me comportar como a filha que ela queria. No início ela apresentou febre e eu morri de medo de ser dengue, Zica ou aquele troço que eu não sei falar o nome chica alguma coisa.

    Sério por que ninguém faz nada a respeito disso? Custa tirar a droga da água dos pratinhos das plantas?! Será que a mão de alguém vai cair se for esvaziar o pneu do carro que ficou largado no quintal?! E a faxina?! Ninguém faz para ver se tem algum resquício de água sabe-se Deus aonde!? Isso era o cúmulo do absurdo: ninguém se preocupar com uma doença tão medonha quanto esta. Mês passado a filha da Dona Auxiliadora, vizinha minha, pegou esse troço.

    Enfim nunca falei isso com ela, mas me preocupava muito com a minha mãe. Desci do ônibus estranhando o fato dele ter mudado de percurso. Em vez de ir por dentro foi por fora do bairro. Ao descer alguém me alertou:

    — Cuidado mocinha está tendo uma operação aí no bairro.

    Operação?! Gelei e não foi de frio! O meu pressentimento! De alguma forma eu sabia que algo estava errado! Pulei do ônibus e saí correndo igual uma louca para a direção da minha casa. Consegui ouvir o motorista falar se abaixa! Antes de arrancar com o carro. Então tudo aconteceu muito rápido. Tiros cortaram os céus com o barulho das rajadas sobrepujando o do trânsito.

    Eu estava em uma rua de passagem com alguns carros correndo na direção oposta tentando não avançar mais e retrocedendo. Eu me joguei no chão da calçada e as pessoas que estavam no ponto de ônibus fizeram o mesmo. Reparei que todo o comércio da região como botequins, pastelarias e o mercadinho estavam fechados. Na loja de materiais de construção um funcionário terminava de se trancar lá dentro.

    Pelo visto o tiroteio havia estourado agora no meio do dia sem mais nem menos e interrompendo a rotina de todos. Pensei em minha mãe. Éramos só nós duas a catorze anos. Meu pai falecera quando eu tinha um ano. Foi aí que ela decidiu vir para cá: a comunidade do coelho. Não tínhamos dinheiro para bancar um lugar melhor. Minha mãe era auxiliar de serviços gerais e não me deixava arrumar um estágio. Falava que eu ainda era muito imatura. Queria estagiar e ver se a gente saia daqui.

    De tempos em tempos coisas desse tipo aconteciam e eu sempre me assustava de verdade. O quê eu faria? O recomendado era sempre ficar abaixada e esperar. O chão era sujo e poeirento, áspero arranhava minha pele, mas isso ainda era muito melhor do que ser alvejada. Ao olhar para o lado vi outras pessoas que assim como eu estavam assustadas, em pânico e sem esperanças. Já tiroteio, continuava.

    Tei-tei-tei-tei.

    O que era aquilo? Uma arma com um calibre mais pesado?! Minha mãe estava de folga hoje, me lembrei. Será que ela estava aqui embaixo ou encurralada ladeira acima? Queria estar com ela, abraçando-a, sentindo seu cheiro e me aconchegando em seus braços. Me sentiria mais segura, contudo apesar de precisar dela e se agora fosse o contrário? E se ela estivesse em casa se preocupando comigo? Tentei ligar, contudo ela não atendia. Foi então que notei o poste telefônico pipocando espalhando faíscas para todo o lado. Ele foi atingido por um tiro! O chiado que ele fez era forte.

    E se me minha mãe também foi alvejada em nossa casa e precisasse de ajuda? Fui tomada por um turbilhão de pensamentos. Não podia ficar ali parada com medo. Precisava saber se minha mãe estava bem! Meu objetivo era claro: voltar para casa. Enfrentei o tiroteio e saí correndo abaixada em direção a ladeira em que morávamos.

    Ouvi uma explosão e me abaixei mais. O que era aquilo? Deus, era uma granada? Nunca soube, mas continuei até que o impensável aconteceu! Parei de correr abruptamente com a saraivada de tiros ainda a se fazer ouvir. Pulei e fui parar atrás de uma caçamba de lixo com as chamas lambeando a ladeira em que eu morava. Só vi o vermelho alaranjado de uma torrente de fogo a queimar indistinta e logo depois veio o boom. A fumaça negra dificultava a visão. Meus olhos ardiam. Me encolhi e percebi com horror que haviam posto fogo em um ônibus.

    Capítulo dois

    O despertar

    As chamas eram lindas pude notar isso apesar do terror da situação. Tinha algo nelas de único, especial. Elas me chamavam. Me convidavam a passar por elas e seguir meu caminho ladeira acima. Pelo menos era essa a sensação que eu tinha ao olhar para as mesmas naquele momento. Sua beleza era ímpar. O fogo crepitava e as chamas dançavam em tons de vermelho, amarelo e laranja. Podia ouvir seu crepitar.

    Parei de olhar para o fogo.

    Os sons de tiro aumentaram e o intervalo entre uma rajada e outra também. Era como se outros tipos de armas estivessem sendo usadas agora. Saí daquele estado contemplativo e segui em frente, mas não em direção ao fogo. Contornei o ônibus e passei encolhida para não me queimar.

    Subi a ladeira correndo. Era uma rua sem saída bem arborizada. Passei por uma chuva-de-ouro depois continuei subindo com os sons de tiro ficando mais intensos. Meu coração estava disparado e a cada passo que dava rezava para não ser acertada por uma bala perdida. O ônibus queimado explodiu de novo ao fundo. Fiquei com medo ao pensar se ele estava realmente vazio ou não.

    Não olhei para trás e lá em cima vi algo que me deixou ainda mais nervosa (se é que era possível), alguém estava se abrigando atrás de uma árvore – uma eritrina-candelabro – em um barranco de terra batida. Em uma escadaria vertical que dava em uma viela vi um homem com uma camisa no rosto. Só os olhos estavam para fora. Ele me encarou.

    Gelei.

    Não podia continuar correndo, pois notei que ele tinha uma faca na mão. Os tiros cessaram. Ele olhou para o outro lado e eu rapidamente corri para a minha vila. Fiquei de frente para o portão verde de ferro que dava acesso a vila. Corri as mãos nervosamente no bolso da mochila. Aonde estava a chave do portão?! Estava muito tensa o confronto armado poderia recomeçar a qualquer minuto. Eu não sabia o que estava acontecendo.

    Quem estava lutando com quem e, honestamente, não queria saber e principalmente, não queria me ver no meio do fogo cruzado novamente. Continuei procurando apressada a chave. Praguejei quando toquei no estojo e não nas chaves. As encontrei por fim e abri o portão! Bem na hora os tiros recomeçaram.

    Entrei.

    As horas seguintes passaram devagar com a apreensão aumentando a cada vez que os terríveis sons voltavam. Iam e viam, mas felizmente minha mãe estava bem em casa. Não chegou a me dar um esporro por subir correndo a ladeira. Ela também estava preocupada e só me disse para não fazer isso de novo.

    Minha casa tinha um quarto e era alugada. Não tinha mais do que 120 metros quadrados. Na sala havia uma televisão preta de tubo, um sofá de três lugares azul marinho e um rádio cinza escuro com uns buracos que minha mãe dizia serem feitos para fitas cassete seja lá o que for isso. No único quarto da casa estavam dispostas a minha cama – de uma gatinha branca fofa – e a de minha mãe. Tínhamos também uma geladeira e um computador dos anos noventa amarelo (um dia fora branco, mas eu já quase nem me lembro mais disso) enfim era isso. Tudo era muito modesto.

    No fim da tarde enquanto o céu era banhando com tons laranjas fortes do pôr do sol e a lua já se insinuava magistralmente lá no alto eu abri a porta da humilde casa para ver como estava o pátio da vila. Ao todo tinham dez casas dispostas cinco de cada lado em um terreno retangular. O rosto de minha mãe esboçou preocupação e eu disse que só iria ver o movimento. Não conseguia na verdade ficar trancafiada. Se não fosse o risco de um novo tiroteio com certeza iria sair e ir para o baile.

    Ou talvez encontrar Ana e Lúcia duas das minhas vizinhas não da vila, mas da rua. Era um saco tudo isso! Interromper minha vida graças aos tiros. Se bem que mesmo que eu não gostasse de admitir eles também já faziam parte da minha rotina. O lugar em que vivíamos era violento demais. Isso era ruim e eu me sentia muito desconfortável com o fato da violência acabar entrando não só na minha rotina como na de todos os moradores daqui. Acabara se tornando algo natural quando não deveria ser.

    Pessoas se machucam de verdade nessas contendas e isso me incomodava. A verdade era que eu estava farta de morar aqui. Enfim acabei saindo e fui até o portão. Estava tudo calmo. Não havia ninguém na rua. Pensei que ficar ali também não seria bom então voltei e vi uma imagem que jamais saiu de minha cabeça. Fiquei aterrorizada e gelei quando aqueles terríveis olhos me fitaram de forma abrupta. Eram vermelhos e emitiam um brilho sobrenatural. O rosto uma sombra negra e disforme. A coisa deveria ter uns dois metros de altura e estava acocorada como um urubu no telhado de minha casa.

    O corpo era todo preto e parecia ser feito de piche. A criatura era humanoide com garras nas mãos e pés e o mais estranho: assas! Precisava sair dali porque a coisa inspirava o mais profundo medo em mim. Tive a sensação instantânea de que algo muito ruim iria acontecer. Não sabia se ainda era possível piorar mais. Só que quando você tem problemas deve sempre tentar manter uma postura otimista porque as coisas podem realmente piorar. Por mais que não gostemos sempre há o subsolo do fundo do poço! A coisa levantou voo e pude notar que suas assas eram imensas com mais de cinco metros de envergadura!

    Isso não fazia o menor sentido! Como algo tão grande poderia alcançar voo tão rápido estando tão perto do chão! Quer dizer minha casa não tinha nem dois andares! O que era aquilo?! Eu corri! Não fiquei para descobrir. Entrei na primeira casa próxima ao portão. A porta por sorte não estava trancada e minha vizinha a Dona Alberta pulou do sofá com o susto! Olhei pela janela dela e a coisa havia sumido como se nunca tivesse passado por ali.

    Tomei um esporro federal! Estava em casa depois do que ocorreu e minha mãe dizia Como você sai entrando na casa dos outros assim? E se o marido dela estive em casa e lhe esmurrace achando que você era uma assaltante ou algum tipo de ladra! Mas porquê ir até o portão depois de um tiroteio?! Você disse que iria só até a janela! Eu pisco o olho e você sai! E a coisa se arrastou por mais uns trinta minutos de sermão.

    Ela disse que eu era irresponsável. Falou que eu não tinha juízo. O pior é que dessa vez eu estava certa tinha visto um monstro e ela não acreditou. Não podia culpá-la eu também não acreditaria se ouvisse isso de alguém e ela só não pegou mais pesado com as palavras porque estava convencida de que eu vira realmente alguma coisa. Embora não soubesse exatamente o quê. Eu ainda tremia de medo. A coisa foi tão real mais tão real. O que estava acontecendo comigo? Premonições, atração repentina por chamas de um ônibus e agora um monstro? Eu vi um monstro?!

    Não tinha resposta e tão pouco minha mãe. Ela agora mais calma me fitava com um olhar pensativo. Quase como se não soubesse o que fazer comigo. Sentei no sofá e fui assistir televisão. Eu estava com uma camisa branca e short jeans. Em um de meus bolsos estava um lenço preto bordado com letras douradas formando a frase Brighid a chosaint tú que em irlandês significa: Que Brighid lhe proteja. Não que eu saiba irlandês, na verdade, minha mãe traduziu, pois aprendera um pouco com meu pai. O lenço era dele e Brighid era uma deusa da mitologia celta.

    Minha mãe Melissa tinha cabelos castanho claros, pele branca e um par de olhos cor de âmbar. Embaixo deles se podia ver olheiras não de falta de sono mais de preocupação com problemas, contas e um baixo salário. O rosto também trazia consigo as marcas de anos de penúria e sofrimento. A família dela – Del Valle – já teve posses no Sul do Brasil.

    Meu avô era um senhor de classe média (contador) que conseguira um patrimônio bem interessante, porém se envolveu com gente ruim. Fez coisas ruins e se corrompeu ao ponto de ter que prestar contas à Justiça. Ele não aguentou a barra e não quis envolver minha mãe e sua esposa na história. Vendeu tudo e tirou a própria vida para não ir preso. Minha avó não aguentou tudo isso. Depois de algum tempo veio com minha mãe para o Rio de Janeiro.

    Depois acabou vindo a falecer. Felizmente nessa época minha mãe conheceu meu pai e foi feliz por algum tempo. Ele morreu quando eu tinha um ano. Nunca soube o motivo, mas sei que foi devido a uma complicação de uma doença severa. Minha mãe na verdade não gosta de falar do passado.

    Antes eu fazia questão de perguntar mais sobre meu pai, contudo parei. Na verdade, nem me lembro do rosto dele. Tem horas que é difícil ser filha única. Não ter irmãos ou parentes... é bem solitário. Imagino que deva ser complicado para minha mãe também.

    No fim das contas ela só ficou com o ensino médio e uma filha.

    Ah... puxa isso ainda mexe comigo. Essa parte é mais complicada do que a aparição que presenciei no meu telhado.

    Bem tenho que continuar.

    O dia acabou por fim e a noite veio bela e formosa como uma dama fina e elegante. Ela trazia consigo um frio incomum para uma noite de março. Não sei porque, mas abracei minha mãe e fiquei coladinha com ela por alguns minutos. Me sentia angustiada com um pesar no peito difícil de explicar em palavras. Era como a mesma sensação que eu tivera mais cedo. Temia que algo ruim fosse acontecer.

    Minha mãe foi pega de surpresa e me olhou estupefata e logo disse:

    — Filha o que foi? Você nunca foi de abraços.

    Isso era estranho mesmo. Respondi:

    — Não é nada eu só... eu não sei.

    — Filha hoje foi um dia duro para você não foi? Não se assuste. Não se revolte. Não se deixei influenciar por toda essa violência que nos cerca. Não permita que a dor a guie e sim o amor.

    Minha mãe afagou meu rosto e fez carinho em meu cabelo. Uma lágrima fugiu do meu olho esquerdo. Não gostava disso. Não gostava de chorar na frente de ninguém. Nem mesmo na frente de minha mãe. Entretanto no momento não protestei diante da lágrima intrometida. Apenas falei:

    — Eu só... não queria... viver em um lugar tão violento.

    — Filha eu compreendo, mas você sabe que não há outro jeito. Não temos dinheiro para nos mudar para outro lugar.

    Fiz que sim com a cabeça e vi o olhar de minha mãe se desvencilhar de encontro à noite ao ver a janela e fitar todas aquelas pequenas luzes que iluminavam a nossa comunidade. Fiz o mesmo e em uma prece silenciosa roguei para que tudo aquilo não acontecesse de novo. Mais a noite estava prestes a ficar mais sinistra e medonha trazendo consigo coisas tão nefastas quanto a violência e a dor que inundam os tiroteios em uma favela.

    Dormi e sonhei que estava caminhando em um matagal à beira de uma estrada deserta. Era noite e eu nada via a não ser uma antiga casa a minha frente. Feita de madeira com dois andares parecia uma daquelas casas que a gente vê em filmes americanos. A noite estava fria e o vento uivava quando de repente tive a horrível sensação de estar sendo observada.

    Corri em direção a casa e vi que a porta estava aberta. Entrei e fechei-a. Peguei meu celular e liguei a lanterna. Estava tudo completamente escuro e ao passar a luz pelo interior da casa notei que por dentro ela estava se deteriorando. Tinha uma enorme infiltração no teto e o chão estava cheio de jornais velhos e amarelos.

    Senti um cheiro horrível e vi que havia algo morto à frente. Achei que era um gato. Fiquei nauseada e mudei de cômodo. Fui para o que devia ser uma cozinha. Lá era pior, pois o cheiro da entrada se misturava ao de comida estragada que estava entupindo uma pia imunda. Lá também havia uma geladeira que um dia fora branca na lateral, mas completamente envolta em ferrugem. Um armário com copos de vidro quebrados. Muitos dos quais, aliás, se encontravam no chão que além dos cacos exibia um líquido enegrecido. Já no centro do cômodo havia uma mesa com uma prataria repugnante e suja e um cutelo grande.

    Era tudo muito bizarro, mas o pior é que a sensação de ser observada continuava. Saí da cozinha e fui parar em um corredor pequeno. Parei de andar e corri para trás. Não podia mais continuar era algo insensato demais. Meu coração palpitava a cada passo apressado que minhas pernas davam. Seja lá o que for que estivesse lá fora não podia ser pior que aquela casa. Me forcei a continuar agora já com um gosto metálico na boca e o estômago já quase a sair de dentro de mim dado o nível de meu enjoo.

    Gelei ao finalmente chegar a porta e perceber que ela estava trancada! Agora já não sentia mais que estava sendo observada e sim que algo estava vindo em minha direção. Tive a sensação de que a coisa lá fora e a que estava agora aqui eram a mesma criatura. Algo sombrio e nefasto. Não ousei olhar para trás, contudo sabia que seja lá o que fosse estava na cozinha. Pensei em tentar arrombar a porta mais sabia que não tinha força para isso. E acho que o barulho só pioraria as coisas. Corri os dedos na tela do celular e ao tentar ligar para a polícia vi que estava sem sinal. Sem créditos tudo bem afinal a ligação completaria do mesmo jeito, porém sem sinal não dava! Droga! Por que não peguei aquele cutelo lá na cozinha?!

    Foi aí que eu vi.

    Chamas rubras, tênues e fracas que guardavam dentro de si nada além de um semblante nefasto. Extremamente perturbador. Não dava para ver direito, contudo se podia sentir o Mal naquela criatura sombria. A coisa foi se aproximando da luz do celular. Mostrando parte de um rosto esquelético. Um crânio de ave desproporcionalmente grande e um bico. Uma visão medonha.

    Um crânio que formava um rosto morto e sem carne dentro de um capuz negro que exibia em seu interior uma serpente com escamas de um negro tão intenso que se mesclava a um branco pálido. Ela fincou seu olhar no meu e abriu a boca que parecia ter sido banhada em piche. Eu já tinha visto aquela serpente antes em um filme de uma noiva que buscava vingança: era uma mamba-negra! O homem do rosto de ossos de pássaro se aproximou de mim e com uma mão pálida e unhas negras e grandes ergueu o indicador e tentou aranhar meu braço!

    Acordei com um salto, suando muito e com o coração na boca!

    Era um sonho felizmente e então disse comigo mesma:

    — Nossa se fosse um filme de terror agora o meu braço estaria aranhado.

    Olhei para o braço só para garantir e não havia nada.

    — Mocinha o aranhão vem agora! Tenha medo Victória! — Uma voz horrível inumana e gélida se fez soar ao meu redor. O homem estava ao meu lado! O homem do capuz negro!

    Pulei da cama e minha mãe veio ao meu auxílio!

    — Victória o que houve?!

    Neste mesmo instante a cama explodiu fazendo centenas de pedaços de madeira voarem pela sala! Fomos ao chão minha mãe e eu. Olhei desesperada para onde o homem estava só para arfar de dor. Minha pele queimava e em meu ombro direito vi um pedaço de madeira de uns quarenta centímetros enterrado. Chorei. A dor era lancinante, porém ainda assim encontrei forças para levantar minha mãe que estava atônita ao meu lado.

    Eles entraram nessa hora: cinco seres medonhos. A pele deles era cinza, os olhos costurados e o corpo era humanoide. Tudo o que tinham para cobrir-lhes era um pedaço enegrecido de pano preto que um dia deveria ter sido uma calça. Agora, contudo cinza e desbotado. Os pés e a mão direita tinham garras e no lugar do antebraço esquerdo uma lâmina curva de uns sessenta centímetros enferrujada. A cabeça sem um fio de cabelo, não tinham orelhas e no lugar do nariz havia um buraco. Na testa deles uma marca: uma serpente envolvendo um triângulo. Cheiravam muito mal como se fossem feitos de carne podre.

    O que eram aquelas coisas bizarras? Eu me perguntei. E enquanto eu ajudava minha mãe a se levantar um deles se aproximou devagar mancando da perna esquerda e quanto mais perto ele chegava mais eu podia sentir seu cheiro nojento. Olhei para minha mãe e notei que ela estava prestes a desmaiar. Logo em seguida foi o que ela fez e eu tive dificuldade para amparar seu corpo inconsciente. Os outros quatro monstros acompanharam o primeiro e começaram a me cercar.

    O que eu faria? Não sabia. Um deles começou a lamber incessantemente os próprios lábios e eu fiquei enojada. Era repulsivo demais o que só fez o temor que eu sentia pela minha segurança e de minha mãe aumentarem. Um outro começou a bater os dentes como se estivesse com frio e um terceiro começou a balbuciar algo em uma voz rouca e grave quase como um grunhido:

    — Tenha... medo.

    Quem eram estes monstros? Não queria saber. Tudo que eu desejava naquela hora era ficar quietinha no meu canto com minha mãe! Em paz! Queria que aquilo tudo fosse apenas um sonho, distorcido e nefasto, mas um sonho! Mas não era. Era mórbido. O homem do crânio de pássaro saiu do meu pesadelo! A dor me apunhalou de forma severa. Minha aflição estava aumentando e me afastei daquelas coisas lutuosas. Estava em choque! Não sabia o que fazer!

    O homem do capuz virou sua cabeça para mim e tudo o que vi foram as orbitas vazias do pássaro morto. Seus olhos não estavam mais acesos. Minha mãe começou a recobrar a consciência. Eu a segurava muito mal com meu braço bom apoiando-me na parede para poder suportar seu peso. Ela então voltou a si e naquele único momento eu vi em seus olhos cor-de-mel abertos algo que jamais me esqueci.

    A presença viva do verdadeiro terror impresso neles quando uma das criaturas correu e a apunhalou com a sua lâmina que servia de braço. Um furo bem na cabeça do osso do rádio. Meu medo neste momento foi incinerado pelo ódio visceral que me inflamou por dentro ao ver minha mãe ferida. Bradei em agonia um grande NÃO! Me perdi então em raiva e frustação. Fagulhas de fogo surgiram indistintas em meus dedos e logo minhas mãos arderam e se incendiaram.

    Chamas correram em direção a criatura que tentou tirar minha mãe de mim e ela foi queimada. A coisa se debateu no chão e as chamas se espalharam no sofá da sala que começou a pegar fogo. As outras criaturas sentiram o calor aumentar e correram enquanto o homem do capuz não se mexia. A criatura que fora alvejada pelas chamas começou a urrar gritos medonhos de agonia por conta da dor causada pelo fogo até que parou de se mexer e quando dei por mim as chamas do sofá haviam se espalhado pela casa que agora estava pegando fogo

    Não queria saber, porém de nada: abracei minha mãe com as mãos apagadas agora, contudo testemunhei um incêndio se formar. Não podia acreditar em nada daquilo. Minhas mãos estavam normais de novo e tudo o que eu pensava não era na combustão delas e sim em minha mãe.

    Minha mãe... estava com os olhos pequenininhos e a ferida era... Céus profunda. Pus minha mão esquerda para estacar o... sim... o sangue. Ela estava pálida mais ainda estava... viva! Ela disse fraca:

    — Seu Apolônio.

    Como? Quem era seu Apolônio!? Precisava tirar ela dali, mas meu ombro doía muito. Droga! Não sabia o que fazer olhei em volta e a sala estava sendo lambida pelo fogo. Estava muito quente. A fumaça começou a surgir e a minha respiração estava falhando. Eu estava sufocando! Gritei:

    — Fogo!

    O homem encapuzado agora estava no lugar da porta. Ele não iria deixar eu sair? E os vizinhos!? Ninguém viria em meu auxílio? Pelo visto não. O homem começou a andar em minha direção. Ele parecia não ser atingido pelo fogo. Juntou-se a ele nesta caminhada nefasta a criatura que eu havia queimado. Agora ilesa como se nada tivesse acontecido com ela. Olhei para minha mãe e me perguntei se era assim que nossas vidas seriam ceifadas.

    Eu sabia que sim.

    Capítulo três

    Ausência

    Podia ouvir sua voz novamente sussurrando em meus ouvidos dizendo: Tenha medo Victória. Era a mesma voz inumana e feroz que eu ouvira momentos antes do ataque. Ela vinha do Homem do Capuz Negro. Como eu podia ouvir aquilo? Era uma espécie de telepatia. Ele ainda caminhava em minha direção calma e lentamente, mas sem emitir um som sequer.

    A criatura maléfica que golpeara minha mãe vinha logo atrás e o fogo se

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