Querubim
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Querubim - Idaleia M O Silva
Copyright © Editora Diversa, 2020
Todos os direitos desta edição são reservados à Editora Diversa. Sendo proibida a reprodução de qualquer parte dessa obra sem autorização prévia da editora.
Revisão: Naiara Gomes e Vanessa Gonçalves Capa e Diagramação: Adryelle Souza
Dados_Internacionais_de_Cataloga__o_na_Publica__o_(CIP)_G635_Gon_alves,_Vanessa_EVA__Vanessa_F._Gon_alves._–_1__edi__o_–_Esp_rito_Santo__Editora_Diversa,_2020Santa Leopoldina - ES
www.editoradiversa.com.br
diversaeditora@gmail.com
angel-2026878Dedico este livro ao meu pai,
que sempre me disse para
sonhar com os pés no chão,
mas nunca me impediu de voar.
Do pó viestes, ao pó retornaras
— Eclesiásticos 12:7
Ainda que eu falasse a língua dos anjos, que falassem a língua dos homens, sem amor eu nada seria
— 1 Coríntios 13:1
Capítulo 1
feathers-51471551Era fevereiro, início do ano letivo. Eu estava prestes a iniciar meu último ano no colegial. Elizabeth, minha melhor amiga, sempre vinha até minha casa às seis e meia da manhã em ponto para irmos juntas para o colégio. Elizabeth e eu nos conhecemos desde o jardim de infância. Minha mãe, Angelina, e a mãe dela, Carmem, a quem eu chamo carinhosamente de tia, são amigas íntimas, elas abriram uma floricultura juntas. Mamãe cultiva rosas de todos os tipos na nossa casa. Tia Carmem, mãe de Elizabeth, também é apaixonada por flores. Ambas largaram seus empregos de arrumadeiras em um hotel na nossa cidade e resolveram investir no ramo da floricultura. Às vezes, eu e Elizabeth ajudamos nossas mães, eu adoro ficar com a parte de cuidar das flores, já Elizabeth, gosta mesmo é de vender, ela tem uma ótima lábia e consegue convencer qualquer um a fazer o que ela quer.
Quando seu aniversário de quinze anos estava próximo, ela colocou na cabeça que queria uma festa de qualquer maneira, tia Carmem até tinha dito não, que a grana estava curta e que o pai de Elizabeth há muito tempo não depositava o dinheiro da pensão alimentícia, mas Elizabeth insistiu tanto e com o seu poder de persuasão fez tia Carmem fazer uma grande festa e se endividar no cartão de crédito. Os pais de Elizabeth se divorciaram quando ela tinha dez anos.
Eu me chamo Bianca, ao contrário de Elizabeth nunca gostei muito de coisas grandiosas, na verdade, nunca nem mesmo gostei de ir em festas. Tenho dezessete anos e estudo no mesmo colégio a minha vida inteira. Sou uma menina alta e magra. Meus longos cabelos são uma promessa que mamãe fez quando eu nasci por causa de uma complicação no parto. Então eu não os corto. Pelo menos não até fazer dezoito anos e ficar livre dessa promessa. Meus olhos são castanhos como os de minha mãe, a quem também puxei os cabelos pretos.
Sonho em algum dia conhecer meu pai. Mamãe diz que ele foi embora quando ela contou que estava grávida e ela nunca mais teve notícias dele, nem ao menos uma foto, então eu não faço a mínima ideia de como ele seja.
Hoje é o primeiro dia de aula, depois de um longo período de férias de dois meses. Eu sinto falta da escola quando estou em casa, não que eu seja uma nerd e sim porque em minha cidade não tem biblioteca e estando na escola posso passar uma boa parte do meu tempo lendo os meus livros favoritos. Sou tão apaixonada por livros quanto minha mãe por flores.
Moramos na pequena cidade de Santa Cecília, interior de Minas Gerais, mas minha mãe nem sempre morou aqui. Ela veio para cá depois que ficou grávida de mim, depois de meu pai abandoná-la e meus avós a expulsarem de casa porque estava grávida. Eu só vi meus avós uma vez, no natal, quando eu tinha nove anos. Eles vieram da cidade natal de minha mãe, Florianópolis. Me encheram de presentes e nunca mais voltaram para me ver, e tenho desconfiança que minha mãe os proibiu de voltar, ela nem sabia ao certo como eles haviam a encontrado, já que nunca tinha telefonado e nem escrito para eles.
Elizabeth já estava na mesa da cozinha da minha casa, esperando para irmos juntas para a escola. A maioria das vezes ela tomava café com a gente. Hoje mamãe tinha feito um bolo de cenoura com calda de chocolate, meu favorito.
— Deixa um pouco para mim — disse enquanto Elizabeth já estava cortando mais uma fatia.
Elizabeth é um pouco acima do peso e tão alta quanto eu, também tem mais curvas do que eu e sempre pôde usar uma blusa mais justa e uma calça mais colada, como as que estava usando naquela manhã. Ela tem os olhos verdes mais astutos do mundo e uma voz tranquila e doce.
— Se tivesse acordado mais cedo, já teria comido o seu pedaço — disse enquanto lambia os dedos lambuzados com a calda de chocolate.
— Eu acordo cedo, mas você madruga e ainda nem são seis e meia da manhã — disse olhando para o velho relógio pendurado na parede da cozinha.
— Meninas, acho melhor vocês irem andando, sabem que o ônibus não espera — disse mamãe aparecendo sorrateiramente na cozinha. O cabelo preso em um coque frouxo e sua tradicional roupa de corrida. Mamãe fazia sua corrida matinal todos os dias antes de ir para a floricultura.
Dei uma mordida na minha fatia de bolo e um gole no meu copo de leite.
— Só um minuto — disse para Elizabeth. Precisava escovar meus dentes.
Sr. Geraldo era o motorista do ônibus que nos levava para a escola. Um senhor muito simpático que tinha uma enorme barba. Se fosse grisalha poderia ser comparado ao papai Noel.
Nossos lugares de sempre estavam disponíveis, então eu e Elizabeth nos sentamos. Todos os outros alunos estavam ali. Todos os rostos conhecidos. Nada havia mudado até então.
— André está olhando pra você — falei para Elizabeth.
André era seu crush. Um garoto magro e loiro. Até que bonitinho, mas não era o meu tipo. Já Elizabeth era louca por ele desde quando estávamos no quarto ano. Ele era muito tímido e por isso não tínhamos como saber se o sentimento era recíproco. Porém, em alguns momentos como este eu o flagrava olhando para ela, e rapidamente desviando o olhar. Era até meio divertido de observar, já que Elizabeth também não tinha coragem de falar com ele como se sentia. Passamos boa parte das férias falando sobre André. Até íamos na pracinha do bairro para vê-lo andar de skate quando não estávamos na floricultura ajudando nossas mães.
— Não olha. Sabe que ele é tímido — disse Elizabeth, ela mesma virando meio de lado para dar uma olhada.
— Devia falar com ele.
— Olha quem fala. Gustavo também é louco por você, e você já pensou ao menos em dar uma chance a ele?
Gustavo era o amigo de André. Ambos eram skatistas e também estudavam na mesma turma que eu e Elizabeth. Ele é uma gracinha. Tem lindos olhos pretos e o cabelo está sempre com uma mecha de alguma cor esquisita, hoje estava azul. Ele também tem um piercing no nariz, uma pequena argola. O tipo de garoto que minha mãe nunca aprovaria. Então para quê deixar me envolver? Essa era a pergunta que eu me fazia, mas na verdade eu não confiava nos garotos. Minha mãe havia sido abandonada grávida quando tinha a mesma idade que eu. Claro que eu não diria nada disso a Elizabeth, apesar de achar que talvez ela já soubesse.
— Ele nunca veio até mim dizer que estava a fim, eu é que não vou dizer — disse simplesmente.
— Vai dizer que não acha ele um gato?
— Ele é bem bonitinho.
— Bonitinho? Aquele piercing que ele usa no nariz é um charme. Uma pena minha mãe não me deixar colocar um. Ainda bem que faço dezoito anos ano que vem.
Dei uma breve olhada para trás e percebi que tanto Gustavo quanto André olhavam em nossa direção. Dei um sorrisinho e olhei novamente para frente.
— Eles continuam olhando. — Eu disse.
— Pare de olhar. Eles vão ficar constrangidos.
Então ela olhou também. E nós duas começamos a rir, um pouco alto demais. Sr. Geraldo nos olhou tentando imaginar o que poderia estar acontecendo. Éramos as únicas que mantinham uma conversa além de Gustavo e André, os outros alunos estavam ocupados demais com seus tablets e smartphones.
Enfim estávamos de volta à escola João Teodoro, em homenagem a um professor que também era o fundador da escola. Elizabeth e eu nos encaminhamos até a secretaria, onde estaria uma lista com os nomes dos alunos e o número da sala em que estavam. Ficamos eufóricas ao saber que mais uma vez estávamos na mesma sala.
Enquanto nos abraçávamos vi pelo canto do olho um garoto se aproximando. Usava preto. Caminhava elegantemente, incrivelmente alto, cabelos escuros e belos olhos azuis.
— Quem é? — perguntou Elizabeth olhando para o mesmo garoto.
— Não faço a mínima ideia — respondi desviando meu olhar.
— Tem uma babinha escorrendo aqui — disse Elizabeth passando o dedo no canto da minha boca.
Dei uma breve olhada no lindo garoto, ele usava fones de ouvido e mal notou que estávamos o encarando. Conferiu seu nome na lista e saiu rapidamente, provavelmente para a sua sala de aula.
Capítulo 2
feathers-51471551Quando chegamos à nossa sala, Elizabeth e eu nos sentamos próxima uma da outra como fazíamos desde o jardim de infância. O garoto lindo de olhos azuis estava na nossa turma também. Ele sentou no fundo da sala, bem distante de todos. Percebeu que eu olhava para ele e ficou me encarando, seu rosto muito sério. Desviei meu olhar e percebi, quando Gustavo se sentou atrás de mim com André ao seu lado. Elizabeth deu um largo sorriso ao perceber a presença dos garotos e piscou para mim. Eu a ignorei e olhei novamente para trás, onde o garoto de preto e lindos olhos grandes e azuis se encontrava, porém ele estava muito centrado escrevendo algo em seu caderno. Voltei minha atenção para Elizabeth que acabara de colocar um bilhetinho na minha mesa.
Abri o bilhete.
Você acha que os garotos se sentaram aqui para ficar perto da gente?
.
Suspirei e escrevi:
Não faço a menor ideia.
Coloquei o bilhete em sua mesa, ela não teve a chance de responder porque a professora nova havia acabado de chegar.
— Bom dia, pessoal. Eu sou Marlene, a nova professora de português.
Marlene era muito elegante, usava um colar de pérolas e um brinco de argolas. Seu cabelo estava cortado no estilo Chanel, preto e liso, as unhas bem compridas pintadas de vermelho vivo.
— Vamos abrir o livro na página cinco — disse a professora Marlene.
Enfim, depois de duas aulas de português e uma de geografia estávamos no intervalo. Sentei-me no corredor que havia no pátio da escola, Elizabeth ao meu lado comia uma maçã.
— Acho que Gustavo e André estão vindo para cá — disse apontando na direção dos garotos que se aproximavam.
— Olá, meninas. Podemos nos sentar aqui com vocês?
— Claro. — Elizabeth se apressou em responder. Seu rosto ficando levemente corado.
— E, então, estão gostando dos novos professores? — perguntou Gustavo, olhando diretamente para mim.
— A professora Marlene parece ser bem legal — respondi.
— O que vocês acham de fazermos alguma coisa hoje à noite? — perguntou André, sentando-se ao lado de Elizabeth, que a esta altura já havia acabado de comer sua maçã.
— Eu acho ótimo, o que tem em mente? — perguntou minha amiga.
— Eu não posso sair hoje, tem um novo carregamento de orquídeas chegando na floricultura e eu preciso ajudar mamãe — respondi abrindo minha latinha de refrigerante.
Gustavo começou a falar alguma coisa, mas não prestei atenção. O lindo garoto de olhos azuis se aproximava conversando com uma garota magra, alta e muito bonita por sinal, seus longos cabelos cacheados se balançavam de um lado para o outro. Não a reconheci, provavelmente outra aluna nova. O garoto mal nos notou, sentou-se com a menina bem afastados de nós.
Gustavo não percebeu que eu me distraíra e continuou seu monólogo.
— E aí, você topa ou não? — perguntou ele.
— O quê?
— Não estava prestando atenção em nada do que eu disse?
— Desculpe, mas não. Estou aqui pensando nas orquídeas que vão chegar mais tarde — menti.
— Ele estava te convidando para ir ao shopping no próximo fim de semana — disse Elizabeth me dando uma leve cutucada na costela.
— Desculpe a Bianca, ela está muito distraída hoje — continuou Elizabeth.
Não precisei me defender, o sinal tocou nos lembrando que já era o momento de voltar para a sala de aula.
— Vamos — peguei Elizabeth pelo braço e a saí puxando.
Os garotos nos acompanharam.
A próxima aula era de história, minha matéria favorita, com o professor Cícero. Já havíamos tido aula com o professor Cícero dois anos seguidos.
— Vejo que temos dois alunos novos este ano. Queiram se apresentar, por favor — pediu o professor.
Vi que o garoto de olhos azuis se levantou e começou a falar. Até então eu não tinha percebido a garota de cabelos longos ao lado dele.
— Meu nome é Murilo, sou de Portugal. Não sei por quanto tempo ficarei no Brasil, mas estou adorando conhecer as pessoas daqui, são muito hospitaleiras.
Ele tinha um leve sotaque e uma voz linda, condizente com o seu rosto.
A menina se levantou e começou a se apresentar também.
— Eu sou Tália, também venho de Portugal e estou super encantada com essa cidadezinha muito simpática.
Droga, a voz dela também era muito bonita. Se ela estava com Murilo eu não tinha a menor chance... Um aviãozinho de papel pousou em minha mesa, imaginei que seria de Elizabeth, mas não era.
Sábado à noite minha banda cover vai tocar na praça de alimentação do shopping, gostaria muito que estivesse lá
. G
Era de Gustavo, já devia ter imaginado, já que Elizabeth não fazia aviõezinhos de papel.
Dobrei o bilhete e coloquei no bolso da calça jeans. Olhei para Gustavo que aguardava uma resposta e concordei com a cabeça. Concordar seria a única forma de ele me deixar em paz.
Quando olhei para trás percebi que Murilo me encarava. Tímida como sou, apenas me virei para frente e comecei a prestar atenção no professor, que falava