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a lua ao avesso
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E-book505 páginas6 horas

a lua ao avesso

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Sobre este e-book

A lua ao avesso traça o arco da vida de uma mulher desde sua infância no Nordeste do Brasil atingido pela seca, em meados da década de 1940, até seu casamento e migração para ajudar a construir a nova capital, Brasília. Da visão esperançosa do futuro para a realidade brutal da ditadura

IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de set. de 2022
ISBN9798985825435
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    a lua ao avesso - Justine Strand de Oliveira

    PARTE I

    1945

    10 de setembro, segunda-feira

    É a época das chuvas. O rio está cheio, largo o suficiente a ponto de ser necessário um barco para atravessá-lo. Ele corre ruidosamente por entre pedras e seixos, carregando meu coração em sua corrente. O cheiro de rocha-terra-chuva preenche o ar à medida que o vapor sobe das margens do rio. Tudo é verde. Estou andando de bicicleta, deslizando e gargalhando. O sol está bem alto e não há nuvens no céu. Eu não tenho uma bicicleta. Eu não sei andar de bicicleta. Para o alto! Meu coração se enche. Estou voando, voando baixinho acima da água, serpenteando e girando. O canto dos pássaros se mistura com a música da água: gorjeios, chilreios, assobios. Desço. Para baixo, mais baixo, escondendo-me entre as cobertas. Os pássaros me chamam.

    Eva, acorde! Pegue seu irmão! Cacilda já chega com o leite!

    Enfio os pés nos chinelos e me arrasto até o berço de Samuel. Ele está de pé, segurando as barras da grade, saltando para cima e para baixo.

    Venha cá, rapazinho. Você está ensopado, vamos trocar essas fraldas? Daqui a pouco você vai ter que abrir mão desse berço, o novo bebê vai chegar em breve. Ele agarra meu cabelo quando o pego nos braços. Tiro sua fralda encharcada e o coloco na cama. Ele mexe as pernas e sopra bolhas de cuspe enquanto o troco.

    Pego Samuel e vamos para a cozinha; eu adoro carregá-lo para onde quer que seja. Ele é minha grande boneca viva e eu adoro apertá-lo e beijá-lo. Às vezes meu coração está tão cheio desse amor que eu não resisto e belisco suas bochechas, e o amor é tão forte que ele chora pelo beliscão e Mainha me repreende. Eu amo aquele cheiro de leite de bebê quando acaricio seu pescoço e sinto o aroma de sua doçura. Samuel não mama mais no peito porque Mainha precisa manter-se forte para fazer leite para o novo bebê.

    Cacilda está na cozinha, mexendo o leite no fogão a lenha para livrá-lo de impurezas.

    Oi, Cacilda. Tudo bem?

    Cacilda abre um sorriso. Tudo, Eva.

    Cacilda não é muito mais velha que eu, mas ela não sabe que idade tem. Tenho quase oito anos, talvez ela tenha entre onze e treze. Sua família vive em uma casa de taipa sem janelas, com apenas um único cômodo. Ela trabalha para Mainha ajudando com as coisas da casa e do jardim em troca de dinheiro e refeições. Ela não frequenta a escola. O pai dela não acredita que meninas devam frequentar escolas.

    Eu sim. Painho acredita que todos deveriam aprender a ler, escrever e fazer contas. Ele conseguiu um bom emprego nos Correios porque ensinou a si mesmo a ler. E agora que lê e faz contas, ele entrega correspondências de Natal a Recife, passando por todas as vilas e cidades no caminho, montado a cavalo. Faz duas semanas que ele partiu e deve voltar amanhã. O nascimento de minha nova irmã (porque eu quero que seja uma menina) é aguardado para daqui a três semanas.

    O café está pronto. Pão, queijo fresco, bolo de mandioca, manteiga, geleias de frutas e inhame cozido no vapor são colocados à mesa. Daniel entra na cozinha aos esbarrões esfregando os olhos. Ele gosta de dormir até tarde e fica irritadiço de manhã até se acostumar a estar acordado. Tem sete anos e vamos à escola juntos todos os dias.

    Em seguida aparece Ana, de cinco anos, e Paulo, que tem quase quatro. Eles se sentam à mesa e eu sirvo cada um deles um copo de leite quente com achocolatado em pó. Mexo a mistura até esfriar antes deles beberem. Eles pegam pão e pedem por manteiga e geleia.

    Crianças, não comam apenas pão e doce. Cacilda, Eva, coloquem uns inhames nos pratos deles. O inhame é amassado e misturado com manteiga. Todos comem. Mainha diz que aquela hora de sossego quando todo mundo está comendo a deixa muito feliz. Ela se senta ao lado de Samuel e pega uma colher pequena para alimentá-lo. Para por alguns segundos fitando o chão. Então olha para cima e respira fundo.

    Eva, meu anjo, você pode dar essa comidinha para o Samuel? Ela se encosta no espaldar da cadeira e fecha os olhos.

    Mainha, você quer que eu prepare um prato para a senhora?

    Não, querida, eu vou comer num instante. Só preciso descansar uns segundos.

    Nós acabamos o café da manhã e eu ajudo Cacilda a tirar a mesa e lavar os pratos. Ela atiça o fogo e coloca no fogão uma panela de ferro cheia de ossos, pontas de cenoura e cascas de cebola; Mainha não desperdiça nada. Eu amo o cheio do caldo à medida que ele ganha corpo e se torna mais forte. Painho diz que Mainha poderia fazer sopa com pedras que ficaria deliciosa.

    Cacilda e eu saímos para nossas tarefas matinais. Ela bombeia água do poço e eu coloco os restos de comida para os porcos e procuro ovos pelo quintal. As galinhas gostam de ser espertas e escondê-los onde não posso encontrá-los. Uma manga acabou de cair do pé e eu não resisto. É setembro, perto do fim da estação das mangas.

    Eva! Está quase na hora de ir para a escola! Olhe pra você, toda suja de manga! Vá se levar e me traga um pente para arrumar seu cabelo. A professora não vai gostar se você se atrasar.

    Lavo o rosto e os braços na bomba d’água, enxáguo a boca e enxugo olhos e nariz. Corro para dentro da casa, pego o pente e sento no chão em frente à cadeira de Mainha. Ela penteia meu cabelo e o trança. Eu amo ter meu cabelo penteado. Como o tempo é curto, só dá para fazer uma única longa trança. Meu cabelo está ficando bastante comprido. O Pastor diz que meninas não devem cortar o cabelo. O cabelo de Mainha já passa da cintura. Ela amarra a ponta da minha trança com um pedaço de pano. Enquanto me preparo, Daniel espera à toa, indolente.

    A bênção, Mainha, Daniel e eu pedimos ao mesmo tempo.

    Deus te abençoe, minha filha. Deus te abençoe, meu filho. Bons estudos!

    Daniel e eu subimos a estrada de terra em direção ao centro da cidade. O sol está alto e já faz calor, embora sejam apenas sete da manhã. A poeira dá voltas e impregna nossos sapatos. Atravessamos a ponte. O rio Picuí é apenas um fio d’água. Temos sorte de ter um poço de água doce. Muitas pessoas estão deixando o sertão para tentar encontrar trabalho nas cidades do sul. Painho me disse que os animais dessas famílias estão morrendo de fome e de sede. Ele diz que sem comida e sem trabalho, famílias inteiras marcham para o sul em busca de uma vida melhor.

    Daniel e eu passamos pela grande igreja na praça central. A torre é tão alta que acho que sua cruz pode tocar o céu. Nossa igrejinha é muito humilde e não tem nem torre nem cruz porque Painho diz que isso é vaidade. Devemos temer a Deus. Uma igreja chique é como tentar se igualar a Deus, coisa que o homem não deve fazer, diz Painho.

    Entramos no pátio da escola. A professora está chamando as crianças para a sala de aula no momento em que chegamos. Tomamos nossos lugares nos bancos. Somos dezesseis ao todo, com idades diferentes. Quando a professora entra, todos nós nos levantamos. A bandeira e o mapa do Brasil estão pendurados na parede e viramos na direção deles para, com as mãos colocadas sobre os peitos, cantarmos o Hino Nacional. As crianças mais novas apenas cantarolam porque as palavras são difíceis. Ao lado do mapa do Brasil há um mapa do nosso estado, a Paraíba. A Paraíba é um pedaço pontudo do Brasil que fica mais para dentro do Oceano Atlântico, mais próxima da África, ainda que não tão próxima assim...

    Somamos e subtraímos, as crianças mais velhas fazendo tabuadas, as mais novas trabalham com números e operações mais fáceis. Depois, recitamos um poema que havíamos aprendido:

    Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá...

    A professora entrega os livros e nos diz para abrirmos na página 15. Viro as páginas e meu coração começa a bater mais forte. Nós já havíamos começado a ler aquela história. A professora pede a uma aluna que comece a ler do topo da página. Ela lê em voz alta. Estou ouvindo, mas também estou tentando encontrar as palavras que ela está usando. As letras dançam na página. Quero lê-las, mas elas são um mistério que não consigo resolver.

    Muito bem, Maria. Eva, você pode continuar a leitura.

    O momento que eu temia. Eu não posso continuar. Não consigo ler. Começo a contar uma história que pudesse fazer sentido, imaginando o que poderia acontecer a seguir.

    Eva! Eu não pedi para você inventar uma história, eu pedi para que você lesse. Suas mãos estão cerradas, os nós dos dedos sobre a mesa. Consigo sentir o cheiro do café em sua respiração quando ela se inclina sobre mim.

    E então? O que você tem a dizer? Estou perdendo a paciência. Todos os dias a mesma coisa. Você tem oito anos e é inteligente o suficiente para ler. Que rebeldia é essa? Ora, hoje não! Vá sentar lá fora e pensar no que fez.

    Eu seguro as lágrimas até chegar ao lado de fora. Quero chorar como quando você está tão triste que a água escorre dos olhos aos borbotões. Mas não vou. Engulo o choro e meu peito dói com o esforço. Eu quero muito aprender a ler, mas meus olhos simplesmente não funcionam. Painho aprendeu sozinho quando já era adulto. Por que será que eu não consigo? Lágrimas escapam dos meus olhos e escorrem pelas bochechas. Sinto meu rosto quente. Não consigo respirar.

    Eu me sento no banco do lado de fora da sala de aula olhando para a parede pintada de azul até a altura de minha cabeça e branco por cima. O chão foi limpo, mas pequenas pegadas de poeira caminham até a entrada da sala. Procuro pensar em alguma coisa que me distraia para não voltar à cena que acabara de acontecer. O tempo rasteja. Consigo ouvir as crianças respondendo à professora. E então, finalmente, o arrastar de bancos no momento em que todos se preparam para ir para casa.

    A professora vem ao meu encontro enquanto o restante dos alunos deixa o pátio da escola. Daniel está na porta, parecendo envergonhado. Sinto vontade de desaparecer.

    Eva, eu estou muito decepcionada com você. Já fiz tudo ao meu alcance, mas você continua se recusando a ler. Diga a seu pai e à sua mãe que quero conversar com eles. Agora podem ir.

    Daniel e eu caminhamos de volta para casa.

    Eva, não fique chateada. Logo logo você vai ler, eu sei que vai.

    Eu sufoco mais algumas lágrimas e coloco um pé na frente do outro até chegarmos em casa. O almoço está sendo colocado à mesa. Mainha nos manda lavar as mãos. Lavamos as mãos rapidamente, voltamos para a mesa e inclinamos nossas cabeças.

    Nosso Senhor, somos gratos por esta refeição e por nossas vidas. Abençoe este alimento para nossos corpos. Abençoe nossa casa e todos aqueles que amamos. Em nome de Jesus, Amém.

    Todos murmuram Amém e levantamos os rostos para nossos pratos. Mainha olha diretamente para mim.

    Eva! O que aconteceu, minha filha? Você andou chorando, tem algo errado?

    Eu engulo em seco e começo a respirar mais rápido.

    Mainha, a professora ficou brava porque eu não sabia ler. Eu tento, Mainha, mas não consigo! Eu olho baixo, encarando meus pés.

    Eva, você é uma menina inteligente e eu sei que você pode ir bem na escola. Por favor, pare de se preocupar agora e coma seu almoço, depois nós conversamos. Tudo bem?

    Sim, Mainha, obrigada. Eu começo a comer meu almoço lentamente.

    Depois da refeição nós lavamos a louça e limpamos o chão. As crianças mais novas se deitam nas redes da varanda para tirar uma soneca. Mainha observa Cacilda e eu a varrer e esfregar o chão, segurando a parte inferior de sua grande barriga e fechando os olhos.

    Não se preocupe, Mainha, nós cuidamos disso. A senhora sente e descanse.

    Quando a cozinha está limpa, Cacilda se deita no chão com o rosto voltado para a parede e dorme. Ela se acostumou a dormir no chão. Eu me sento junto à Mainha.

    Eva, eu te amo muito. Você é uma garota inteligente e muito boa, e nós vamos trabalhar juntas para te ajudar a ler. Eu acho que sua cabeça funciona de uma forma diferente, mas isso não significa que você não seja inteligente.

    Ela pega meu rosto entre suas mãos e me olha nos olhos. Suas mãos são quentes e macias e ela arruma um fio de cabelo fora do lugar colocando-o por trás de minha orelha. Beija minha testa e me abraça.

    Ô de casa! As palmas no portão da frente anunciam a chegada de alguém. Vamos até a porta e encontramos um homem vestindo roupas esfarrapadas e duas meninas se escondendo atrás de suas pernas. Minha mãe os cumprimenta.

    Como vai, senhor? E os seus filhos? O senhor é desta região? Para onde está indo?

    Nós somos do Norte. Estamos na estrada há uns dias. Espero encontrar trabalho na cidade grande.

    O senhor já almoçou? Entre, por favor, vamos preparar uns pratos de comida para vocês.

    Senhora, nós agradecemos muito. Muita gentileza sua.

    Mainha me manda acordar Cacilda e começamos a preparar uma refeição para os desconhecidos. Eles se sentam do lado de fora para comer, mas Mainha insiste que eles venham até o quintal e se acomodem à sombra da mangueira. As duas meninas são pequenas e magras, mas suas barrigas são grandes. O cabelo delas é ralo e de tom vermelho claro. Elas me observam com seus olhos grandes e escuros. Quando Cacilda traz os pratos, o pai manda que elas agradeçam, o que elas fazem baixinho, com a voz rouca. Elas começam a comer devagar, olhando ao redor enquanto comem. O pai mastiga lentamente, observando as meninas. Eles terminam o almoço. Mainha fala para eles descansarem um pouco.

    Obrigado, Senhora. Que Deus lhe abençoe pela gentileza. Mas precisamos seguir um pouco mais antes que a noite chegue.

    Pegamos os pratos e agora eles estão fora do portão, desaparecendo na estrada empoeirada a caminho do sul. Olho para Mainha.

    Mainha, a senhora sempre alimenta as pessoas que passam pelo nosso portão. Oferece pratos de comida e os trata como pessoas distintas.

    Jesus disse, aquilo que você faz por seus irmãos e irmãs menos favorecidos, você faz por mim. Aqueles eram nossos irmãos e irmãs em Cristo.

    As crianças estão de pé e brincam no quintal. O sol desliza para abraçar a noite no dourado suave do início da primavera. Cacilda e eu estamos ocupadas cuidando dos animais, tirando as roupas do varal para passá-las amanhã e assando bolo. Cacilda deseja boa noite e vai para casa.

    No começo da noite, fazemos um lanche de fim da tarde e é hora das crianças mais novas irem para a cama. Eu as coloco para dormir para que Mainha possa descansar. Painho estará aqui amanhã; eu sei que Mainha está ansiosa por seu retorno.

    Quando eu volto para a sala de estar, Mainha não repara em mim parada sob o umbral da porta. Ela está segurando a barriga com os olhos fechados, ofegante.

    Mainha! A senhora está bem?

    Seus olhos se abrem rapidamente e ela olha ao redor, a respiração desacelerando aos poucos.

    Eva, vá até a casa da Cacilda e peça ao pai dela que vá até a casa de Dona Severina pedir que por favor venha logo. O bebê está chegando!

    Ah, Mainha, você vai ficar bem? Estou preocupada!

    Vá, Eva, e não se preocupe. O bebê só quer chegar um pouco mais cedo!

    Agora a escuridão é total. Pego o lampião e corro para a casa de Cacilda. Coloco ele no chão e bato palmas várias vezes.

    Ô de casa! É a Eva! Minha mãe precisa de ajuda!

    O pai de Cacilda monta em seu cavalo e dispara na direção de Dona Severina. Corro para casa o mais rápido que posso com o lampião balançando e piscando.

    Encontro Mainha na cama, apoiada em vários travesseiros. Seu rosto está pálido e ela está suando muito. Eu sei o que fazer desde os nascimentos de Samuel e Paulo. Aqueço as brasas e acrescento mais lenha no fogão. Coloco água filtrada em uma panela grande para ferver. Subo em uma cadeira e desço o cesto com lençóis limpos. As coisas estão quase prontas quando Dona Severina chega a nossa casa.

    Eva, minha menina! Você é um prodígio! Eu sei o quanto sua mãe aprecia sua inteligência e esperteza. Agora corra na vizinha e diga a Dona Helena que preciso da ajuda dela.

    Vou até a casa ao lado para chamar Dona Helena e volto correndo. Dona Severina está organizando as coisas na cozinha.

    Eu quero te ajudar a cuidar de Mainha.

    "Não, querida, são muitas horas de trabalho. Está tarde. Sua mãe vai precisar de muita ajuda amanhã. Dona Helena está aqui para me ajudar. Agora vá descansar e dormir com os anjos que pela manhã eu te chamo para conhecer sua nova irmã ou irmão.

    Ela beija minha cabeça, faz um cafuné e sai em direção ao quarto de Mainha. Posso ouvir o murmúrio e a agitação das mulheres enquanto adormeço.

    Sonho outra vez com o tempo das chuvas. Tanta água no rio, o cheiro da terra molhada. A luz do sol na água, os pássaros e suas canções se misturando em meus sonhos enquanto me enterro nas cobertas. Alguém me chama baixinho.

    Eva, Eva, acorde! Venha pedir a benção à sua mãe!

    Eu afundo ainda mais nos sonhos e nas minhas cobertas.

    Eva! Acorde!

    Mas eu não acordo. A voz se mistura aos barulhos do sonho e continuo dormindo.

    11 de setembro, terça-feira, madrugada

    O choro de um bebê me desperta. Minha nova irmã nasceu! Eu jogo as cobertas para trás e corro para o quarto de Mainha. Dona Severina está na porta.

    Eu quero ver Mainha, e minha irmãzinha!

    Sua mãe está descansando, não deve ser incomodada. Seu novo irmão também precisa dormir um pouco.

    Irmão? Eu queria uma irmã! Deixe eu ver Mainha!

    Dona Severina parece cansada e está mais calada do que o normal. Sinto uma sensação estranha em minha barriga. Lágrimas começam a escorrer pelo meu rosto. Eu quero ver Mainha, mas acabo voltando pelo corredor escuro para o meu quarto e de volta à cama. As outras crianças ainda estão dormindo; o ritmo da respiração delas me acalma e adormeço.

    Quando acordo outra vez, ainda está escuro. Percorro o corredor silenciosamente em direção ao quarto escuro de Mainha. Não tem ninguém lá, mas há um cheiro estranho. Vou para a cozinha e a encontro também vazia. Olho pela porta para o quintal, onde pisca uma luz vinda do depósito. Ouço vozes rezando. As vozes ficam mais altas quando me aproximo da porta. A luz da lâmpada pisca; suaves murmúrios de mulheres chorando preenchem a atmosfera. Tenho medo daquilo que atravessar aquela porta possa revelar. Por que estão chorando?

    Entro no prédio. Nenhuma das mulheres percebe minha presença escondida entre as sombras. Há quatro delas lavando alguma coisa sobre a mesa, espremendo trapos em uma bacia.

    Não consigo respirar. Minha barriga começa a doer. O choro de um bebê faz com que uma mulher no canto se levante e pegue o recém-nascido nos braços para lhe dar de mamar. Onde está Mainha? O que essas mulheres estão fazendo?

    José estará em casa em breve. Precisamos prepará-la.

    Um grito de dor finalmente escapa do meu peito. Não! Cadê Mainha? Dona Severina interrompe seu trabalho e me descobre escondida junto à porta.

    Eva! Há quanto tempo você está aí?

    Não consigo conter os soluços e cada respiração me dói o peito, sinto frio.

    Cadê Mainha?

    Sua mãe está descansando com os anjos, Eva. Ela agora está com Nosso Senhor.

    Não! Mentira! Não! Ela está bem, está dormindo!

    Eva, sua mãe deu tudo de si para trazer seu irmão ao mundo, mas o esforço foi grande demais para ela. Seu pai vai chegar em casa em algumas horas. Precisamos deixá-la pronta para quando ele voltar.

    Onde está meu irmão?

    Dona Maria está cuidando dele. Ela ainda tem leite de seu bebê, vai ajudar seu irmãozinho a ficar forte e saudável.

    Corro até Dona Maria, sentada no canto. O bebê está mamando agarrado ao peito. Minhas lágrimas escorrem por sua cabeça macia. Ele parece perfeito. Meu coração está confuso, cheio de amor e tristeza. Talvez eu ainda esteja dormindo, talvez este seja um sonho ruim. Um daqueles sonhos em que a gente sabe que não pode ser real. Mas sinto frio e há essas vozes que cantam, que rezam, essas mulheres lavando alguma coisa na mesa. Minha mãe.

    Dona Severina me diz para não contar às outras crianças. Painho estará em casa esta manhã e ele deve ser o primeiro a saber. Cacilda chega, alimentamos as crianças e as mandamos brincar. Digo à Daniel que hoje não iremos à escola.

    Por que, Eva? Onde está Mainha?

    Ela está descansando com nosso irmãozinho. Agora quieto, termine seu leite.

    Eu quero ver Mainha, quero ver o novo bebê.

    Já já, Daniel. Dona Severina está com eles. Vá brincar lá fora com as outras crianças.

    Ainda parece um sonho. Minha barriga dói, não consigo comer. As crianças correm ao redor do quintal e agem com a alegria inconsequente das crianças. Dona Severina está com as outras mulheres no quarto de Mainha, limpando as coisas. O chão e a parede estão cobertos de sangue. Dona Maria levou o bebê para sua casa porque precisava alimentar os filhos. Ela dará de mamar ao meu novo irmão quando ele precisar.

    Olá, olá, cheguei!

    Painho está aqui. Dona Severina sai do quarto e corre para a entrada, encontrando Painho antes mesmo dele entrar pelo portão. Ele não se move, ela lhe diz algo calmamente. Painho geme e cai de joelhos na poeira, joga a cabeça para trás e chora em grandes soluços. Eu nunca tinha visto Painho chorar.

    Misericórdia, Senhor! Como pôde tirá-la de mim?

    Ele abaixa a cabeça e chora, segurando o rosto entre as mãos. O sol brilha forte, violento. Deveria estar chovendo, chovendo a cântaros. O céu deveria estar chorando por aquela vida perdida. Como é possível que as pessoas consigam seguir com suas tarefas diárias como se nada tivesse acontecido? As pessoas na rua se afastam, contornando a dor de Painho. Dona Severina tenta consolá-lo, mas ele continua aos prantos.

    O tempo passa. De joelhos, ainda na rua, Painho chora. Dona Severina, ao seu lado, reza baixinho. Então ele se levanta e atravessa o portão.

    Quero vê-la. Ele se vira para Dona Severina e ela o conduz através da casa, saindo pela porta da cozinha para o quintal. Observo da porta enquanto Painho entra no prédio do depósito. Ele fica lá dentro por um longo tempo. Quando aparece na porta, está enxugando as lágrimas e ofegando.

    Eva, junte as crianças na sala. Preciso falar com elas. Pode mandar Cacilda para casa. Dona Severina, a senhora fique aqui com ela. Venho falar com a senhora em seguida.

    Dona Severina assente e segue para o depósito. Vou buscar as crianças e digo a Cacilda que vá para casa e só volte amanhã. Todos estão em silêncio. Nos reunimos, as crianças, na sala de estar em muda união. Painho entra na sala.

    Meus filhos, a mãe de vocês foi ficar com o Senhor. Ela está no lugar da paz eterna. Seu novo irmãozinho está bem e com saúde, graças a Deus. Precisamos ser fortes e seguir em frente. É o que a mãe de vocês gostaria que fizéssemos. Agora vamos rezar.

    As crianças começam a chorar, tentam fazer perguntas, mas Painho apenas olha para todos e baixamos nossas cabeças.

    Pai Nosso que estás no Céu, esteja conosco neste momento de tristeza. Elevai nossos corações para vos louvar enquanto o Senhor recebe em vossos braços vossa amada serva para repousar para sempre em beleza e alegria. Dai-nos força para continuar com nossas vidas para vossa glória. Em nome de Jesus, Amém.

    Amém.

    Todos choram. Como pode haver tanta tristeza? Ontem estávamos felizes. Como vamos continuar? Painho tem razão em pedir ao Senhor que nos ajude a sermos fortes. Mas eu não vejo como isso é possível. Eu não disse adeus a ela. Eu não disse a ela o quanto eu a amo. Não acordei quando Dona Severina me chamou.

    Eva, venha para o quintal comigo, minha filha.

    Painho e eu mergulhamos no quintal ensolarado. Ele me guia até a sombra da mangueira.

    Eva, eu preciso que você seja forte. Você é a mais velha e eu preciso que você cuide de seus irmãos. Eu tenho que continuar a trabalhar, e você vai ter que deixar de ir à escola por um tempo.

    Sim, Painho, farei o meu melhor.

    Ele acena com a cabeça e caminha até o prédio do depósito. Ele e Dona Severina conversam baixinho. Dona Severina faz um gesto para mim. Eva, venha aqui, querida. Vá chamar os vizinhos para me ajudarem a preparar sua mãe, por favor. Seu pai vai buscar o caixão e providenciar o enterro amanhã.

    Eu faço o que me pedem, tropeçando no caminho de pedir as vizinhas que venham ajudar. Elas me abraçam e passam a mão na minha cabeça dizendo amabilidades.

    O sol se deita sobre o horizonte anunciando o fim do dia. Observo da porta do depósito o trabalho das mulheres vestindo Mainha. Ela está deitada em grandes pedaços de tecido e quando fica pronta, as faixas de pano são usadas para levantá-la e colocá-la no caixão. Uns homens chegam para levar o caixão até a sala de estar.

    Na cozinha, as mulheres se ocupam preparando café a servindo as comidas que as pessoas trazem à medida que chegam. As pessoas oferecem suas condolências a Painho e a mim; as outras crianças estão na cama. O pastor se junta ao grupo e oferece orações. Estou tão cansada que adormeço sentada. Mas não vou para a cama. Vou ficar com Mainha até que ela seja levada e enterrada.

    12 de setembro, quarta-feira

    Mainha foi ficar com Deus. Ela deixou este vale de lágrimas por um lugar melhor, para caminhar com Jesus às margens do rio no paraíso. Nós vamos à igreja hoje para pedir por sua alma e entregar seu corpo à terra. Preciso arrumar as crianças. Elas não entendem o que está acontecendo e ficam perguntando por Mainha. Eu mesma não entendo como ela pode estar morta. Mas preciso encontrar alegria por ela estar com nosso Senhor.

    Tudo está diferente. Eu me sinto triste mas não posso chorar porque preciso cuidar de meus irmãos. Cacilda veio trabalhar hoje, mas parece perdida; sem Mainha para nos guiar a casa está uma bagunça, apesar de nossos melhores esforços. A comida que temos é preparada e trazida pelos vizinhos. O bebê ainda não tem nome. Eu quero muito vê-lo mas ele está sob os cuidados de Dona Maria, que lhe dá de mamar.

    Painho está no quintal andando de um lado para o outro, olhando para o céu e rezando. Ele deve chorar à noite, quando não podemos vê-lo, porque seus olhos estão inchados e vermelhos. Ele não foi trabalhar porque estamos todos em casa com Mainha e vamos levá-la à igreja e ao cemitério hoje.

    Dona Severina volta para falar outra vez com Painho; eu me escondo na tentativa de ouvir a conversa, mas não consigo escutar tudo o que ela diz. Ela fala de sangue: tudo estava correndo bem e de repente muito sangue, impossível de estancar. Tudo acontecera muito rápido, Mainha não tinha sofrido. Meu irmãozinho tinha nascido antes do sangramento e da morte de Mainha. Painho mantém a cabeça baixa durante toda a conversa.

    Cacilda, Dona Severina e eu damos banho nas crianças e as vestimos com suas melhores roupas e calçados de domingo. Elas estão quietas e obedecem a tudo sem as reclamações e brincadeiras de costume. Painho sai de seu quarto trajando um terno escuro. Eu nunca o tinha visto usando aquele terno, a não ser pela fotografia pendurada na parede da sala, do dia em que ele e Mainha haviam se casado.

    Os homens da igreja vêm buscar Mainha. Painho não pregará hoje, Pastor Jônatas vai conduzir a cerimônia. Painho nos reúne em torno de si e saímos juntos pela porta da frente em direção à rua, seguindo os homens que carregam o caixão de Mainha pelas ruas até a igreja. As pessoas saem de suas casas e se juntam ao cortejo fúnebre, vestindo suas melhores roupas, caminhando em silêncio.

    Chegamos à nossa igreja. Entramos logo atrás dos carregadores, que depositam o caixão em frente ao altar. Sentamos juntos na primeira fileira. Os demais entram em fila e preenchem os bancos. A igreja está tão cheia que há pessoas em pé na parte de trás. Pastor Jônatas recita uma oração e em seguida começa a pregar. Ele fala de Mainha, de como ela era uma boa cristã, de como amava ao Senhor, seu marido e sua família, de como era justa nos caminhos de Deus e cuidava dos pobres. Os presentes murmuram em aquiescência. Ele fala de algo na Bíblia e de como bons cristãos são chamados para ficarem ao lado do Senhor. Eu não consigo prestar muita atenção ao que ele diz, olho para as vigas no teto e tento não pensar em nunca mais ter Mainha por perto.

    Todos se levantam para cantar um hino, as vozes enchem a igrejinha. Uma pequena banda toca enquanto as pessoas cantam. A pregação, as orações, o canto, tudo se mistura às minhas lágrimas. Então o culto termina e caminhamos debaixo do sol brilhante enquanto os homens carregam Mainha para o cemitério ao lado da igreja. Meus olhos congelam à vista do buraco escuro no chão, para onde o caixão é baixado. Painho joga o primeiro punhado de terra para dentro da cova e mais orações podem ser ouvidas.

    Todos se reúnem de volta no salão da igreja, onde grandes quantidades de comida foram colocadas. A banda toca hinos, as pessoas se servem pratos cheios e conversam enquanto comem. Eu não estou com fome, mas umas senhoras me preparam um prato. Sento-me na ponta da mesa com meus irmãos e irmãs enquanto todos conversam. Três mulheres estão falando de Painho.

    Ele pode estar chorando, mas naquele lenço tem um buraco e ele está de olho.

    Sim, já deve estar procurando uma substituta, sem dúvida.

    "Não

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