Moleque & Nhonhô: Uma história em preto e branco (a criança brasileira no período escravista)
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Moleque & Nhonhô - Geraldo Pieroni
1.
UM RETRATO EM PRETO & BRANCO
Este é um livro sobre crianças negras e brancas. Mais negras que brancas. Uma história em preto & branco e todos os tons do café-com-leite que tem por símbolo o peito negro donde jorra leite branco, da mãe-de-leite negra que amamentou crianças negras e brancas. Essa é a história que queremos contar.
A ideia deste livro tem uma origem acadêmica e já bastante distante. O ponto de partida foi quando o historiador Geraldo Pieroni, então mestre, hoje doutor, procura seu amigo Márcio Vianna para reescrever a Dissertação de Mestrado em linguagem acessível para um público mais amplo. Dali surgiu nosso primeiro livro conjunto: Os degredados na colonização do Brasil¹. Passados alguns anos, a história se repetiu, e novamente Pieroni convida Vianna para a tarefa de escrever em linguagem acessível uma história sobre Moleque e Nhonhô, os nossos protagonistas. Mais tarde, somou-se a essa dupla mais um integrante, Alexandre Martins, que também participou da escrita de outros dois livros com Pieroni, Boca maldita² e O olhar da época³.
A missão foi realmente reescrever em linguagem compreensível para um público não necessariamente acadêmico. Acreditamos que o texto a seguir nos ajudará a melhor compreender as relações sociais dos nossos protagonistas nascidos em terras brasileiras: negros, brancos e mulatos de todos as matizes. São eles nhonhôs, moleques, sinhazinhas e mucamas.
Dois prováveis nhonhô e moleque podem ter sido nosso primeiro ensaio de dupla caipira: dois meninos da porteira
, um negro outro branco, no sertão e na beira do rio, cantarolando músicas que iam aprendendo da infância, talvez arriscando duas vozes, ensinadas pela mãe negra e/ou pela mãe branca... músicas que se tornaram folclóricas, socializadas entre a casa grande e a senzala.
Contaremos aqui um pouco sobre as crianças brasileiras da casa grande e da senzala⁴ de uma época pouco antes e também um pouco depois da libertação dos escravos: Nhonhô
é o filho das brancas das casas grandes, e Moleque
é o filho das negras das senzalas.
Imagem 1. Ama de leite no traje das amas brasileiras da segunda metade do século XIX
Fonte: Gilberto Freyre. Vida social no Brasil nos meados do século XIX. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1985.
Notas
1. Pieroni, Geraldo; Vianna, Márcio. Os degredados na colonização do Brasil. Brasília: Editora Thesaurus, 1999.
2. Pieroni, Geraldo; Sabeh, Luiz; Martins, Alexandre. Boca Maldita. Jundiaí: Paco Editorial, 2012.
3. Pieroni, Geraldo; Jurkevics, Vera; Buena, Wilma; Martins, Alexandre. Olhar da época. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.
4. Freyre, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1987.
2.
MORRO VELHO
A letra da música Morro Velho⁵, do compositor e cantor Milton Nascimento, traz a realidade ao mesmo tempo do nhonhô e do moleque. Está ali descrito o cenário, estão ali personificados os protagonistas, está ali narrado, com primor poético, todo o roteiro também deste nosso livro!
Em Morro Velho temos três momentos bem distintos:
1. Nhonhô e moleque, crianças criadas juntas, muito juntas: Filho de branco e de preto correndo pela estrada atrás de passarinho, pela plantação adentro, crescendo os dois meninos sempre pequeninos. Peixe bom dá no riacho de água tão limpinha; dá pro fundo ver.
⁶
2. Já crescidinhos, nhonhô vai estudar fora, vai se preparar para ser doutor. E moleque continua na fazenda, não mais criança, mas agora se tornando projeto de escravo adulto... Filho do senhor vai embora... Tempo de estudos na cidade grande, parte! Tem os olhos tristes deixando o companheiro na estação distante. Não se esqueça amigo eu vou voltar! Foi longe o trenzinho ao Deus dará.
⁷
3. Tempos depois, nhonhô volta doutor
. Moleque continua escravo. E a distância entre os dois, agora é um abismo: Quando volta, já é outro. Trouxe até sinhá mocinha para apresentar. Linda como a luz da lua que em lugar nenhum rebrilha como lá. Já tem nome de doutor e agora na fazenda é quem vai mandar. E seu velho camarada já não brinca mais: Trabalha!
⁸
O que temos aí? Ora, os meninos nascem próximos, tão próximos quanto à distância pouca da casa grande à senzala. Se no início da vida de ambos a separação social parece pouca, considerando que brincam juntos, se alimentam ao mesmo peito, convivem proximamente nos primeiros anos de molequices, a distância social aumentará cada vez mais. No início, amigos, companheiros; depois, escravo e patrão.
Em determinada idade, as diferenças aparecem abruptamente! Quando, ambos um pouco maiores, o moleque já é força de trabalho potencial ou real, e nhonhô já começa a participar de alguma forma da vida social e administrativa da fazenda, aprendendo a comandar o seu território.
Como visto na música, vai acontecer que nhonhôs geralmente viajam para a capital ou até para o exterior, para sua formação acadêmica e quando voltam, voltam outro: um doutor! agora na fazenda é quem vai mandar
.
Nhonhô volta e é o patrão. Moleque, que nunca saiu muito além dos domínios da fazenda, continua o mesmo, e agora é alguém longe, lá embaixo, reduzido à mera categoria de mercadoria, um ser em estado de submissão, e só trabalha, e é vigiado e punido pela força dos opressores. Diferentemente do nhonhô, ele é privado de liberdade, é aquele que foi forçado a essa condição.
Pensando mais adiante, o abismo é tão grande, que podemos imaginar que na verdade, tornaram-se dois tipos de humanos diferentes, um, o Nhonhô, é aquele que será considerado mais humano
. Quando ele sofrer, outros humanos terão empatia e sofrerão junto com ele. Já o moleque, em compensação, é outro tipo de humano. A humanidade dele é vista como de segunda linha, é relativizada