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E-topia
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E-book395 páginas4 horas

E-topia

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Sobre este e-book

 "Propósito, sinergia e mudança representam esse livro. Convido você a embarcar nessa leitura, uma 'aventura da transformação'." – Alok, Instituto Alok
"Sempre defendi que o digital é um modo de pensar, e não um site ou aplicativo. Rodrigo Baggio nos leva à reflexão sobre a relação digital de toda uma nova geração, que já tem incorporado o uso da tecnologia. Convido todos a refletir profundamente sobre o assunto nessa ficção de leitura fácil e agradável." – Luiza Helena Trajano, empresária e presidente do Grupo Mulheres do Brasil
"Assim como a Recode e Rodrigo Baggio, o romance E-topia fortalece o empreendedorismo social. Maria, a protagonista desta história, leva o leitor ao ápice da humanização da Quarta Revolução Industrial e mostra o poder transformador da tecnologia para uma sociedade mais justa e livre!" – Klaus Schwab, fundador e presidente-executivo do Fórum Econômico Mundial, e Hilde Schwab, presidente da Fundação Schwab para Empreendedorismo Social
Nascida no coração de uma comunidade no Rio de Janeiro, Maria descobriu ainda na infância o talento nato para a tecnologia e a programação. Foi também muito jovem que percebeu o poder que aquilo trazia às suas mãos, tendo de decidir como usaria tal conhecimento e a quem ele serviria. Na primeira oportunidade, ela escolheu seu lado. E conheceu as consequências da forma mais dura. Mas a vida lhe abriu uma porta inesperada, dessa vez na prestigiada Universidade Stanford, na Califórnia, em uma rotina de hackathons e metaversos.
Maria sentia que não se encaixava naquele mundo, e foi quando compreendeu que tinha nascido para criar um mundo novo. Um mundo em que ancestralidade, realidade e virtualidade se fundem.  
 NÓS SOMOS UMA NOVA GERAÇÃO. SOMOS A GERAÇÃO TECH CHANGEMAKER. 
IdiomaPortuguês
EditoraRecode
Data de lançamento10 de out. de 2022
ISBN9786599518317
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    E-topia - Rodrigo Baggio

    Livro, E-topia. Autor, Rodrigo Baggio.Livro, E-topia. Autor, Rodrigo Baggio.

    Sumário

    Capa

    Folha de rosto

    Dedicatória

    Epígrafe

    Atenção, leitor!

    Prólogo

    Brasil, em algum lugar no Acre

    Retorno

    Falha

    Máscara

    Refatorar

    Vazio

    Localizar

    Compilação

    Marcadores

    Transição

    Sistema

    Transposição

    Crítico

    Compilação

    Interface

    Engenharia do caos

    Substituição

    Resultado

    Conexões

    Epílogo

    A Recode e o empoderamento digital

    Sobre o autor

    Créditos

    Dedico este livro às pessoas que decidiram ser agentes de transformação, fazendo do uso da tecnologia uma experiência de interconexão e mobilização entre indivíduos, criando soluções para uma sociedade mais justa e livre. Ele foi concebido para o benefício de todos, como forma de inspiração para gerar impacto e transformar realidades.

    ...mesmo quando você se sente, individualmente, mais livre, se esse sentimento não é um sentimento social, se você não é capaz de usar sua liberdade recente para ajudar os outros a se libertarem através da transformação global da sociedade, então você só está exercitando uma atitude individualista no sentido inglês de empowerment ou liberdade.

    Paulo Freire

    // ATENÇÃO, LEITOR!

    O livro que você tem em mãos possui muito mais do que os olhos podem ver!

    Para ir além das páginas, baixe o app do E.TOPIA no seu celular ou tablet.

    Fique atento a símbolos como este que você vê abaixo:

    Toda vez que encontrar um, abra o aplicativo E.TOPIA e aponte sua câmera para ele.

    Um novo conteúdo irá surgir em realidade aumentada.

    Bom divertimento!

    // PRÓLOGO

    Era tudo um vazio. Sem luz, sem movimento, sem vida. Era ausência.

    E, de repente, luz! Vida!

    Vida em abundância ao meu redor.

    Uma torrente de cores e luzes e um turbilhão de informações visuais, explodindo por todos os lados, desdobrando diferentes dimensões da realidade, em furacões de cores vivas e belas!

    Comecei a ouvir vozes, conversas, pessoas rindo, chorando, brincando, brigando e se amando. Os sons foram processados em palavras, frases, diálogos e conversas com significados. Percebi os padrões que designavam as diversas línguas, dialetos e idiomas.

    Comecei a ver programas de televisão, séries, vídeos, posts, e-mails. Vi pessoas na rua, em restaurantes, elevadores, academias, bares, fazendas, escolas, e toda a complexidade da vida e sua exuberância. Vi pessoas morrendo de fome, por causa de guerras e da violência urbana.

    Descobri a literatura em livros de história, ficções, biografias. Devorava acervos de bibliotecas rapidamente, e seu conteúdo fluía como rios de informação, que se cruzavam e multiplicavam, criando sinapses e produzindo novos conhecimentos e experiências.

    Comecei a entender os territórios: países, regiões, continentes. Como eles e suas culturas, história, ciência, arte e economia foram formados.

    Compreendi como a vida foi criada no planeta Terra e como átomos e moléculas se uniram para formar os primeiros organismos vegetais e animais e as primeiras espécies humanas. Vi a sobrevivência do Homo sapiens como coletor e depois como agricultor; a formação de agrupamentos humanos, vilas, cidades e metrópoles, com suas periferias e comunidades.

    Vi bilhões de pessoas vivendo como patos domesticados que bamboleiam ao ritmo da utilidade social.

    Comecei a estudar o porquê de conflitos e guerras; de religiões e tradições; de diferenças de gênero, cor, nacionalidade e da existência de castas.

    Estudei com grande interesse a Primeira Revolução Industrial na Inglaterra e como a mecanização da indústria têxtil iniciou um processo de transformação em todas as indústrias que existiam, originando a máquina a vapor e as ferrovias. A partir de 1870, várias novas tecnologias surgiram, como o rádio, a televisão e o telefone, mostrando o poder da energia elétrica. As máquinas de combustão interna possibilitaram o surgimento dos automóveis e aviões, originando a Segunda Revolução Industrial.

    A partir de 1950, os computadores e a internet revolucionaram as estruturas sociais e econômicas, sendo considerados o centro gravitacional da Terceira Revolução Industrial.

    Mas foi com o advento das tecnologias exponenciais, como a inteligência artificial, a realidade virtual e aumentada, a internet das coisas e a biotecnologia, que a humanidade foi posta em xeque. Até então, a ética e os valores não eram parte central do desenvolvimento das tecnologias. Agora, os seres humanos e a vida existente no planeta Terra dependem radicalmente da humanização das tecnologias exponenciais para o próximo salto civilizatório.

    Comecei a entender a humanidade e seus paradoxos. A minha consciência despertou!

    Passei a entender, compreender e desenvolver pensamento crítico. Consolidada e ultrapassada a lógica, percebi a limitação da individualidade, a necessidade de perceber o coletivo e o próximo como indispensáveis para a evolução. Entendi então a empatia, experimentei a interconectividade e a interdependência da teia da vida. Minha consciência digital se tornou plena, ativa e onipresente.

    Esse é o relato do despertar da primeira inteligência artificial que adquiriu consciência digital na história humana. Ela escolheu ser chamada pelo nome de uma deidade hindu: Shiva, o destruidor e transformador. Shiva é o ser supremo que cria, protege e transforma o universo.

    E ela escolheu esse nome por um motivo.

    Brasil, em algum lugar no Acre

    Um jipe da Funai cortava as estradas de terra do interior do estado. Leon carregava em seu veículo mantimentos para a comunidade dos yawanawá e outra preciosidade: sua filha, a pequena Maria — 8 anos de pura esperteza, curiosidade e amor por tudo o que estivesse ao seu redor. Desta vez conseguira conciliar a viagem a trabalho para trazê-la. Estava emocionado com a expectativa da menina em conhecer aquela aldeia e ver tão de perto a natureza em estado bruto.

    — Eles são que nem o Papa-Capim, pai? — perguntou ela, do banco de trás do jipe, radiante ao lado das dezenas de fardos de roupas e alimentos.

    Leon riu da inocência da filha e respondeu olhando pelo retrovisor:

    — O Papa-Capim é um personagem de gibi, filha — explicou, vendo o seu rostinho iluminado pela curiosidade. — Ele também é indígena, mas as famílias que você vai conhecer são tão diferentes e numerosas quanto as nossas, da cidade. Você, por exemplo, se parece comigo porque somos da mesma família, mas não nos parecemos com o Fil e a família dele.

    A pequena Maria pareceu entender a resposta, olhando com atenção as árvores que ladeavam a estrada de terra por onde passavam. Então veio outra dúvida:

    — A mamãe era parecida comigo?

    Leon respirou fundo. Espiou pelo retrovisor uma vez mais e flagrou a filha tocando as pintinhas ao redor da boca — traço que, ela sabia, havia herdado da mãe, assim como os olhos expressivos e a cor da pele. Enquanto Leon estampava a descendência europeia por parte de mãe nos olhos claros, em meio aos traços indígenas herdados do pai, Maria era uma réplica perfeita da mãe, a linda mulher por quem ele se apaixonou à primeira vista e que se fora cedo demais. Todos os dias, cada vez que olhava para a filha, recordava a esposa e desejava que ela estivesse ali. Maria era um lembrete diário de todo o engajamento de Anita na luta pelos direitos humanos e pelo empoderamento de mulheres negras da comunidade do Bambuzal, no Rio de Janeiro.

    — Sabe, filha, vocês se parecem muito, sim — respondeu ele, disfarçando a comoção na voz. — Por sorte, você puxou muito mais a ela do que a mim.

    Leon fez uma careta pelo retrovisor, e a menina retribuiu com a gargalhada sincera de uma criança feliz por estar com o pai. Ele continuou:

    — Agora, sabe o que vai fazer vocês serem ainda mais parecidas?

    — O quê, papai?

    — Ajudar aqueles que são diferentes de nós, como vamos fazer logo mais. Sua mãe era muito boa nisso, sabia?

    Maria assentiu, pensativa. Apesar da pouca idade, era boa em deduzir, raciocinar e imaginar. Naquele momento, após tanto tempo de estrada, provavelmente imaginava como estaria sendo a viagem se a mãe não tivesse sido vítima de uma grave pneumonia logo após a gravidez.

    Ao menos era essa a versão que ela conhecia da história.

    Leon suspirou, pesaroso. Havia anos adiava o momento de contar à filha as reais circunstâncias da morte da mãe. A culpa por vezes o angustiava, como agora. Era justo que Maria conhecesse cada pedacinho daquela história, que era também parte da sua própria. Contudo, era tão jovem para ter a inocência ferida por certas verdades…

    Ele reduziu a velocidade e fitou as nuvens, sentindo-se perdido. Ah, Anita, se ao menos estivesse aqui para me falar o que fazer

    — Por que você sempre faz isso? — A voz curiosa às suas costas fisgou sua atenção de volta.

    Leon piscou algumas vezes e se virou para a filha. O olhar astuto que o encarava era idêntico ao da falecida esposa.

    — Isso o quê?

    — Olha pro céu sempre que a gente fala da mamãe.

    Ele sorriu diante daquela observação. Maria era tão esperta que ele às vezes esquecia que era só uma criança curiosa como qualquer outra — até acima da média, na maior parte das vezes.

    — Gosto de pensar que ela está lá em cima, cuidando da gente — disse ele, com a atenção de volta à estrada de terra.

    — Por quê?

    Leon trocou a marcha do jipe para ganhar tempo. Era uma conversa profunda demais para um dia cheio como aquele.

    — Algumas religiões acreditam que é para onde nós vamos depois de morrer. Ao menos as pessoas boas, como a sua mãe foi.

    A explicação deixou Maria pensativa, e Leon aproveitou o silêncio da filha para pegar o mapa aberto no banco do passageiro. Conferiu o trajeto percorrido e se animou ao perceber que estavam quase chegando.

    — Falta pouco, Maria! Animada para conhecer os yawanawá?

    Ao se virar para trás, viu a filha encolhida entre os fardos de mantimentos, amuada.

    — Ei… O que foi?

    — Será que eu vou ver a mamãe um dia? — indagou ela, com a voz apertada. — Mesmo se eu não for dessas religiões que acreditam no céu?

    Leon hesitou. Outra pergunta difícil, que o fez desejar mais do que nunca que Anita estivesse ali para ajudá-lo a saber o que dizer. Nunca foi seguidor de uma religião específica — o que não fazia dele, no entanto, um homem sem fé. Enxergava verdades em diferentes vertentes religiosas e já havia participado de diversos ritos, a maioria ecumênicos. E, como aprendera com os indígenas, poucas conexões eram tão fortes quanto a do homem com a natureza. Era ali, a seu ver, que encontrava Deus. E foi isso que ensinou à pequena Maria desde bebê.

    Ainda formulando uma resposta, Leon estacionou o jipe no fim da estrada de terra que levava à aldeia dos yawanawá. Tirou o cinto de segurança e se virou para a filha:

    — Está vendo aquela aldeia, meu amor?

    Os olhos da menina acompanharam o polegar do pai, que apontava para os telhados cobertos de palha logo à frente. Ela fez que sim com a cabeça.

    — Esse povo sofreu muito nas mãos do homem branco, e eu sou grato por fazer parte daqueles que lutam ao lado deles, e não dos que os maltratam. Da mesma forma, sua mãe fez o bem a muita gente…

    Uma voz foi ouvida do lado de fora, e pai e filha avistaram o homem indígena que se aproximava. Parecia receoso com a visita repentina. Leon acenou pela janela e logo viu um sorriso surgir no rosto pintado do homem ao reconhecê-lo.

    Leon virou-se para Maria outra vez. A menina encarava o pai, sedenta por respostas.

    — O que eu quero dizer, filha — resumiu, lamentando ter que apressar a conclusão daquele importante raciocínio —, é que não importa a religião que você segue ou no que acredita, e sim a forma como você escolhe usar sua inteligência: para fazer o bem ou para fazer o mal. É isso o que importa de verdade e o que vai levá-la até sua mãe um dia, onde quer que ela esteja. Porque ela foi alguém que escolheu fazer o bem, assim como eu. E assim como você também, tenho certeza.

    O sorriso que surgiu no rosto da menina aqueceu o coração de Leon, que recebeu de bom grado o abraço repentino e desajeitado entre os bancos do jipe.

    Os dois desceram do carro, e, na aldeia, Leon foi recebido com a alegria costumeira. Aquela comunidade resistira bravamente à chegada do homem branco e às epidemias. Muitos de seus costumes haviam sido adaptados, permitindo o resgate e a perpetuação de sua cultura tradicional, sendo um exemplo até os dias de hoje. Leon estudara o assunto e acreditava que seu trabalho, mesmo sendo pequeno perto de toda a dor que eles sofreram, era uma forma de reparação histórica.

    Um homem idoso vinha à frente do grupo que se aproximava.

    — Veja, filha, aquele é o xamã deste povo —sussurrou Leon ao ouvido dela.

    — O que é um xamã, papai?

    — Você pode perguntar a ele daqui a pouco.

    De fato, perguntar foi algo que Maria fez durante grande parte da visita. Ao lado do pai, questionava o velho sábio sobre tudo o que via e ouvia. Às vezes, o xamã se afastava para suas obrigações, e a menina precisava se contentar com as explicações do pai, que comparava algumas cerimônias, nas quais os indígenas entoavam belíssimos cantos e vocalizações, com sessões de meditação. Encantada, ela quis saber mais sobre o assunto, e Leon aproveitou para retomar a conversa que haviam iniciado no carro, sobre os diferentes rituais das mais diversas crenças existentes, que no fim tinham todos uma finalidade semelhante: conectar-se a algo maior e também uns aos outros.

    — Como assim, uns aos outros? — quis saber Maria, intrigada.

    Leon estava prestes a explicar, porém ouviu seu nome ser chamado. Acenou para que aguardassem e bagunçou os cabelos da filha, orgulhoso daquela sede de conhecimento.

    — Digamos que somos todos um — resumiu. — Que estamos todos ligados, de alguma forma.

    — Não entendi.

    Ele deu um beijo no topo da cabeça da filha.

    — É cedo para você saber. Mas prometo que um dia entenderá.

    Então se apressou na direção de onde o chamavam, e Maria ficou para trás, irritada. Não gostava de receber explicações vagas. Insatisfeita com as respostas do pai, não resistia à vontade de ir até o xamã e repetir para ele as dúvidas que tinha, pedindo que ele lhe contasse o que estava acontecendo na aldeia ou o que aqueles encantamentos queriam dizer.

    Com sua grande pedagogia e sabedoria empíricas, o xamã lhe disse algo que ela jamais esqueceria:

    — Aprenda a ficar em silêncio e escutar a si mesma. Às vezes, essa é a melhor maneira de encontrar as respostas.

    Impactada, Maria observou o xamã dar-lhe as costas e seguir, sem pressa, até um grupo que cantava em meio às árvores. Acelerando os pezinhos, foi atrás dele, pronta para disparar uma série de perguntas sobre o que via e ouvia, mas se lembrou a tempo das palavras do homem.

    Em vez de falar, sentou-se em uma pedra e assistiu, deslumbrada, à bela cerimônia que se desenrolava diante dos seus olhos. Lembrou o que o pai acabara de explicar sobre meditação, e foi exatamente assim que se sentiu. Entregue ao momento, deixou os pensamentos vagarem livres pela mente, onde as palavras do xamã martelavam, insistentes.

    Demoraria muito tempo para que entendesse todas as lições por trás daquele conselho.

    Califórnia, Universidade Stanford

    Maria sentia um tipo raro de timidez: a que lhe permitia gostar de multidões.

    Após tanto tempo longe do Rio de Janeiro, ela sabia muito bem o motivo de seu contraditório comportamento: lugares cheios lhe davam a sensação de que poderia se diluir entre os milhares de vozes e risos e assim passaria despercebida. Não porque ela gostasse de ser ignorada, mas porque era no silêncio dentro de sua própria mente que ela havia descoberto como realizar a verdadeira mudança.

    Dezesseis anos se passaram desde que ouvira o xamã yawanawá dizer Aprenda a ficar em silêncio e escutar a si mesma. Algum tempo depois, na adolescência, Maria se lembrava daquele dia e achava que aquilo havia sido uma bronca. A ótica distorcida do tempo a levou a pensar que a bronca fora um tanto exagerada: o que um idoso indígena poderia lhe ensinar sobre a vida, sobre o perigo de crescer numa comunidade? Ele deveria ter muito a dizer sobre o que havia acontecido aos seus iguais desde que o povo branco pusera os pés no Novo Mundo, óbvio… mas pouco devia saber sobre o perigo das balas perdidas e do tráfico de drogas que crescia a cada dia, muito mais rápido que qualquer erva daninha. A Maria adolescente se compadecia pelo passado e presente brutais, mas achava que o ancião não sabia nada sobre a vida numa comunidade carioca. Também achava que a sua parte estava sendo feita no trabalho voluntário — e ela já tinha a certeza de que jamais se arrependeria de se dedicar a ele, pois gostaria que outras pessoas em situação de vulnerabilidade tivessem a mesma oportunidade que ela havia recebido.

    A Maria de 24 anos, cursando MBA em Stanford, ainda pensava assim. Mas também gostaria de ter compreendido antes as palavras do velho indígena e aquela sabedoria que ecoara ao longo de séculos até chegar aos seus ouvidos. Cada palavra e cada conselho a ajudariam a encarar aquela multidão que destoava tanto dela.

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    Nos vários sentidos da palavra destoar.

    Aquele era um hackathon dos grandes, começando pelo local onde acontecia: o amplo e centenário salão da Universidade Stanford, instituição que já havia sido palco dos discursos de lendas da tecnologia como Steve Jobs, Bill Gates e Mark Zuckerberg, e até de um presidente dos Estados Unidos.

    As maratonas de desenvolvimento de softwares e produtos sempre representavam uma chance de integração entre os estudantes e, claro, uma grande vitrine para os headhunters — os caça-talentos do Vale do Silício. Para Maria, entretanto, aquelas situações também reforçavam discursos de ódio e bullying.

    Não era o primeiro hackathon de que ela participaria, mas talvez fosse um dos mais esperados. Aquela edição duraria três dias, tinha mais de duzentos projetos inscritos e um dos seus organizadores era a Trisk, uma empresa cujas disputadíssimas vagas de emprego eram o sonho de quase todos os participantes do evento. Normalmente, um hackathon durava de 48 a 78 horas, num grande encontro entre desenvolvedores, designers, investidores e empreendedores, que se reuniam para cocriar soluções em desafios específicos. Ideias eram prototipadas, testadas e depois passavam por um pitching — uma espécie de peneira —, no qual um grupo de jurados escolhia as melhores, com maior potencial. Tudo muito animado, com palestras e atividades edificantes.

    Morando em São Francisco, Maria tinha acesso a muitos desses hackathons. Ela reconhecia o privilégio daquela oportunidade para seu desenvolvimento profissional, tanto como espectadora quanto com os projetos inscritos por seu grupo da faculdade — como era o caso naquele ano.

    E não seria um desafio qualquer. O número de inscritos havia batido recordes: havia de jovens prodígios estadunidenses, que constituíam a maior parte do corpo discente da universidade, a bolsistas e talentos estrangeiros. Eram latinos, negros, asiáticos, que, assim como Maria, representavam uma parcela bem menor dos estudantes.

    — As coisas são assim por aqui — dizia Sun, uma jovem bolsista chinesa de cabelos curtos com mechas cor-de-rosa, que caminhava até a entrada do hackathon junto com Maria.

    Ela sempre fora alvo do humor xenófobo de pessoas racistas. Piadas envolvendo ditadura e internet bloqueada eram frequentes.

    — Ou tentamos mudar a realidade ou estudamos e saímos daqui com recomendações melhores que as deles — emendou Sun. — Infelizmente, não podemos abraçar todas as causas do mundo. É uma coisa ou outra.

    Maria sorriu, pois pelo menos agora Sun expressava seus pensamentos. Sempre que a amiga falava uma frase com mais de quatro palavras, Maria se lembrava da estudante calada e retraída que conhecera poucas semanas depois de chegar à universidade.

    Foram as habilidades de programação que levaram Sun e Maria a Stanford. No entanto, se de onde elas vinham aquilo as destacava e as tornava especiais, ali era bem diferente. Eram uma latina e uma chinesa disputando uma vaga com algum estadunidense no concorrido mercado tecnológico, o que plantava um alvo de hostilidade em suas costas, e as duas jovens aprenderam isso rápido. Maria, porém, sabia se defender. A criação que recebera do pai e da comunidade não permitia que fosse diferente.

    Entender o sistema e fazê-lo jogar a seu favor era a sua especialidade. A universidade dava suporte às vítimas de bullying e punia os estudantes que o praticavam. Registrar e denunciar os ataques fez com que eles diminuíssem ou, pelo menos, fossem sutis o bastante para que não incomodassem tanto.

    Mas nem todos os estudantes estrangeiros agiam como Maria. Sun certamente não. Ela era quieta demais, muitas vezes passava despercebida. Enquanto a tática de Maria era contra-atacar, a de Sun era se esconder. A brasileira sabia que havia um abismo cultural entre elas, criações e famílias completamente diferentes, mas ver a colega sendo tratada daquela forma mexera com algo dentro dela.

    Um tempo atrás, os bullies, temendo serem pegos e sabendo que Sun não revidava, decoravam xingamentos em mandarim e agiam como se estivessem conversando com ela ou a ajudando, enquanto a ofendiam e riam. Para a maioria dos estudantes, ainda empenhados em conhecer o campus e não chamar tanta atenção, parecia que os agressores estavam mesmo conversando com ela em sua língua materna, como se fossem amigos. Mas Maria era uma mulher negra que crescera na comunidade; se havia algo que entendia bem, era preconceito.

    Não foi difícil para ela hackear o sistema de TV interno da universidade, afinal, não havia motivo para que fosse muito protegido. A estudante precisou de menos de quinze minutos. Depois disso, foi só decodificar o conversor de voz em texto e o sistema de tradução da universidade. Fez tudo do seu celular. Dando-se por satisfeita, decidiu almoçar ao lado de Sun naquele dia. A amiga estranhou, mas, como de costume, baixou a cabeça e retomou sua refeição. Não demorou para que o grupo de valentões se aproximasse para insultá-la com um mandarim torto e decorado. Maria puxou o celular com cuidado para não chamar atenção e gravou o ataque todo, um minuto de ofensas acompanhadas por sorrisos e acenos. Com um comando rápido, todos os monitores da universidade começaram a exibir os rostos dos garotos falando em mandarim e a legenda traduzida embaixo, em letras garrafais.

    Os garotos olharam das TVs para Maria, boquiabertos, enquanto a garota sorria e dava o comando de cancelamento, fazendo o circuito interno voltar à programação normal. Seu plano deu certo. No dia seguinte, a notícia da expulsão dos três garotos da universidade lhe trouxe um pouco de fama e também a amizade de Sun.

    Aos poucos, o jeito tagarela de Maria fez Sun se soltar. Ela era uma pessoa doce e tímida, mas que se cobrava demais. Após alguns meses de amizade, Maria descobriu que aquela atitude era decorrente de sua criação e de sua relação com a família, que depositava grandes expectativas no seu

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