Somos siderais
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Sobre este e-book
Hima Benvindo é a marca das ambições mais antigas desta curta vida de quase três décadas. Nasceu de uma longa curva profissional, envolvida nos outros, até se tornar livre e independente. É a máscara da escrita que transcende da inocência infantil à paixão adolescente até o amor amadurecido por fracassos, com ideias que delineiam mapas fantásticos, em universos ficcionais, contextualizados pela realidade dos locais de convívios tão diversos. Curiosamente, acaba envolvida nos outros que tenta compreender.
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Somos siderais - Hima Benvindo
Fuligem aos céus vermelhos, tampados. Há dias os raios de luz desapareceram. Choveu, então um tapete cinza estendeu-se. Nem os ventos sopram mais com empolgação. O dia é frio, a noite é quente. A fuligem é erguida por quatro-eixos. Caminhão robusto, de baú pesado, semirreboque zangado. Aos poucos vai parando, chegando ao destino. As cinzas passadas o encobrem completamente. Como neblina no terreno plano, escondem tudo.
O motorista sai, de rifle em mãos. Seu rosto está coberto parcialmente, boca e nariz. Os olhos esquadrinham esqueletos prediais no horizonte. Sua pisada estranha o terreno fofo. As botas leves, impenetráveis, o protegem. Bate a porta e vai ao léu. Entre fuligens, caminha até um prédio. Tonteia um pouco, sente diferenças pelo corpo.
— Quem é você? — Uma voz o aguarda. — Quem é você? — Apesar de leve, é agressiva e determinada.
Corresponde com um olhar ao chamado consoante. Alguém repousa sentado na estrutura esquelética. O prédio, inclinado, cumprimenta o vento. Agita-se orgulhoso, presenteando livros contorcidos. Ao caírem, bombardeiam o chão de fuligens. Cada bomba levanta restos acinzentados de passado.
— De onde veio? Para onde vai? Como sobreviveu na chuva?
A chuva tinha lavado tudo, aços e vigores.
O andarilho, interessado em abrigo, atenta. A voz é abafada, ruidosa, ranhada, baixa. Dificultada pelo respirador gigante, atabalhoado. A figura o vigia do segundo andar. Distante, é destacada do preto pelo alvo. Alerta, ele identifica uma mulher no vestido. Veste longa sendo desmanchada pelos sopros. Ao lado da moça, aparece um rapaz. Desgrenhado aos olhos forasteiros. Seus suores expelem graxa, sujeira e violência. O viajante mantém silêncio enquanto os olha.
— Vai para Constância? — fala baixo, riscado, prejudicado pelo respirador. Homem de inspiração profunda, expiração prolongada. — Acampe conosco. Partiremos amanhã, com o Sol. — Os do prédio riem.
O viajante aceita sem titubear. Pacientemente, continua seu caminhar pelo terreno fofo. Na armação, uma escadaria eleva-o gentilmente. No segundo piso, veem-se alguns livros. Diminui as passadas, pisando com cautela. Impossível não esmagar os conhecimentos, já estragados. Livros para sempre perdidos para a chuva ácida. Os poucos bons estão assustados entre cinzas.
— Também fico triste. — Aparece um terceiro membro, numa cadeira flutuante. Seu entulho pulmonar é extravagante, improvisado. Sopra uma violenta e trovoada voz. — Ah, por favor, não repare, foi acidente… — Olha o chão, estendendo os braços. — Ainda assim nosso conhecimento resistirá. Milagres protegeram esses livros.
— Desculpe. — Encara o cadeirante ao invés da cadeira. O visitante reclina-se, revelando o rifle. — Sem livros, sem pessoas? — Sua fala ergue poeira pelo pano protetor.
— Estou acostumado. — Balança a cabeça. — Um pouco. — Chega mais perto da barulhenta cadeira. — Tadeu Outro é meu nome. Aqueles são Bartolomeu Gusmão — o homem desgrenhado se aproxima — e Thaisa Ru. — A doce de branco. — O engraxado e a lunática… Nosso conhecimento resistirá — repete com sorriso confiante.
— Paulo — cumprimenta Gusmão. Aperto de mãos firme, cordial, de conhecidos.
— Paulo de quê? — Ele abaixa a proteção do rosto estrangeiro. — Precisamos de transparência uns com os outros.
— Paulo de Paulo, mesmo. — Tosse no punho fechado enquanto acena sua concordância.
— Você não usa respirador? — Leva as mãos ao próprio aparelho no rosto. — Que sorte a sua. Machuca muito a boca… E quando fede? — Puxa-o do rosto, estirando elásticos puídos. Alívio momentâneo.
— Espero que não use esta coisa também. — Ele eleva a cadeira para ver melhor. O rifle perpassa o tronco do portador. Guardado inclinado, termina abaixo da cintura. — Bonito cabo. É anil? — O outro confirma. — Por que o cano não é oco? — O outro não responde.
— Perdi o meu respirador. — Paulo percebe olhadas, tenta esconder a arma, mas, ao ajeitá-la, chama ainda mais atenção. — Os gases estão mais fracos. Estão sendo filtrados. — O mecânico concorda, balançando a cabeça. — Decidi procurar pessoas, em vez de máquinas.
— Mesmo assim, cuidado com o ar. — Tadeu respira fundo, a plenos pulmões. Tanto ar, mais ainda ruídos faiscantes. — Desde a chuva, somos bombas em potencial. Pelo oxigênio ou pela fome voraz.
— E se não tivesse encontrado? — A pergunta do mecânico o interessa, mas ele dá de ombros.
— Quem é você? — A mulher não se aproxima. Sentada na beirada da parede destruída, pergunta: — De onde veio? Para onde vai? Como sobreviveu na chuva? — Ele respira estresse ante tantas perguntas.
— Os Seios Hídricos. — Paulo senta perto da fogueira, reclina-se. — Saudade do calor. — O rifle vai para o colo. Gatilho na mão esquerda. Senta-se e estica os braços frios. Leva as mãos em direção à fogueira. — Prefiro quando livros esquentam com leitura.
—