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O Abençoado
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E-book325 páginas4 horas

O Abençoado

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Sobre este e-book

As premonições são poderosas.

Aquela sensação de que alguma coisa está para acontecer deve ser tomado como um aviso. Para o jovem Madison, porém é a hora de tomar decisões e descobrir o que é certo ou errado, deixando seus sentimentos de lado. Agora, o tempo é curto. Os alertas estão mais frequentes. E as informações mais confusas.
É impossível ignorar as imagens. Ajudado por um cachorro misterioso, mais parecido com um lobo, o jovem terá que descobrir a verdade e enfrentar uma onda de crimes e assassinatos, além de misteriosos desaparecimentos que não param de crescer nas serras baianas da Chapada Diamantina.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de nov. de 2022
ISBN9786500439502
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    Pré-visualização do livro

    O Abençoado - Gilmar Duarte Rocha

    A chegada

    Chapada Diamantina, Bahia, 2017, tempo de primavera.

    Apesar do desgaste e cansaço de mais de vinte horas de viagem, Donna saltou alegre e exultante do veículo, um moderno automóvel de modelo crossover de cor de prata; mirou a vastidão do cânion logo abaixo; colocou a palma da mão direita estampada na boca; arregalou os olhos em sinal de pleno enlevo; correu cerca de dez metros em direção à beirada do platô e se perdeu em êxtase.

    Virou o rosto em direção ao veículo, buscando a figura de Marc, o seu namorado. Ela balançava repetidamente a cabeça em sinal de contentamento e aprovação. Ele se mantinha alegre e compenetrado, concentrado no serviço de retirar as malas e bagagens do fundo do carro. Ela retornou os olhos em direção ao horizonte esplendoroso e ficou uma eternidade admirando a paisagem:

    — É inacreditável, Marc — Donna exclamou, aos berros.

    Plena de euforia e contentamento, ela se aproximou um pouco mais do penhasco e abriu os braços em toda a sua extensão. Novamente, virou o rosto sorridente para o local onde o automóvel estava estacionado, um descampado coberto de uma relva de um verde esplêndido e gritou, desta vez, para o seu filho Madison, um garoto magricela, alto, de apenas treze anos, que retirava os fones do ouvido enquanto saltava preguiçosamente do banco traseiro do crossover:

    — Madison, meu filho. Vamos, larga esse celular um pouco e venha ver a natureza de verdade. Venha!

    Donna, uma mulher de beleza estonteante, incrivelmente bela se vista de perto, pois guardava entre as rugas precoces de seus trinta e nove anos a puerilidade das sardas cor de jambo carimbadas numa pele incrivelmente branca, quase transparente; rosto de aspecto juvenil, com boca de lábios estreitos e bem torneados; nariz de tamanho médio, insinuante e um pouco arrebitado; olhos rasgados, como de uma oriental, excessivamente claros, de íris cor de ardósia, de tonalidade que variava de acordo com a projeção da luz; o pescoço longilíneo emprestava-lhe uma áurea de musa, a décima filha de Zeus, decerto; o corpo delgado, de tronco e pernas de compleição bem distribuída; cintura fina, quadris largos e bumbum avantajado; os seios volumosos, bem desenhados, contidos e equilibrados, conferia-lhe o retrato final da madona dos sonhos de qualquer homem amante dos seres femininos extraterrestres.

    — Uma maravilha da natureza admirando outra esplêndida maravilha da natureza!

    Galante, Marc surgiu, de súbito, por trás da namorada, deu um abraço terno e a beijou suavemente na nuca. Antes que ela se manifestasse sobre o óbvio, ele adiantou:

    — Madison, chegue perto, rapaz. Eis o Vale do Capão. Não é sensacional?

    Marc não exagerava. O Vale do Capão talvez seja a joia da Chapada Diamantina. Do ponto de onde eles observavam, o alto de um platô, descortinava-se um cânion que se perdia de vista; um vale de vegetação verde limão, carregando ainda o viço do fim de temporada das chuvas, em outubro passado, com um filete de águas escuras e límpidas rasgando a pradaria de um ponto a outro da alça de mira; dezenas de falésias demarcavam um fiorde de outro fiorde, como se fossem cabeças de gigantes da cara de pedra, de cor de cobalto, ostentando cabelos verdes, ouriçados e viçosos. Tinha ainda a projeção dos raios de sol do entardecer que refletiam a sua luz alaranjada nas paredes rochosas contíguas ao cânion, o ponto onde estavam os observadores, turistas deslumbrados, que certamente só teriam visto paisagem como aquela em cinema, positivamente num filme de ficção fantástica, em tecnologia 3D digital.

    — As trilhas, meus amores, as trilhas. Vocês não viram nada ainda. Amanhã começaremos a explorar esse paraíso — Marc atiçava a admiração e a imaginação de Donna, hirta e boquiaberta com aquela apresentação espetacular; o garoto Madison, por seu turno, apesar de não externar a mesma euforia da mãe, não tirava os olhos vidrados de cada detalhe e certamente aquelas falésias espetaculares remetiam ao cenário dos jogos de guerras intergalácticas, onipresente nos seus infindáveis games.

    Minutos depois, careceu que Marc os puxassem pelos braços e os lembrassem de que havia uma casa ali ao lado; de que precisavam de um bom banho e de que havia, certamente, uma fileira de tambores rufando no estômago de todos eles.

    A casa ficava localizada numa área num nível mais baixo de terreno, atrás de uma cadeia de araucárias que delimitava o descampado relvado — onde o automóvel de Marc estava estacionado — do setor residencial.

    Com as bagagens nas mãos, seguido pela mãe e filho deslumbrados, Marc desceu uma escadaria de pedras portuguesas, desenhada matematicamente em ziguezague perfeito, e margeada por um pequeno filete natural de água, que escorria do ponto mais alto platô, ornamentado em toda a sua extensão por bromélias, alcaçuzes, canelas-de-ema, sempre-vivas, orquídeas e xique-xiques. Mais ao fundo, como que delimitando o jardim da plataforma posterior do terreno, consequentemente mais baixa, uma fileira de roseiras desfilava todo o seu esplendor. De cada roseira brotava uma rosa de cor diversa — rosa branca, rosa lilás, rosa amarela, rosa rosa, rosa laranja, rosa pêssego e rosa vermelha, inclusive nessa roseira, em especial, sobressaia-se uma rosa espetacular, de grandes pétalas, e de um vermelho fantástico, algo em torno do magenta, que parecia brilhar à luz do sol.

    Enfim, a casa. A casa era uma habitação típica dos endinheirados que geralmente iam passar férias, temporada e, às vezes, até morar no chapadão. Corria-se rumores de que até um certo artista de rock & roll, o guitarrista da banda Led Zeppelin, tinha mansão nas proximidades.

    A residência de Marc era construída basicamente de adobes de cor de terra ocre, em dois pavimentos, o inferior, o maior, mais largo e mais vistoso, com duas águas de telhado, e o superior, com telhado em forma de platibanda, erguido na parte posterior, nos fundos, com parede frontal em formato de V, complementado por uma vidraça adjacente em formato de W.

    As portas e janelas eram quase inteiramente de vidro, entrelaçados por sarrafos finos de madeira nobre. Chegando em frente à porta principal, Marc colocou as malas no chão e sacou do bolso da calça jeans uma chave grossa do tipo tetra. Encaixou a chave; rodou a engrenagem da fechadura, virou-se para a namorada e o filho e disse, com riso largo e voz propositadamente empostada:

    — Esta singela residência é toda de vocês! Senhorita arquiteta e decoradora (referia-se a Donna, decoradora de ambientes, por profissão), sei que vai me matar por não ter te pedido os seus preciosos préstimos, mas preferi fazer surpresa; solicitei a uma dupla de profissionais de Salvador para tentar fazer uma decoração decente. De qualquer forma, estendo a mão à palmatória por possíveis defeitos ou anomalias que a senhorita encontrar.

    Donna, que havia entrado na frente, ficou embasbacada com a suntuosidade, associada à simplicidade, daquela habitação construída em estilo livre.

    A sala de estar, ampla, possuía um imenso e majestoso sofá, felpudo, de cor rosa, com estampas florais e em cima dele jaziam duas magníficas almofadas com detalhes chineses. A luz do crepúsculo avançava através dos vitrais das janelas e fazia resplandecer os inúmeros vasos turcos que se espalhavam sobre as incontáveis pequenas mesas nos quatro cantos da dependência. Quando se olhava para o teto via-se as telhas coloniais de cerâmica magnificente; quando se olhava para o piso, uma composição de madeira lisa, justaposta em raias diagonais de cores de tonalidades variadas, envernizadas e lustrosas.

    No fim da sala um corredor alargado, com duas fileiras de luminárias de bojo de cerâmica indiana e seis portas, de prováveis seis aposentos. Na última porta do lado esquerdo do corredor, Marc fez questão de adiantar-se e abri-la. Estendeu o braço direito, com a mão espalmada, e abriu o riso, de dentes enormes e absolutamente simétricos, e falou:

    — Senhorita Donna Rizo, o cantinho no qual dormiremos nessas trinta noites de férias.

    Donna continuava boquiaberta. O quarto de mais de quarenta metros quadrados era composto quase que inteiramente de janelas de vidro, devidamente guarnecidas por cortinas de tecido fino, de cor creme, e a porta da suíte chamava à atenção pelos vitrais coloridos, com pequenos quadrados verdes, laranja, vinho, azuis; cintilantes e ásperos, que lucilavam como um caleidoscópico devido ao efeito reluzente da iluminação interior do banheiro. A ancha cama colonial, tapetes persas, e uma cadeira de suportes de madeira com espaldar de lona grossa e macia complementavam a suntuosidade do quarto de dormir.

    Donna virou para o companheiro e retribuiu a oferenda com um beijo cálido na face.

    Marc, que alternava tranquilidade, orgulho e uma certa ansiedade em mostrar o seu novo patrimônio, dirigiu-se à Madison e disse:

    — Não esqueci de você, amigão. Venha!

    Então ele saiu do quarto, andando de costas, com a cabeça virada para o garoto, meneando as mãos em sinal de chamamento, e, mesmo sem virar a cabeça, tateou a maçaneta do quarto oposto e abriu a porta:

    — O seu quarto não deixa a desejar, nobre Madison. Veja, garoto.

    Apesar de menor, o quarto que coube ao garoto, era de uma sofisticação de dar gosto: paredes de adobes tersos, alternadas com janelas amplas, também de vidro e madeira; atrás da cama de tamanho real, uma bancada vasta, com livros, vasos sofisticados e pequenas luminárias que espalhavam a iluminação em todo o ambiente.

    — Madison, corra até aquela janela e me diga o que achou da vista lá embaixo. Aproveite enquanto há sol — disse Marc, olhando de soslaio para Donna e piscando os olhos.

    O garoto correu em direção à janela que Marc recomendou como se fosse uma criança de quatro anos; abriu as folhas de tela com certa rispidez e empurrou a cabeça para fora.

    Era de se estranhar o lá embaixo que Marc proferiu, visto que do quarto do casal, quando se olhava através da janela, via-se os morros e lajedos da chapada que tangenciavam o céu; do quarto que ficou reservado a Madison, o plano de visão era diferente, já que o que se apresentava era uma profunda depressão do terreno, um buraco que ia desaguar numa piscina natural em feitio de ovo estalado, de águas verdes turmalinas e cristalinas, com rochas de cor de chumbo ao redor, e, mais acima, uma espiral infinita de arvores de verdes de todas as matizes. Árvores de vegetação de cerrado cruzadas com árvores remanescentes da Mata Atlântica.

    — Vou tomar banho agora, Marc. Onde fica o caminho?

    O pequeno rapaz, outrora de gestos lentos e contidos, típicos de sua disfunção neurológica rara, que o fazia oscilar entre o comportamento desatento e o ensimesmado, tornou-se, de repente, um titã hiperativo e começou a tirar a roupa ali mesmo, os sapatos, a ficar só de cueca...

    — Calma, campeão. Prometo que amanhã cedinho, assim que o sol aparecer naquela encosta (Marc apontou para um pedaço da chapada), eu te levo lá, antes mesmo de tomarmos o café da manhã. Combinado? Agora não vale a pena. Daqui a pouco vai escurecer e você não vai achar o caminho de casa.

    — Marc está certo, querido — Donna reforçou a recomendação do namorado. — Temos quatro semanas para explorar cada pedacinho desse chão.

    Madison, apesar de se sentir um pouco frustrado, não arrefeceu os ânimos e balançava a cabeça e virava os olhos de contentamento. Marc aproximou-se dele e deu uma dica:

    — Que tal curtir um pouco a varanda, Madison. Fica ao lado da porta de entrada. Redes e mais redes para você descansar um pouco antes pegar uma boa e refrescante ducha. Ah! Se quiser levar o seu computador, pode levar. Nós temos uma potente antena parabólica na parte dos fundos da casa. Enquanto isso, eu vou mostrar à sua mãe os demais aposentos, inclusive o sótão e o solário, no andar superior.

    O garoto assentiu e foi dar um giro pelo entorno do terreno da casa. Donna, após tantas exclamações e elogios, não resistiu e, com o semblante cercado de felicidade, externou para o seu companheiro:

    — Querido. Eu pensava encontrar uma ótima casa de campo, mas o que vi aqui foi o lar dos deuses. Você comprou um palácio só para passar férias? Não acredito.

    Marc abriu o riso largo e devolveu: para você compraria até um resort em Marte para passar um fim de semana.

    Páginas passadas

    Madison era um garoto sensível, reservado, extremamente compenetrado, e que possuía visivelmente uma disfunção neurológica difícil de cravar um diagnóstico seguro, pois ora ele apresentava sinais característicos de crianças disléxicas; com certa dificuldade de se concentrar ou obter novos conhecimentos; ou ora parecia ter a patologia de meninos autistas, com surtos constantes de isolamento, associabilidade e retraimento em excesso. O seu quadro se agravou ainda mais em função da ausência do pai, quando ele tinha apenas seis anos de idade. Pablo Borja González, um empresário colombiano, por quem a jovem estudante de arquitetura Donna Rizo se apaixonou perdidamente e terminou se casando, montou um pequeno império no ramo de importações de agrotóxicos e insumos agrícolas, estendendo os seus negócios em vários estados do Brasil. Comprou mansão em Alphaville, Barueri; casa na região dos jardins, em São Paulo, capital; imóveis de veraneio no litoral paulista, propriedade em Miami e Nova York, enfim, o estrangeiro de Medellín, trilhou caminho de sucesso de vários empresários congêneres do próprio Brasil e seguia uma vida plena de sucesso tanto do lado profissional quanto do lado pessoal.

    Pablo Borja teve dois filhos com a mulher Donna: uma menina, que não sobreviveu ao primeiro mês devido a uma deficiência cerebral congênita, e o menino Madison, que parecia seguir o mesmo triste caminho da primogênita, mas sobreviveu, tanto porque os problemas de saúde eram menos graves, quanto pelo tratamento intensivo que o bebê teve no exterior, onde Donna passou exatos oito meses em Boston, Estados Unidos.

    Na volta ao Brasil, o casal retomou a vida normal; o garoto progrediu em plena recuperação; Donna empregou-se numa grande empresa da área de decoração e tudo parecia seguir um caminho feliz. Contudo, exatamente na festa de aniversário de seis anos do menino Madison, num apartamento de um casal de amigos no bairro do Morumbi, São Paulo, o pai, Pablo Borja, não apareceu na celebração. Donna estranhou a ausência abrupta do marido, que havia confirmado a presença, não obstante as constantes viagens e reuniões de negócios que ele mantinha. Donna comentou o atraso do marido com a amiga e anfitriã Cristina Amato. Naquele instante, para espanto dos convidados, o pequeno aniversariante saltou de súbito da cadeira e gritou, em alto e bom som:

    — Polícia, mamãe. Papai está na polícia.

    As pessoas presentes na festa ficaram espantados com a eloquência do garoto (que costumava falar pouco e, quando falava, falava truncado) e com o teor da inusitada notícia que ele compartilhava naquela hora.

    — Madison, meu amor, de onde você tirou isso?

    O garoto, espantado com todos aqueles olhos adultos, penetrantes e inquisitivos direcionados para ele, ficou quieto e não respondeu à pergunta da mãe. Desandou a correr pela sala atrás de alguns balões coloridos que se desprendiam da decoração da enorme parede do salão de festas e que flutuavam pela sala como plumas ao vento.

    Donna deu um riso xoxo e balançou a cabeça para os convivas. Risadas, chiados e murmúrios.

    Contudo, cinco minutos depois, quando todos se preparavam para cantar a tradicional música de parabéns, eis que o telefone celular de Donna tocava insistentemente. Não reconhecendo o número de quem ligava, ela desligou o celular para não interromper o momento maior da festa. Não adiantou muito. Um serviçal da família Amato veio comunicar-lhe no seu ouvido de que havia uma ligação urgente para a mãe do aniversariante no telefone fixo, numa dependência anexa ao salão de festas. Donna pediu licença aos demais, que interromperam por um instante o momento de celebração.

    Dois minutos depois, ela voltou ao salão de festas completamente transtornada. Chorosa, vermelha e desfigurada, ela cochichou a seguinte notícia no ouvido de Cristina Amato:

    A ligação era da Quarta Delegacia, Cris. Pablo encontra-se preso lá e pede a minha presença.

    Cristina a consolou pediu calma e, para não frustrar a criançada, elas voltaram ao salão de festas e ouviu-se, na sequência, o canto de parabéns, o apagar das velinhas, o corte do bolo e som de abertura de latas e garrafas de refrigerantes e sucos.

    Mas o que havia acontecido com Pablo Borja para estar preso?

    Donna saberia meia hora depois quando ela chegou à delegacia e foi recebida pelo advogado plantonista, que lhe antecipou o motivo da prisão do marido: Seu esposo está envolvido com os negócios escusos da máfia colombiana de drogas. Ele é o principal responsável pela logística de recepção de entorpecentes da Colômbia e remessa para a Europa.

    O mundo caiu para Donna. Aos prantos, ela foi conduzida até uma sala anexa, para que tivesse uma conversa rápida com o marido. Ela o viu sentado numa cadeira no canto da pequena sala, sem graça, cabisbaixo, maculado, sentindo-se do tamanho de uma formiga. Donna, confusa e reticente, aproximou-se do desalentado homem com o qual convivera por mais de seis anos e o primeiro impulso que lhe veio à mente foi repousar a mão no ombro dele. Choroso, ele levantou vagarosamente a cabeça e a olhou com expressão de profundo arrependimento: Eu fui enganado... Não sabia quem era Fuentes... Meu negócio é comércio de insumo agrícola, você sabe bem disso, querida. Donna era uma mulher inteligente e tinha raciocínio rápido e perfeita capacidade de dedução e perspicácia. Mas ela realmente não sabia o que marido fazia, como ele afirmava que ela sabia; pois o homem, apesar de dedicado à família, a mantinha completamente alheia dos negócios, dos colegas de negócio, dos funcionários da empresa dele, da conta corrente dele e dos cartões de crédito. Costumava dizer para ela: Você é independente, querida. Mantenha sua conta própria conta corrente e sempre que precisar de qualquer coisa eu transfiro recursos para ti. Apesar de suspeitar de que havia algo errado com os negócios do companheiro, pois dinheiro não brota em grama, Donna relevava e tergiversava, já que o homem além de nunca deixar faltar nada à família, tinha uma dedicação especial em relação à saúde e recuperação do pequeno Madison, ação essa que ela reconhecia e mantinha profundo respeito e gratidão a ele. Amor de verdade? Ah. Isso vinha em segundo plano. Suplemento.

    Depois daquela primeira visita ao marido preso, Donna voltaria a vê-lo apenas três vezes e a cada visita ele parecia vazio e esmorecido. Quando ela foi visitá-lo pela quarta vez, já não o encontrou mais na cela temporária. Ele foi transferido para outra prisão, doutor?, Donna fez essa pergunta ao delegado. Infelizmente, senhora, ele teve que ser extraditado, laconicamente, o delegado expôs o motivo. Mas ele é casado com uma brasileira e tem um filho. Não pode ser extraditado, retrucou Donna, conhecedora das leis nacionais. Eu não posso fazer nada, senhora. A ordem veio de cima. Sugiro que a senhora entre com um advogado, resumiu o delegado. Ela, de fato, contratou um jurista para reverter a extradição, mas o caso se mostrou difícil de resolver; tornou-se delongado e caro. Para piorar, todo o patrimônio do marido banido, incluindo contas em banco, imóveis no Brasil e no exterior em nome de Pablo Borja, foram arrestados pela justiça. Salvou-se, apenas, o apartamento em que moravam no bairro do Brooklyn, São Paulo, que teve ser vendido para quitar dívidas pendentes. Sobrou muito pouco para o sustento dela e do filho.

    Sem recursos, sem emprego (o marido extraditado não a deixava trabalhar), sem parentes de posses, Donna teve que recomeçar a vida do ponto zero. Buscou a ajuda de uma amiga arquiteta de nome Amélia Belo, que a ajudou a montar, em parceria, um pequeno escritório de arquitetura e decoração na Avenida Paulista.

    A presença de Amélia foi fundamental nessa péssima fase de sua vida: Donna, a gente tem que se virar com o nosso próprio suor... Nunca depender de homem... Volte à faculdade para reciclar os seus conhecimentos... Você não ama decoração de ambientes...

    Donna seguiu o conselho de Amélia e fez curso de reciclagem, a nível de pós graduação. Restaurava a sua vida aos poucos, com muita luta, garra e força de vontade. Quanto a Madison, que ficaria muito abalado com a ausência abrupta do pai, Donna conseguiu matriculá-lo em outra escola particular, de alguma qualidade, com especialistas da área de ensino de alunos com algum tipo de deficiência de aprendizagem.

    Em relação a sua vida amorosa, propostas não lhe faltavam. Com a sua beleza estonteante, boniteza natural, ela era sempre assediada por homens ricos e poderosos, a maioria deles empresários da região da Avenida Paulista. Bem que ela tentou relacionamento sério com alguns deles, mas o enlace esbarrava no fator filho — Madison ficava cada dia mais arredio e começava a ter visões inconvenientes.

    Como exemplo — quando Madison já havia completado oito anos, Donna namorava um importante industrial, diretor da Fiesp, e ela o convidou certa feita para um jantar à luz de vela em seu singelo apartamento no bairro de Vila Guilherme. Ela havia combinado com antecedência com a amiga Amélia que Madison passaria aquela noite especial na casa da amiga, que ficava a três quarteirões de distância do seu apartamento.

    Aconteceu que Madison saiu furtivamente do imóvel de Amélia e voltou andando para a sua casa, entrando discretamente no quarto dele e fechando a porta por dentro, tudo sem que a mãe percebesse.

    Pois bem, lá pela altura da meia noite, quando Donna trocava carícias de amor com o rico industrial, juntinhos na sala, à meia luz, de repente um vulto apareceu no corredor, assustando os amantes, que principiavam a despir um ao outro.

    Donna, amedrontada, correu e ligou a luz. Quando viu quem era o invasor, respirou fundo; colocou as mãos na cintura e lançou um olhar de repreensão para o seu complicado rebento: mãe, eu só vou pegar água, devolveu o menino, meio encabulado.

    O rico namorado deu uma risada sem graça e disse, falsamente: Crianças gostam de aprontar, minha querida. A gente marca um jantar para outro dia. Dito isto, o homem saia do apartamento meio sem jeito e quando dava o beijo de despedida em Donna, o menino gritou, lá de dentro: Cuidado, Ariosto. Tem homens que querem matar você naquele prédio preto e esquisito onde o senhor trabalha; devolva o dinheiro para eles. Imediatamente. O homem ficou completamente assustado, desconcertado e desassossegado com as palavras inesperadas e intrigantes do menino de apenas oito anos de idade. Deu um rápido beijo na namorada e saiu como um raio porta a fora. Quem visse aquela cena inusitada, pensaria ser apenas uma bravata ou um lampejo de insanidade do garoto Madison. O resultado não foi bem assim: dia seguinte, para tristeza, surpresa e preocupação de Donna, a notícia que irrompeu em todos os noticiários foi o assassinato a sangue frio do rico industrial da Fiesp, o namorado dela, no cruzamento entre a Avenida Paulista e a Brigadeiro Luís Antônio. O homem fora morto à metralhas, varado de balas dentro do seu automóvel de luxo. Dois meses depois do incidente, a polícia tinha indícios de que o crime fora uma espécie de acerto

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