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No Farol de meus Dias
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E-book274 páginas2 horas

No Farol de meus Dias

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Sobre este e-book

A viagem de um homem pela rota dos dias e pelo seu pulsar. Uma ode ao interior profundo. Às suas dúvidas e às suas gentes. Aos seus gritos. Que por vezes – tantas vezes – agonizam. 
Nesse percurso, entre mares bravios e portos de abrigo, findam-se os dias sem que se percam no esquecimento. 
O fim só nasce na ausência de sentido.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de abr. de 2023
ISBN9791222086712
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    Pré-visualização do livro

    No Farol de meus Dias - Santos dos Paulo

    23 de Março de 2020

    Domingo.

    Desfiz a barba que já apresentava meia dúzia de dias.

    Algo que considero absolutamente banal. Hoje foi para me sentir absolutamente normal.

    A minha mãe ensinou-me a ler. Minha professora ensinou-me a descobrir a mensagem que brotava das letras que minha mãe me ensinou a juntar.

    Deixei de ver televisão generalista há mais de 20 anos. Não gosto de manadas e muito menos bandos. Aprecio o voo dos pássaros.

    Gosto das montanhas que me rodeiam. Há nelas o apelo do ninho. Há também nelas a nobreza suficiente que me clamem à sua conquista!

    Nestes tempos tão velozes e inóspitos impõe-se a lucidez.

    Poderia juntar tudo e esboçar um poema.

    Mas, como poderia atiçar-vos a alma, quando nos rodeamos de medo?

    Será que se perdeu algo na passada? Será que nos perdemos? Onde?

    O ténue castelo de cartas que nos sustenta enquanto sociedade desaba ao primeiro grito.

    A piedade, a humanidade, a clemência brota em nós quando não apertamos o rebento.

    A cem quilómetros, a quinhentos quilómetros, a mil quilómetros... tecemos arco-íris de esperança para que os ventos alíseos, ou a insensatez, não arrastem os modernos leprosos.

    Ontem assisti por aqui a uma moderna caça às bruxas. Os puritanos de Salem trajados de incisivos iPhones e tablets julgaram. O bando esvoaçou. A manada, em pânico, à primeira sombra abandonou o pasto.

    Queimem-se as bruxas!

    O garoto que desnudou o Rei em praça pública dorme sereno. Talvez não veja televisão generalista. Não sei se sabe ler.

    Mas sabe que somos bem melhores do que isso!

    31 de Março de 2020

    Decidi enfrentar o mundo tal qual ele é. Perdoem-me!

    Entendi, há muito tempo, que ele sempre irá girar.

    E em cada singela rotação cria tempo. O tempo cria ciclos.

    Sei que sou um exagerado otimista. Alguém que cria raízes na bondade dos dias. E, apesar de tudo, acredito nisso! Na harmonia da espécie!

    Nestes dias em que o cordão humano irá esticar ao limite do impensável, atarmos firmes as mãos é o ato que se exige!

    A rotina, tida como pão nos dias passados, é hoje distante.

    O mundo irá mudar. Aprendemos na pele o quão frágil são estas cordas que nos unem. Mas existem!

    Avizinha-se um novo ciclo. A história que dantes descobríamos distante nos manuais impressos, escreve-se voraz na página do rosto.

    Experimenta-se o medo. Mastiga-se o incerto. Adormecemos breves na longa insónia do desconhecido.

    Somos o que somos!

    O ser humano revela-se na dor. Na capacidade gigantesca que tem em dar o melhor de si quando o grito clama. Não precisamos de heróis. Precisamos de nós!

    Este ciclo que nos açaimou a vontade irá findar como todos os ciclos.

    Da prisão imposta ao aroma da vida o passo procurará terra firme! Assim se exige!

    Acordaremos as cidades despidas plantando nelas a semente do amanhã.

    O mundo não é perfeito nos seus ciclos. Assim como o futuro!

    Mas, de imperfeito, chama-nos. Para que o aperfeiçoemos!

    Estamos prontos!

    21 de Novembro de 2020

    No fim do arco-íris... adormecemos bruscos e acordamos inquietos.

    O inimigo, impiedoso, tece cerco, privando-nos da lucidez.

    Já não sobejam inocentes. Aguardam-se números.

    -Quem é? Quem tem? Diz-me…?

    Afirmava a impoluta de olhos esbugalhados. Com o punhal, em gume vivo, cerrado no punho, estendido nas costas. Exigindo nomes para neles o cravar.

    - Cabrões da merda, dão cabo disto tudo… afirma o perito, de máscara despida no fundo do queixo a fumar doutos cigarros na esplanada. A moral.

    Os hipócritas calam-se, temendo no missal o pão da verdade.

    Vade retro bicho.

    Ninguém diz nada. Os arautos sábios, cegos, temem o nome da rosa.

    - Quem é? – De novo a Inquisição! Diz-me quem é?

    O pudor da fobia já se mescla com ira, com o desejo mais ávido da novidade para que, de novo, no calvário se plantem cruzes.

    A espuma corre desabrida pelos cantos dos lábios em carne viva... violentados.

    - Puta que os pariu a todos ... sai rápida a sentença, sem máscara, entre dois tragos no copo de vinho, servido ao balcão, na pausa da palestra. O auditório concorda.

    Na rua, alguém faz listas. Inventários tecidos a cuspo de fábulas. Redigidos com rancor. Empanturrados de ódio, mentiras e desnorte.

    Ao longe, na boca dos outros, a pimenta da pandemia é refresco de arco-íris.

    Aqui jaz silêncio. E mais silêncio. E ainda mais silêncio. Condenado à raiz pelo desassossego e pela frouxidão.

    A mão já se não estende. Já não há abraços, virtuais que fossem, com cabazes de esperança e entreajuda.

    Seca-se a monção dos olhos com tanta indiferença.

    Insulta-se a desgraça. O sofrimento.

    Abrandamos o passo ao mínimo sinal de desespero. Ao grito que ecoa na alma rasgada pedindo ajuda. Fechamos os olhos.

    Cai por fim, na terra, desesperada, a réstia de humanidade.

    Procuramos as bruxas já com fogueiras acesas, a crepitar com o pior de nós.

    - Crucifiquem-nos antes! Crucifiquem-nos! Já semeamos as cruzes!

    O bicho revela-se, ao cair do dia, na sombra do espelho.

    O bicho somos nós!

    04 de Dezembro de 2020

    Centenário sobre a data de nascimento de Mestre Nadir Afonso.

    Seria redutor transformar, reduzir, a vida e a obra de Nadir a meia dúzia de parágrafos como se de qualquer um se tratasse.

    Porque Nadir não era, nem será, um qualquer. Nadir era um dos nossos. Um Flaviense, um transmontano, um cidadão do mundo.

    Sobre sua obra, sobre o seu percurso maior, sobre o seu trajeto profissional, artístico, sobre o pioneirismo das suas experimentações artísticas, sobre seu testemunho, seu legado, existem variadíssimas formas de o saber, de conhecê-lo, a começar, desde logo, pelo magnífico Museu de arte contemporânea Nadir Afonso em Chaves... Mas não só!

    Milhares de artigos com referências à sua obra, a sua identidade, espalham-se pelo Universo virtual e em várias línguas. Aí se pode também iniciar na descoberta da sua obra, tão emblemática, tangível na geometria de seus traços.

    Mas hoje presto tributo ao Homem. Lembro-me dele e tive o prazer de chegar à conversa com ele meia dúzia de vezes.

    Lembro-me dele com as nuvens do cabelo a bolinar nos ventos, impecavelmente trajado a descer a Rua Direita. E entre o passo firme e apressado, deslumbrava o olhar atiçado no céu azul.

    Ali, entre o quadriculado perfeito das janelas com gente à esteia, sob a calçada irregular, centenária, da rua, Nadir esvoaçava.

    Como se sempre quisesse, geometricamente, alcançar o céu. Ao fim ao cabo, a imortalidade.

    E, evidentemente, conseguiu-o!

    04 de Janeiro de 2021

    Voltam as rotinas. As despedidas costumeiras em tempo de ano letivo.

    Por volta das 5 da tarde levei a filha, as malas e a saudade ao autocarro. Talvez esteja a ficar doce. Mas foi assim mesmo. É a vida, como sempre por estas paragens se soube dizer.

    Na viagem breve ao cair do pano do dia, contemplo o meu Vidago vazio. E, em solidão na paragem, eu e a filhota, remendamos umas palavras breves que a máscara e o frio limitavam. Ninguém mais para se juntar ao enredo. É a vida! Relembro as palavras e a sina.

    No cais de embarque, enquanto o frio nos sonega o diálogo, a vastidão do silêncio obriga-me ao desespero. A terra está adormecida. Os velhos partem, os novos partem e não há quem crie ninho nestas paragens. Fica a terra, que nunca teve culpa, só. Desesperada.

    Neste ano que há dias nos deixou, não chegam os dedos de quatro mãos para contar as despedidas. Mas bastam os de uma para contar os rebentos.

    Cada novo filho dado nasce com a vontade mareante, com o Norte encimado à cabeça e as velas desfraldadas nos braços. Parto após parto.

    Sei quão ficam mais apertados os abraços quando chegamos ao cais. Quão mais forte pulsa o coração. Alvoroçado.

    O autocarro chega. E parte insensível a tudo mais.

    De mãos nos bolsos, a caminho do carro, respiro a última luz do dia. A manta de noite que aconchega a laje ainda torna mais violenta a partida, o silêncio e o desespero. Nos alçados despidos das casas sem lareira, fica o alerta desta terra que se torna mais nua, sem que se queixe.

    Talvez, se sonhar muito, imagine o gigante Adamastor, feito montanha, a assustar os que partem. Que sua voz que fala horrendo e grosso/ Que pareceu sair do mar profundo vocifere esperança e leito, ninho e futuro aos jovens que daqui partem! Talvez desta vez não seja assim tão mostrengo!

    Ou que Júpiter, corroído de remorso, de novo aglutine as ilhas e os promontórios e as faça um rochedo sólido de esperança onde a vida possa voltar a florir sob um tapete de água e termalismo.

    Até lá, por aqui, continuamos a criar marinheiros.

    10 de Janeiro de 2021

    O Marão estava ali. Com a manta alva à cabeça, dormitava sereno sem que cuidasse os homens. Contemplei-o na passada sexta-feira, na sua imponência. E nada dissemos um ao outro de distantes. Há instantes assim. Em que o silêncio nos rouba todo um universo de palavras.

    Saí do carro. Pedi um café na estação de serviço à entrada da cidade e, em solidão, encostei-me ao capot do carro para o contemplar ao longe.

    E ali ficamos. Óbvio que me lembrei de Torga. Foi o Mestre que o anunciou, a mim e ao mundo, quando dele fez guardião inquebrável. O Marão que delimita e anuncia o reino maravilhoso. Um rochedo escarpado e divinal que assombra e afugenta os perigos e que, ao colo, carrega todos os que têm um coração que ainda se deslumbre.

    Para cá do Marão, mandam os que cá estão. Sibila-me este dito antigo do tempo em que os homens subiam a serra para colher coragem. E acordo violento do devaneio que o horizonte idílico, maternal, me oferecia.

    Para cá do Marão manda-se pouco. Ou nada. Este é o novo nome das coisas. A modernidade do dito. O Marão nunca foi prisão a não ser de uma ideia de vida, de humanidade e resiliência. Se por cá se perderam os tributos, ele não tem culpa. Nunca nos vergou à sua vontade e muito menos impôs tributo.

    Fomos nós que nos acobardámos. Estes novos homens tementes, subservientes e merdosos. Que somos.

    Quem hoje manda é um estado distante, obeso e centralista e, por cá, uma diminuta procissão de gente mansa, acomodada, que lhe obedece.

    Já nada se pode ao peso do sabor do pote. (ia dizer tacho, mas era demasiado evidente). As populações berram e vociferam, apelando à justiça dos eleitos. Estes permanecem indiferentes. Os de lá e os de cá. A revolta já não basta.

    Ninguém acode. Fecham as termas e os portões, rasgam-se os acordos, esventra-se o Barroso à procura do Lítio, engolem-se as paisagens e a biodiversidade nas lengalengas das barragens. E ai de quem levante o pio! Logo se paga uma ponte, ou as dívidas, para que o silêncio se mantenha no açaime dos autarcas.

    Termino o café. Este despertar brusco acirra em mim o mais nobre dos tributos transmontanos: O nunca quebrar. O nunca lamentar sobre as lágrimas inúteis que nos roubam o sossego. O caminho faz-se. E eu sigo.

    Até já, Serra do Marão. Sangue que nos alimenta. Pelo menos tu permaneces irredutível!

    Digna!

    19 de Janeiro de 2021

    Ainda que o não soubesse, nasci num canto pobre. Ninguém tem culpa.

    Nem eu, nem meus pais, muito menos a terra. A terra – desta vez plana que os meus pés calcorreiam – não tem rigorosamente culpa nenhuma.

    Esta pobreza franciscana que nos brinda advém dos homens. Sempre assim foi.

    Atiram-nos para um canto como se fossemos farrapos na sua mediocridade e esperam de nós altivos silêncios e preces. Em cruz no dia marcado.

    A pobreza alastra e rompe o coração da terra. Que sangra!

    O torrão já não é somente a rua onde brincávamos, a escola onde estudámos, a aldeia, o lugar ou o distrito que um dia clamámos. O interior – que uns dizem profundo – já se mescla com um país que um dia quisemos nosso. Somos todos pobres agora.

    Continuamos com as calças rotas nos joelhos onde a democracia cose dezenas de remendos feitos com cartão que não ocultam o frio nem o medo. Constantemente remendados e remediados.

    A pandemia vestiu de pobreza o carácter do ser humano. Sonegou-nos a riqueza dos afetos, dos beijos e abraços, dos risos desmedidos quando o mundo, a terra e as gentes eram Deuses vestidos do que não sabíamos. Quando éramos abastados.

    Acordamos bruscos com o estômago vazio. Numa pobreza desmedida trajada de dia sem esperança.

    E voltam os arautos da desgraça. As novas de um novo estado de emergência que tanto nos castiga de fome.

    As ruas estão cheias na pobreza das medidas e do espírito. Os hospitais abarrotam de gente à porta na pobreza da antecipação. Os médicos e enfermeiros caem de sono e desespero na pobreza do corpo e o país cansado na pobreza das lideranças. Os mortos partem na pobreza da solidão. Completamente remendados de vazio. Miseráveis.

    Legam-nos a pobreza da saudade.

    Somos Pobres.

    Os maiores pobres do Mundo!

    20 de Janeiro de 2021

    Hoje silêncio é tudo que me resta.

    Hoje sinto vergonha em ser Português.

    Sinto vergonha em nome de todos aqueles que na linha da frente nos defendem.

    Sinto vergonha em

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