Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Elã: fragmentos de vida
Elã: fragmentos de vida
Elã: fragmentos de vida
E-book191 páginas2 horas

Elã: fragmentos de vida

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

As pessoas se relacionam pelas redes sociais de diversas formas. Algumas as utilizam de forma pragmática, para promover seus trabalhos, outras para propagar suas visões políticas. Há aquelas que registram ali suas atividades cotidianas, enquanto outras apenas compartilham notícias. O fato é que desde seu advento essas plataformas digitais mudaram para sempre a forma como nós interagimos uns com os outros. Assuntos que, em outros tempos, seriam discutidos apenas em círculos fechados, agora têm seu alcance ampliado, e opiniões que ficariam entre amigos ganham dimensão e repercussão imprevisíveis. Em Elã: fragmentos de vida vemos os registros de um aprendizado por meio da utilização de uma rede social como ferramenta criativa.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de jan. de 2023
ISBN9786559322817
Elã: fragmentos de vida

Relacionado a Elã

Ebooks relacionados

Poesia para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Elã

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Elã - Leo Moraes

    O mudo, e a importância de se gostar dos Beatles

    29

    Março

    2017

    Acabei de voltar do supermercado. Ao chegar em casa para guardar as compras, me deparei com algo incrível. Quando olhei por cima o conteúdo da sacola, uma daquelas grandes do Verdemar, me espantei com a maneira como os produtos estavam meticulosamente arrumados. As coisas que estavam em número par estavam perfeitamente simétricas. Duas caixinhas de leite de cada lado, um pacotinho de pão de queijo congelado de cada lado, e assim por diante. Bem que eu notei que, no trajeto, a sacola não pendia nem pra frente nem pra trás. Tinha o centro de gravidade exatamente alinhado com as alças. Os itens sem par estavam cuidadosamente colocados levando em conta não só sua fragilidade, mas também seu peso e, acredito, a estética. Havia um equilíbrio compositivo ali, que meu olhar de arquiteto imediatamente reconheceu. A simetria, quebrada por alguns elementos isolados, formava um conjunto harmônico e equilibrado. Até as cores se complementavam e contrastavam de forma precisa e coerente. Pena que não fotografei. A fome, como sempre, falou mais alto que o apreço pela arte, e rapidamente desfiz a sacola pra encher a barriga. Mas tive o privilégio de contemplar aquela efêmera obra de arte. E o menino que está empacotando compras no Verdemar merece uma exposição. O Vik Muniz das sacolas de compras.

    12

    Janeiro

    2014

    Almoço no Ponteio, vontade intensa de ir ao banheiro. Lá chegando encontro o cenário ideal numa situação dessas: banheiro silencioso, aparentemente deserto. Me dirijo à casinha mais perto da parede, a primeira de seis ou sete. Me sentindo plenamente à vontade, enquanto dou início aos trabalhos, começo a assobiar a melodia de Ticket to Ride. Quando chego ao refrão, para minha surpresa, um outro assobio, vindo da cabine do outro extremo, se une ao meu em uníssono. Passado meu breve susto inicial, mantenho o tom e finalizo o refrão. Foi aí que a mágica aconteceu. Ao começar a segunda estrofe, num entrosamento digno de Lennon e McCartney, segurei a primeira voz e meu parceiro anônimo abriu a segunda voz em perfeita harmonia! O "is bringing her down, yeah! foi impecável! Continuei o inusitado dueto enquanto terminava o que tinha ido fazer ali (sou bem rápido nesse departamento). Lavei as mãos, ainda assobiando e, num misto de constrangimento e consciência da necessidade de manter nossas identidades desconhecidas um para o outro, saí do banheiro ouvindo ao longe aquela conhecida melodia I don’t know why she’s riding so high". Abandonei meu parceiro antes do fim da canção. Só posso imaginar como seria se tivéssemos chegado ao "my baby don’t care!". Mas deixo aqui em público meu correio elegante: Ao beatlemaníaco cagão do Ponteio: são pessoas como você que mantém minha fé na humanidade inabalada.

    11

    Setembro

    2019

    Aquilo chegava a ser um trauma na vida dele. Começou quando, ainda criança, viu morrer de inanição seu canário belga, que ele esqueceu de alimentar.

    Se quer ter um bichinho, tem que cuidar dele, são as palavras que seu pai havia lhe dito, e que ecoavam na sua cabeça quando pegou o corpinho amarelo da ave morta para jogar no lixo. Depois foi o porquinho da Índia, que ele sentou em cima, teve o pequinês, que ele viu ser atropelado depois de ter esquecido de fechar o portão, o gato, que ele derrubou do décimo segundo andar ao bater a janela sem perceber que o bichano estava no guarda-corpo.

    Já adulto, decidiu ter um aquário. Viajou e esqueceu de pedir pra alguém alimentar os peixinhos, chegou em casa um mês depois e viu a água completamente verde, com pontinhos dourados boiando na superfície. Tentou ter plantas mas, ou colocava água demais, ou esquecia de molhar, e elas sempre acabavam secas e sem folhas. Nem a tentativa de ter uma horta funcionou – as mudas de alecrim e manjericão não duraram uma semana. Não tinha jeito, pensava: eu não nasci pra cuidar.

    Mas lá estava ele, olhando para aquela bela planta florida, num grande vaso, bem no meio da mesa de sua sala de jantar. Já fazia um ano que aquele vaso estava ali. Todo dia ele conversava com a plantinha, colocava-a pra tomar sol na janela, acariciava suas folhas. E lá estava ela, lindona, mesmo depois de um ano sob seus cuidados. E ele pensou consigo mesmo que, se soubesse que ter uma planta artificial resolveria todos os seus problemas emocionais, teria comprado uma há tempos, e economizado anos de análise.

    28

    Julho

    2014

    Nos casos que meu pai conta de sua infância, um personagem praticamente onipresente é o Mudo. Meu pai nasceu em 1938 em um pequeno sítio na zona rural de Cascalho Rico, no Triângulo Mineiro. Meu avô era agricultor e minha avó conduzia a casa como uma pensão, abrigando viajantes que passavam por aquelas bandas. Meu pai conta, com certo ressentimento, das diversas vezes que ele e as irmãs, ainda crianças, eram acordadas no meio da noite para cederem suas camas para algum hóspede que chegava.

    Um dia, no final dos anos 1940, meu avô trabalhava na lavoura e percebeu que estava sendo observado por um homem escondido nos arbustos. Como não respondia a perguntas, meu avô, temendo se tratar de um assalto, pegou a enxada e partiu na direção do homem. Ele se afastou correndo, mas continuou observando à distância. Quando meu avô foi arrancar o toco de uma árvore do chão encontrou dificuldade. O homem se aproximou e o ajudou. Foi só então que percebeu que ele era surdo e mudo. Ele passou o resto do dia ajudando no trabalho.

    Ao entardecer, meu avô levou o inesperado ajudante para jantar em casa. Tentou se comunicar, para saber quem era e de onde vinha. Sem sucesso. Além da deficiência auditiva o homem era também analfabeto. A noite chegou e, como não fez menção de ir embora, minha avó arrumou um quarto para ele passar a noite. Ele morou nesse quarto por mais de 20 anos, até sua morte. De vez em quando sumia por uns dias, mas sempre voltava. E o quarto dele sempre estava lá.

    Meu pai conta que ele ficava sempre de olho no que meu avô fazia, e trabalhava muito, sempre fazendo questão de poupar meu avô das tarefas mais pesadas. E ele adorava brincar com as crianças. Meu pai, suas irmãs, e seus primos desenvolveram com ele uma espécie de linguagem de sinais rudimentar, com mais ou menos uma dezena de gestos básicos. Todos o chamavam de Mudo, pois nunca conseguiram descobrir seu nome. Meu avô tentou ensiná-lo a ler, mas ele se recusava.

    Ele tinha pavor de farda. Quando chegava algum fardado ele desaparecia, e só voltava quando tinha certeza que o visitante tinha ido embora. Meu pai conta que ele chegava a tremer quando desavisadamente dava de cara com o carteiro, que usava um uniforme meio com cara de farda. Também não gostava de padre. Gostava de pamonha e de pão de queijo.

    Engraçado que eu cresci ouvindo histórias dessa misteriosa figura, que conviveu com minha família tão intensamente, e por tanto tempo, e mesmo assim tão pouco se sabe sobre ele. Às vezes bate uma curiosidade, quase que uma saudade de alguém que não conheci. Que histórias incríveis e tenebrosas estavam aprisionadas na memória desse cara. Fica este breve texto como singela homenagem. O Mudo existiu.

    09

    Agosto

    2019

    – Pra que dia podemos marcar a inauguração? – Primeira semana de janeiro. – Garantido?

    – Garantido! – Olha… Vamos marcar. É show do Marco Lobo com o Billy Cobham, responsa total, hein? Não vai fazer a gente passar vergonha com os caras. – Imagina! Pode marcar, garantido!

    Por segurança marcamos para o dia 5 de fevereiro, um mês depois do garantido pelo empreiteiro. Chegou o dia 4 e ainda faltava muuuita coisa. Tinha uma pilha de entulho no meio da pista, eletricista fazendo instalação, pintor começando o serviço. Viramos duas noites ajudando, carregando coisa, parafusando, buscando material. No dia da inauguração, de manhã, o Marco Lobo passou lá para ver como estava e se assustou: Bicho, esses estrangeiros não estão acostumados com essas coisas, o cara vai surtar!. Calma, vai dar tudo certo, dizíamos sem certeza nenhuma, com os cus nas respectivas mãos.

    Por volta das 15h, já sem entulho, com a iluminação começando a ser testada, galera terminando de montar o som, barris de chope chegando, já começávamos a respirar razoavelmente aliviados. Parecia que afinal daria mesmo tudo certo. Foi quando chegou o caminhão da Tama, com a bateria do cara. Não parava de descer case de bateria. O roadie começou a montar aquele monstro, no meio do palco ainda virgem d’ A Autêntica. Dois bumbos, quatro tons, dois surdos, duas caixas, e mais pratos que enxoval de noiva. Ocupou o palco inteiro. E isso porque a banda do Marco Lobo tinha que montar outra bateria, teclado, o set de percussão do próprio Marco, e ainda tinha um saxofonista e um baixista.

    Quando eu vi aquela bateria gigantesca ocupando todo o palco pensei Nó, fudeu. O cara deve estar achando que vai tocar no Palácio das Artes, vai chegar aqui, ficar puto, cancelar o show, vamos dar aquele vexame. Às 17h, horário marcado da passagem de som, éramos um misto de emoções. Cansaço, excitação, nervosismo, euforia, antecipação, insegurança, orgulho.

    Billy Cobham foi o primeiro a chegar, e observamos à distância enquanto ele olhava com perplexidade aquela cena. Aquela bateria naquele palco parecia um sofá em cima de uma bicicleta. Eu me aproximei para me apresentar e dar as boas vindas, já cheio de desculpas preparadas, não sabíamos que sua bateria era tão grande, não recebemos mapa de palco etc. etc.

    Antes que eu dissesse qualquer coisa, ele me pergunta:

    – Quem montou essa bateria? – Foi o roadie que a Tama mandou. – O cara é doido. Olha o tamanho desse palco. Ainda tem que caber mais cinco músicos aqui.

    E subiu no palco, retirou várias peças, puxou a bateria para o canto, montou um set basicão. Ofereci ajuda, afinal era um senhor de seus 70 anos, mas ele disse que não precisava, fez tudo com a destreza de quem passou a vida fazendo aquilo. E então se sentou e tocou as primeiras notas da história daquele palco, comigo em pé, ali bem do lado, sentindo o ventinho do chimbau. Aí ele sorriu e falou uma coisa, que vou transcrever em inglês para que nada se perca na tradução. Ele disse:

    – Man, this place is really cool. I feel it, I feel it… It’s gonna be a night to remember!

    E nessa hora eu percebi que de uma forma ou de outra tudo já tinha dado certo.

    01

    Fevereiro

    2017

    Quando eu ia me mudar pros Estados Unidos, aos 14 anos, meu avô disse para eu me comportar, pois estaria representando o Brasil. Lembro de ter pensado algo do tipo pôxa, não estou indo pras olimpíadas, só vou estudar lá. Aí outro dia aconteceu o seguinte:

    Duas senhoras conversando.

    – Mas os americanos deteeeestam cerveja.

    – É mesmo? Não sabia…

    – É, eu recebi uma intercambista americana na minha casa e ela detestava cerveja. Só bebia vinho. E tinto, também não gostava de vinho branco não. Eles têm aquelas vinícolas na Califórnia, o negócio deles não é cerveja.

    Fiquei pensando que é uma tendência natural nossa, ao conhecermos uma única pessoa de um determinado lugar, automaticamente presumirmos que todo mundo de lá é igual a essa pessoa. Como se uma amostragem de um único indivíduo pudesse ser parâmetro para alguma conclusão. E aí o conselho do meu avô fez sentido. Generalizar é um reflexo humano.

    02

    Agosto

    2012

    Sinal da idade. Encontrei na rua com um conhecido que é ex-hippie, ex-metal, ex-moderno e está no processo de se tornar um

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1