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Histórias Afro-Indígenas nas Fronteiras - Volume II
Histórias Afro-Indígenas nas Fronteiras - Volume II
Histórias Afro-Indígenas nas Fronteiras - Volume II
E-book276 páginas3 horas

Histórias Afro-Indígenas nas Fronteiras - Volume II

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Sobre este e-book

Esta coletânea reúne oito capítulos, frutos de pesquisas, sobre os povos ameríndios e afro-americanos, os quais viveram e vivem nas fronteiras dos Estados nacionais. Assim, são tratados temas como a sacralidade indígena, o racismo como arma de poder contra os nativos da terra. As espacialidades indígenas e as formas de se produzir conhecimento. Indígenas nas fronteiras coloniais vivendo entre dois grandes ecossistemas e suas lutas por autonomia. Mas também o tráfico indígena no norte do Brasil ao lado da prática do tráfico de escravizados negros. Uma das formas da Amazônia se conectar ao centro do continente era justamente pelo tráfico de escravizados. Esses, por sua vez, não raras vezes procuravam fuga para áreas estrangeiras aos brasileiros. Ao fim e ao cabo, esperamos que o leitor possa desfrutar da reunião de estudos aqui realizada e que os esforços para a sua organização e publicação possam se somar com a expansão e consolidação das pesquisas com e sobre afro-indígenas nas universidades latino-americanas. Diante de tantos retrocessos nos Direitos Humanos e sociais, mais do que nunca é necessário democratizar o conhecimento e trabalhar para que haja ascensão de outros sujeitos ao lugar da enunciação e protagonismo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de fev. de 2023
ISBN9786525036830
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    Histórias Afro-Indígenas nas Fronteiras - Volume II - Bruno Pinheiro Rodrigues

    15460_Bruno_Pinheiro_Rodrigues_capa_16x23-01.jpg

    Histórias afro-indígenas

    nas fronteiras

    (Volume II)

    Editora Appris Ltda.

    1.ª Edição - Copyright© 2023 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.

    Este livro foi financiado com recursos do Programa de Apoio à Pós-Graduação (PROAP) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)Catalogação na Fonte

    Elaborado por: Josefina A. S. Guedes

    Bibliotecária CRB 9/870

    Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT

    Editora e Livraria Appris Ltda.

    Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês

    Curitiba/PR – CEP: 80810-002

    Tel. (41) 3156 - 4731

    www.editoraappris.com.br

    Printed in Brazil

    Impresso no Brasil

    Bruno Pinheiro Rodrigues

    Ernesto Cerveira de Sena

    (org.)

    Histórias afro-indígenas

    nas fronteiras

    (Volume II)

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    1

    A ESCRAVIDÃO ENTRE OS POVOS GUAYKURU DO CHACO-PANTANAL (SÉCULOS XVIII E XIX)

    Bruno Pinheiro Rodrigues

    2

    TARUKITIAKI: LUTA PELOS DIREITOS HUMANOS DO POVO INDÍGENA CHIQUITANO

    José Eduardo Fernandes Moreira da Costa

    Loyuá Ribeiro Fernandes Moreira da Costa

    3

    A LUTA INDÍGENA PELA MANUTENÇÃO DA AUTONOMIA: TRÂNSITOS E TERRITORIALIDADES NA FRONTEIRA DO MATO GROSSO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII

    Francieli Marinato

    4

    HALUHALUNEKISU: ESPACIALIDADE DO SAGRADO NAMBIQUARA

    Flavio Gatti

    Anna Maria Ribeiro F. M. da Costa

    5

    APRENDER COM OS YUDJÁ E OS BOÉ: PERSPECTIVAS INDÍGENAS PARA HISTÓRIA E EDUCAÇÃO

    Thamara Parteka

    6

    DO ATLÂNTICO PARA O SERTÃO: TRÁFICO DE ESCRAVIZADOS ENTRE BELÉM E O OESTE DO BRASIL (SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII)

    Marley Antonia Silva da Silva

    7

    CONSIDERAÇÕES SOBRE AS FUGAS INTERNACIONAIS DE ESCRAVIZADOS NAS FRONTEIRAS OESTE E SUL DO IMPÉRIO BRASILEIRO

    Ernesto Cerveira de Sena

    8

    NAS FÍMBRIAS DA ESCRAVIDÃO NEGRA: TRÁFICO DE INDÍGENAS NO MERCADO AMAZÔNICO DE ESCRAVOS (1840-1888)

    Luiz Carlos Laurindo Junior

    INTRODUÇÃO

    A coletânea Histórias afro-indígenas nas fronteiras se trata de mais uma iniciativa tomada pelo Grupo de Pesquisa Estudos sobre Política, Identidades e Fronteiras nas Américas, que visa reunir autores(as) que têm se debruçado sobre pesquisas relacionadas aos povos indígenas ou afro-americanos na América Latina, especialmente em áreas de fronteiras. Este segundo volume congrega pesquisas das mais variadas possíveis, com capítulos que versam sobre problemas relativos à escravidão, consolidação dos Estados nacionais, delimitação e conflitos nas fronteiras e perspectivas indígenas na educação.

    De modo particular, no primeiro capítulo, A escravidão entre os povos Guaykuru do Chaco-Pantanal (séculos XVIII e XIX), Bruno Pinheiro Rodrigues analisa os documentos produzidos pelos agentes coloniais para debater sobre a ideia de escravidão produzida pelos europeus/ibero-americanos, confrontando-a com as dinâmicas sociais e culturais dos indígenas cavaleiros. Saídos do Chaco para a também ampla área pantaneira, estabeleceram diversas relações com outras etnias, em meio ao impacto histórico de quando os impérios ibéricos passaram a disputar a região mais efetivamente nessas fronteiras. Ainda assim, permaneceram praticamente por cerca de dois séculos como proeminentes obstáculos à expansão colonial, tendo os chamados escravizados como parte de sua estrutura social em transformação. Os grupos étnicos tidos como escravos dos guaicurus, assim, causavam estranheza aos agentes colonizadores, ao mesmo tempo em que também lançavam questionamentos sobre a própria instituição da escravidão entre povos diferentes.

    Com a consolidação dos Estados Nacionais e a delimitação oficial de fronteiras entre países, as etnias que viviam nessas regiões tiveram o incremento da espoliação de suas terras. Mas a pressão sobre suas territorialidades vinha e vem acompanhada por outras formas de opressão. Assim, José Eduardo Fernandes Moreira da Costa e Loyuá Ribeiro Fernandes Moreira da Costa tratam dos Chiquitianos, em "Tarukitiaki: Luta pelos direitos humanos do povo indígena Chiquitano", demonstram que além da falta de demarcação de seu território tradicional, outras maneiras procuram subjugar essa etnia, como a discriminação, o racismo, o ataque às suas formas de vida ligadas à preservação de rios, córregos e florestas, negando-se os direitos humanos a esse povo, deixando-o vulnerável à exploração de toda ordem. O clima de tensão com os fazendeiros locais acaba coagindo as famílias chiquitanas a deixarem seus espaços e servirem como mão-de-obra para a sociedade envolvente. Por outro lado, os chiquitanos resistem a isso, recorrendo desde às suas antigas formas de solidariedade até aos espinhosos e labirínticos meios judiciais para procurarem barrar a degradação ambiental e humana em curso.

    O terceiro capítulo, Francieli Aparecida Marinato, em A luta indígena pela manutenção da autonomia: trânsitos e territorialidades na fronteira do Mato Grosso na segunda metade do século XVIII, baseada em pesquisas de fontes de época, inclusive recentes, entre outros aspectos, trata dos deslocamentos e trânsitos frequentes do povos indígenas na região fronteiriça do império português com o espanhol. Sua análise defende que os indígenas procuravam suas antigas liberdades e autonomia quando deixavam as missões espanholas para irem ao lado português, em um ambiente onde as duas coroas ibéricas disputavam territórios. Nesse contexto de disputas entre impérios, os Guaicuru, notadamente ao passarem a utilizar cavalos, puderam fazer frente às armas ibéricas, e mantiveram sua autonomia e independência. Entre as resistências, principalmente ao colonizador, os povos indígenas formavam alianças, e, em outros casos, mudaram suas formas de viver ante às circunstâncias adversas. Enfim, os povos indígenas na fronteira não deixaram de ser protagonistas durante o processo histórico brasileiro, mesmo em condições pouco ou nada favoráveis.

    No quarto capítulo, "Haluhalunekisu: Espacialidade do Sagrado Nambiquara, de Flávio Gatti e Anna Maria Ribeiro F. M. da Costa, nos brindam com uma reflexão epistemológica sobre os saberes e experiências dos povos indígenas ante as produções de conhecimento homologadas pela expansão predatória do capitalismo. Em Comodoro, munícipio de Mato Grosso na linha de fronteira com a Bolívia, é onde vivem os Nambiquara, cuja filosofia coloca em mesmo plano mito e história, como sabedoria do bem-viver, articuladas não apenas para ensinamentos, mas também para o bem viver. O sagrado e o considerado sobrenatural" estão articulados na luta pela sobrevivência não só dos Nambiquaras e outros povos indígenas, mas de toda a humanidade, sugada pelo movimento de autodestruição.

    O passado e a atualidade indígena em Mato Grosso pelo sistema formal de educação constituem debate necessário de ser enfrentado. Thamara Parteka em Aprender com os Yudjá e os Boé: perspectivas indígenas para História e Educação, de Thamara Parteka" nos traz um rico debate trazendo, como o próprio título diz, a perspectiva indígena para o ensino escolar. Assim, a autora partilha suas experiências e viências para refletirmos sobre a prática pedagógica com indígenas e não-indígenas, nesse caso, dos povos Yudjá e os Boé-Bororo, no contexto especial da pandemia de covid-19. Compreender a realidade das aldeias foi essencial para desenvolver uma prática que visa a decolonialidade dos saberes assim como ao enfrentamento dos fatores danosos historicamente, mas que não retrocedem, como a poluição de rios, a discriminação, expansão do latifúndio e garimpos e outras violências as quais os povos indígenas vêm enfrentando por séculos. Desse modo, uma educação a partir dos povos indígenas colabora sobremaneira para uma reelaboração do passado do Brasil, bem como aponta saídas para o vindouro do qual todos farão parte, para o bem ou para o mal.

    A partir do sexto capítulo, a coletânea tem como enfoque as populações negras, africanas ou afro-americanas. No século XVIII, Mato Grosso era uma das áreas estratégicas da coroa portuguesa para o abastecimento de carga humana proveniente da África, e isso envolvia uma série de medidas e ações da metrópole, de traficantes e autoridades locais, em meio à sempre possível revolta ou fuga de escravizados, são alguns dos elementos analisados por Marley Antônia Silva da Silva, em Do Atlântico para o Sertão: tráfico de escravizados entre Belém e o Oeste do Brasil (século XVIII). Belém teve papel de destaque no fornecimento da mercadoria humana para Mato Grosso e Goiás, notadamente com a criação da empresa monopolista Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Do porto Ver-o-Peso, comerciantes chegavam a Mato Grosso e Goiás, tendo o abastecimento de escravizados provenientes da África o principal produto. Inclusive, comerciantes de Mato Grosso eram acionistas da empresa. Com o fim da Companhia, o governo metropolitano fez concessões e isenções fiscais para a continuação e intensificação do comércio de africanos e africanas arrancados do outro lado do Atlântico.

    O sétimo capítulo trata das fugas de escravizados e escravizadas de Mato Grosso e São Pedro para territórios estrangeiros, principalmente no contexto da formação dos Estados Nacionais. O texto Considerações sobre as fugas internacionais de escravizados nas fronteiras Oeste e Sul do império brasileiro, de Ernesto Cerveira de Sena, ressalta que desde quando se estabeleceram os impérios europeus na América, houve fugas de escravizados de uma área colonial para outra. Com o advento dos Estados Nacionais na Ibero-América, as evasões continuaram enquanto havia escravidão institucionalizada. Contudo, com a pressão internacional contra o tráfico e a ampliação de áreas tidas como solo livre da escravidão negra, acabaram por se constituir em elemento fundamental dos jogos políticos internacionais. Se na fronteira Sul o Império intervinha no Uruguai, na fronteira Oeste expandia seus domínios para onde antes era a Bolívia, acabando por conjugar a defesa da escravidão com a interferência armada que favorecesse o acesso aos rios platinos e a expansão territorial.

    No capítulo que fecha a coletânea, Nas fímbrias da escravidão negra: tráfico de indígenas no mercado amazônico de escravos (1840-1888), Luiz Carlos Laurindo Junior apresenta uma pesquisa em variada gama documental na qual analisa tanto africanos e seus descendentes após a segunda abolição do tráfico negreiro (1850) quanto a escravização indígena. A proibição efetiva do comércio transatlântico mais do que alocar escravizados para as grandes áreas produtoras do sudeste, ou seja, as áreas centrais do sistema produtivo voltado para exportação, também reforçou o tráfico intermunicipal e intraprovincial nas áreas consideradas periféricas do Império do Brasil. A região fronteiriça imperial também manteve uma tradição de escravização de indígenas, apesar das proibições desde o período colonial. No final do século XIX, tal forma de trabalho e de viver, submetidos aos indígenas, eram denunciados pelos jornais do Norte, momento em que inclusive a escravidão negra recebia crescente críticas em todo o Império, o último a terminar institucionalmente a escravidão nas Américas e um dos últimos no mundo. Mas, então, são outras histórias...

    Ao fim e ao cabo esperamos que o leitor possa desfrutar da reunião de estudos aqui realizada, e que os esforços para a sua organização e publicação possam se somar com a expansão e consolidação das pesquisas com e sobre afro-indígenas nas universidades latino-americanas. Diante de tantos retrocessos nos direitos humanos e sociais, mais do que nunca é necessário democratizar o conhecimento e trabalhar para que haja ascensão de outros sujeitos ao lugar da enunciação e protagonismo.

    Abril de 2022

    Os organizadores.

    1

    A ESCRAVIDÃO ENTRE OS POVOS GUAYKURU DO CHACO-PANTANAL (SÉCULOS XVIII E XIX)

    Bruno Pinheiro Rodrigues

    [...] é certo que os Mbayá gostam muito de todos os seus escravos, jamais lhes ordenam de modo imperioso, nunca lhes repreendem, nem os castigam, nem os vendem, ainda que se tratasse de prisioneiros de guerra (AZARA, 1809, p. 59).

    Captivos entre os Uaicuru’s equivale mais à significação de adquiridos ou de libertos, do que ao rigoroso sentido d’esta denominação. Elles comem no mesmo prato com os senhores, casam com livres e em outras toldarias e tribos e em distantes lugares [...]. Os senhores às vezes os buscam muito distantes, jogam os murros com elles nas suas beberronias e sempre nas suas festas, se o capveiro é mais forte maxuca muito bem o rosto do senhor, sem que este mostre d’isto desprazer algum [...] (ALMEIDA SERRA, 1850, p. 371)

    Possivelmente, o que os agentes coloniais descreviam como escravidão não fosse o mesmo para os povos indígenas, uma vez que o encontro de sociedades diferentes sempre é um terreno incerto e permeado por incompreensões e interpretações equivocadas. Seja como for, quando consultamos as fontes que tentam dar conta dos primeiros contatos entre europeus e a vastidão de povos que habitavam o continente americano do século XVI em diante, é notório o quanto as disparidades sociais e culturais causavam espantos, assombros e, até certo ponto, crises identitárias. Afinal, pertenciam a sociedades calcadas na mão de obra escravizada, fundadas na hierarquia de raças e suposta superioridade europeia em relação aos povos de outras partes do mundo. Certamente, a ideia de alguém escravizado comer no mesmo prato do amo, por vezes se estapear com ele, não ser castigado nem repreendido, não lhes parecia compreensível e razoável. O fato é que tanto Azara como Almeida Serra faziam referência ao modo como um cativo era tratado no interior dos grupos Guaykurus, o famoso grupo dos indígenas cavaleiros que durante séculos esteve espacializado na região.

    Sendo escravidão, servidão ou qualquer outro conjunto de obrigações entre o vencedor da guerra e o prisioneiro, é inegável que esse tenha sido um dos principais pontos de contato entre os mais diferentes povos no Chaco-Pantanal. Diferentes fontes indicam, por exemplo, que Guaykurus estiveram em guerra contra os Guarani para captura de prisioneiros ou que os Payaguá, quando atacavam as monções paulistas que rumavam às minas de Cuiabá, além do ouro, levavam cativos para posterior comercialização em Assunção. Outras tantas informam que, entre os indígenas do Chaco-Pantanal, viviam homens e mulheres brancos em condição de escravizados.

    Face a esse cenário, pretendo refletir essas relações na região, dando especial ênfase ao lugar do cativo-servo-prisioneiro dentro das sociedades indígenas Guaykuru. Em que medida esses indivíduos capturados foram tomados como cativos nos mesmos termos em que eram tratados pelo agente colonial?

    Acredito que alguns conceitos possam ajudar a dar uma resposta a essa indagação, a começar pela definição de escravidão, forma de trabalho compulsório em que o trabalhador é considerado mercadoria, portanto, propriedade. Nela, o proprietário pretende deter domínio total sobre o indivíduo escravizado e, igualmente, sobre os seus descendentes. Além disso, o escravizado é sistematicamente concebido como o estrangeiro desenraizado, agente externo à sociedade na qual fora introduzido e na qual lhes são negados laços sociais e relações de parentesco. A combinação dessas características dá ao escravizador maiores condições para controlar a força de trabalho e obter o trabalho indesejado (FINLEY, 1991, p. 76-79).

    A etnogênese nos auxilia a entender as transformações da escravidão e/ou servidão no decorrer dos séculos de contato. Cunhado para descrever o desenvolvimento das coletividades humanas e suas configurações étnicas decorrentes das migrações, invasões, conquistas, fissões ou fusões, permite considerar, particularmente, as sociedades ameríndias como cambiantes e plásticas em suas transformações e adaptações. Segundo Bartolomé (2006, p. 40-41), trata-se do processo histórico que reflete a dinâmica cultural das sociedades anteriores ou exteriores ao desenvolvimento dos Estados nacionais da atualidade, processo básico de configuração e estruturação da diversidade cultural humana.

    Isso posto, inicialmente, traçarei um panorama da história do grande Chaco-Pantanal e seus sujeitos, com ênfase nos Guaykuru, para, na sequência, refletir o que as fontes manuscritas informam sobre casos de escravidão na região em meio à constelação de povos. Dar-se-á especial atenção aos escritos de Francisco do Prado, Ricardo Franco de Almeida Serra e Alexandre Rodrigues Ferreira, todos produzidos na virada do século XVIII para o XIX, momento em que ocorriam diversos conflitos na fronteira entre os Impérios espanhol e português.

    1. Os Guaykuru, o Chaco-Pantanal e outros sujeitos

    A territorialidade analisada aqui conta com numerosas peculiaridades e um processo histórico complexo e vasto, anterior e posterior à chegada dos europeus. Originária do topônimo quéchua chacu, designa cerca de 700 mil quilômetros quadrados localizados entre o Brasil, Argentina, Paraguai e Bolívia. Limita-se com os pampas ao Sul, a Oeste com a região andina, no Noroeste com o planalto dos Chiquitos e Velasco, e a Leste com os rios Paraguai e Paraná. Marcada por períodos de seca atenuados, muitos lagos e pântanos, conta com uma vegetação de savana e estepe arbustiva, com matas ciliares rente aos rios (CARVALHO, 1992, p. 457). A seu Leste, encontra-se o Pantanal, a maior planície inundável contínua do planeta, distribuída em uma área de 136.700 Km². Abastecida pela bacia do Paraná-Paraguai, possui uma flora e fauna bastante ricas, cercada por sistemas florestais bem diversos, como o Cerrado, floresta amazônica, Mata Atlântica e Mata Seca da Bolívia

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