VINTE ANOS E DOIS MESES DEPOIS
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VINTE ANOS E DOIS MESES DEPOIS - Carlos Eduardo Rosa Fraga
Frases que me inspiram
Quotes which inspire me
"Nunca se deixe abater por coisas pequenas.
Tudo são coisas pequenas." Never let little things get you down.
Everything is small stuff.
A excelência requer prática.
Excellence takes practice.
Prefácio
Muitas pessoas têm o pai como o grande herói e exemplo a se seguir. Mas eu posso dizer que, além do meu pai, tenho também o meu tio Kazê, que me ensinou muito sobre a persistência, independentemente dos obstáculos, e, principalmente, nunca julgar ninguém pela sua aparência. E, no caso do Kazê, não julgar pela condição física, pois ele com quatro rodas já fez muito mais do que muitas pessoas com duas pernas.
Meu tio joga power soccer e, sinceramente, não era lá um grande jogador, mas se esforçou e hoje seu time é campeão brasileiro. Em 2014, ele foi até convocado para participar da primeira Seleção Brasileira de Futebol em Cadeira de Rodas! Ele pinta quadros sustentando o pincel com a boca (antes do acidente, nunca havia pintado usando as mãos). Começou a aprender a pintar bem do início e agora faz quadros maravilhosos, de dar inveja a muitos artistas que possuem ambas as mãos para pintar. Há algum tempo, já cadeirante, foi o segundo melhor vendedor do Brasil no ranking de uma empresa de calçados com a qual trabalhou (lembro–me disso toda vez que vou a sua casa e assisto ao futebol na televisão de 32 polegadas que ele ganhou como prêmio por essa conquista). Essas são algumas coisas que servem para provar, não só para os portadores de deficiência, mas também para as pessoas sem deficiência, que elas podem ser grandiosas, não importa o que aconteça, não importa o que as impeça. Com atitude e perseverança, tudo é possível.
Um fato que é engraçado é que o acidente limitou os movimentos do meu tio, porém ele não consegue ficar parado, nunca para de se mexer. Sua cabeça está sempre a mil
, pensando o que fazer em seguida. Se ele tivesse dez pessoas que se prontificassem a fazer algo que ele sozinho não conseguiria, ele ocuparia as dez e ainda estaria fazendo mais umas duas coisas ao mesmo tempo (coisas que consiga fazer sem ajuda de alguém). Ele é o tetra
mais hiperativo que conheço (provavelmente a pessoa mais hiperativa que conheço). Meu tio Kazê faz tanta coisa que preciso parar um instante e lembrar que ele é cadeirante, pois me esqueço completamente (e, como me confidenciou, ele também precisa se lembrar disso às vezes). Sei que o Kazê não vai parar, porque enquanto existir algo que ele possa fazer, apesar das limitações, não vai parar até conseguir. E quando não houver mais nada que já não tenha feito, ele inventará algum modo de fazer o que todos pensavam que era impossível.
Nisto se resume o que sinto pelo meu tio: uma grande admiração e orgulho, por nunca se deixar abalar. E mesmo que todos achassem o contrário, após o acidente ele continuou sendo essa pessoa muito extrovertida e aventureira.
Sei que sua história vai servir de inspiração para milhares de pessoas, assim como serviu para mim.
Caiã Almeida, 14 anos, sobrinho de Kazê Fraga.
Março de 2015
Apresentação e Dedicatória
Prezada leitora,
Prezado leitor,
Primeiramente, quero dizer que me sinto muito honrado por você estar lendo estas minhas palavras.
Escrevi estas páginas baseando–me nas minhas lembranças e impressões pessoais.
Creio que, algumas vezes, você poderá perceber que está vendo com os meus olhos, andando com minhas rodas, ou empacando comigo em meus obstáculos. Se isso acontecer, terei alcançado mais um grande objetivo na VIDA!
Também tentei escrever um livro com algum conteúdo e experiências minhas bem–sucedidas como tetra e cadeirante; coisas que poderiam ter me ajudado logo após o meu acidente, se eu tivesse podido ler um livro com dicas assim. Mas não tenho a pretensão de ser exemplo a ser seguido. Gostaria apenas de lançar alguma inspiração.
Além dos meus textos, você vai encontrar aqui alguns depoimentos de amigos e familiares. Poderá sentir falta de palavras de algumas pessoas queridas –entendo e respeito terem preferido não escrever, pois cada um tem seu próprio tempo para lidar com os acontecimentos.
Ao escrever este livro, me emocionei, parei várias vezes, chorei, vivi tudo de novo.
Peço desculpas caso não tenha mencionado o nome de alguém. São tantas as pessoas que tornaram mais significativa a minha trajetória, que ficaria difícil nomear todas!
Assim, aproveito para dedicar este livro à minha família, aos meus amigos e a todas as pessoas que fizeram e fazem parte da minha história!
Kazê Fraga
Rio de Janeiro, 08 de outubro de 2014.
I
Março de 2012 – Hospital Sarah Kubitschek Belo Horizonte, MG, Brasil
Entrei pela porta principal do Hospital Sarah Kubitschek¹ de BH² guiando minha cadeira motorizada, olhando tudo à minha volta, enquanto o amigo Cosme caminhava ao meu lado. Desta vez, não estava imobilizado sobre a maca. O cenário não tinha mais tanta novidade. Pude perceber que, ao redor, também me observavam. Talvez estivessem pensando que eu era mais um novo paciente. De fato, para o procedimento que faria, eu era um novo paciente.
Só o que não era novo eram meus pensamentos e emoções, que me remetiam a vinte anos e dois meses no passado, quando ingressara pela primeira vez no Hospital Sarah Kubitschek (de Brasília), cheio de dúvidas, medos, perguntas sem respostas, ou, pior, perguntas com respostas que não me agradavam, saudades de casa, da família, dos amigos, e... recém–tetraplégico.
Desta vez, estava no hospital para realizar um procedimento que facilitaria bastante a vida de alguém que, como eu, perdera o controle dos esfíncteres.³Tomaria injeções de botox na bexiga, o que, na prática, me traria mais conforto e me livraria do uso vinte e quatro horas por dia da camisinha com tubo e saco coletor de urina
(não que eu seja contra a camisinha, mas prefiro reservá–la para ocasiões especiais). Então, a expectativa era grande!
Normalmente sou bem falante; gosto de conversar sobre qualquer assunto e com todas as pessoas. Sempre acho que todo mundo tem alguma coisa para me acrescentar. Porém, dessa vez, estava mais calado, mais observador e pensativo, revivendo intensos momentos, ora dos últimos vinte anos e dois meses para cá, ora dos dezoito anos anteriores ao dia 1º de janeiro de 1992.⁴
Apesar de detestar ir a hospitais, quando vou para o Sarah, vou feliz, relaxado. Me sinto indo para minha própria casa, sendo acolhido pela minha própria família. Esse retorno ao Hospital Sarah teve um significado bastante forte em mim e não imaginava o quanto isso influenciaria em meus próximos projetos!
E foi justamente dentro do Sarah de BH, em março de 2012, que me ocorreu a ideia para o título
deste livro (que já vinha rascunhando desde 1992), onde conto um pouco da minha trajetória: Vinte anos e dois meses depois.
1 Hospital Sarah, Hospital Sarah Kubitschek, Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação –Nomes pelos quais são conhecidas várias unidades hospitalares brasileiras destinadas ao atendimento de vítimas de politraumatismos e problemas locomotores, objetivando sua reabilitação. São mantidas pelo Governo Federal, embora sua gestão seja feita pela Associação das Pioneiras Sociais. Visite: http://www.sarah.br
2 BH –Cidade de Belo Horizonte (capital do estado de Minas Gerais, Brasil).
3 Esfíncter – Músculo do corpo em forma de anel, que abre e fecha, permitindo a passagem de líquidos e outros materiais. Ex.: o esfíncter da bexiga, o esfíncter pilórico, o esfíncteranal.
4 1º de janeiro de 1992– Vou falar dessa data mais adiante.
Dicas e/ou sugestões interessantes para cadeirantes, seus familiares e ajudantes.
II
Parece uma franquia
Embora eu estivesse no Hospital Sarah de Belo Horizonte pela primeira vez, não sentia muita diferença do Sarah do Rio de Janeiro ou de Brasília. Na verdade, pela ótica do paciente, esses hospitais da Rede Sarah são muito parecidos. A estrutura, a organização, a logística, tudo muito igual. Parece até franquia! (Por um segundo, fiz analogia do Sarah com algumas franquias de fast food que conhecia.)
Estava muito frio. Deitado na cama da enfermaria ao lado de outros pacientes, coberto com três cobertores e usando touca de lã, conversei um pouco com o enfermeiro que me atendia. Ele comentou que já tinha ouvido falar sobre mim e as atividades que eu desenvolvia. Também disse que estava surpreso por eu realizar tanta coisa, e que ele não fazia nem a metade.
Depois, sozinho, os pensamentos afloraram. Não tive como deixar de lembrar detalhes dos dois últimos réveillons que antecederam a minha perda de movimentos.
Um deles, aos dezessete anos, no Rio de Janeiro, em meio a comemorações na praia da Barra da Tijuca com minha irmã e meu cunhado, quando resolvi soltar fogos de artifício. Escolhi um morteiro de três tiros
(também conhecido por rojão de três tiros
). Acendi. O morteiro estourou, mas não percebi que o terceiro tiro
não havia saído. Quando abaixei o braço, o terceiro tiro
estourou na altura do meu peito. Fiquei um pouco ferido
fisicamente, bastante tonto e temporariamente surdo. Ainda me lembro das pessoas me socorrendo, suas bocas abrindo e fechando,