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O futuro que esqueceste
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O futuro que esqueceste
E-book445 páginas6 horas

O futuro que esqueceste

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Sobre este e-book

É A ESTREIA DE MATÍAS PRATS NO MUNDO DO ROMANCE. UMA HISTÓRIA ORIGINAL E SURPREENDENTE, UM REFLEXO DOS PROBLEMAS QUE ENFRENTAMOS TODOS OS DIAS E UMA REFLEXÃO AGUDA SOBRE O QUE É MAIS IMPORTANTE NA NOSSA VIDA.
Paula Llorente, uma das tenistas mais relevantes dos últimos tempos, desaparece sem deixar rasto numa praia do litoral catalão. O país está comovido. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu, mas os possíveis problemas de saúde mental e a depressão que arrastava apontam para um suicídio.
Rodrigo, um jornalista recém-divorciado, imerso num complicado processo pessoal e profissional, vê-se obrigado a mergulhar no universo da tenista desaparecida para preparar uma reportagem que acabará por se converter numa obsessão por Paula e tudo o que rodeava a sua vida: glórias e misérias, amores e deceções... algo que para Rodrigo também significará uma viagem em direção a si mesmo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de abr. de 2023
ISBN9788491399155
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    O futuro que esqueceste - Matías Prats

    Editado pela HarperCollins Ibérica, S.A.

    Avenida de Burgos, 8B

    28036 Madrid

    O futuro que esqueceste

    Título original: El futuro que olvidaste

    © 2022, Matías Prats Chacón

    © 2023, para esta edição da HarperCollins Ibérica, S.A.

    Tradutor: Fátima Tomás da Silva

    Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

    Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

    Desenho da capa: Lookatcia

    Imagem da capa: Arcangel

    1.ª edição: Abril 2023

    ISBN: 9788491399155

    Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

    Sumário

    Créditos

    Dedicação

    Há quase dois anos Paula Llorente desaparecida

    Um pontapé por baixo da mesa

    A família Llorente

    A capa do Crónica

    O vizinho de Paula

    Café com leite

    A vidente

    Gargalhadas amargas

    A gruta

    Quem raios é Mario?

    A menina nunca se rendia

    Fracassar estrepitosamente

    Rumores

    O bilhete

    Um sopro de ar fresco

    A confissão

    No fundo do mar

    Gritou comigo

    O rei

    Acho que te amo

    A despedida

    Mudança de ares

    O homem loiro

    Crónica domingo

    Na atualidade o fio

    Sempre com o chinês

    Jovens talentos

    Épocas menos fáceis

    O intocável

    Ponto de inflexão

    Nunca ninguém se queixou

    O trapaceiro

    Flores silvestres

    O precipício da tristeza

    O aniversário da Toñi

    Apostas ilegais

    Digo-te que sei que me puseste os cornos

    Spinning

    Virar a página

    No futuro, fortaleza

    Fica comigo

    O ténis vai à merda

    Necessito que acredites em mim

    O seu sofrimento acabou nesse dia

    Número desconhecido

    Para a minha mãe, lutadora infatigável apesar das circunstâncias. Exemplo de amor e de vida.

    E para o meu amigo Carlos. Obrigado por ficares connosco e por nos recordares que nunca devemos parar de acreditar.

    Ontem à noite, voltei a sonhar que alguém morria. Nunca me lembro de quem ou se o conhecia. O que me lembro é da angústia. É um sonho confuso e sem sentido. Imagens sombrias e caóticas que não estão ligadas e em lugares que nem sequer reconheço. Não é um assassinato, não é um acidente, não é uma morte natural. Não sei o que é. O que me lembro é de que alguém morria.

    Quando o despertador tocou, tinha o corpo rígido. Carolina dormia ao meu lado, de costas para mim. Ontem à noite, chegou tarde. Outra vez. Levantei-me com cuidado para não a acordar, fechei-me na cozinha e observei o começo de um novo dia da janela. Precisava de um instante de reflexão antes de acordar Rodri, o meu filho.

    A luz ténue da manhã entrava pela janela. Era uma luz cinzenta, como o meu espírito. Soprei o chá, demasiado quente, e comecei a organizar o meu dia. Tinha de deixar Rodri na escola e, depois, acabar uma reportagem para o número de domingo: a história muito aborrecida de um casal que, depois de abandonar os seus respetivos cargos de grande responsabilidade num banco, montara uma empresa de sumos naturais e, agora, faturava milhões. Que mérito. Ufa, só de pensar nisso, ficava com vontade de voltar para a cama.

    Suponho que seja normal, que aconteça com todos. Estar desmotivado no trabalho. Sem vontade, sem ambição, sem metas ou objetivos para cumprir. Só subsistir. Desde que me tiraram da secção da Cultura e me mudaram para o suplemento dominical, estar na lista de pagamentos de cada mês transformou-se na minha única razão para continuar no jornal. A demissão de Chato e de mais outros quarenta e um colegas da redação há dois anos causou-me uma rejeição absoluta pela empresa. A forma de administrar aquele ERE[1] foi cruel, desumana, com uma falta de humanidade inegável. Todos os dias, lembro-me das imagens dos meus colegas a arrumar as suas coisas das gavetas com lágrimas nos olhos. Alguns, a maioria, foram despedidos depois de trinta anos dedicados de corpo e alma ao jornal. Eu próprio quase desisti de tudo naquela altura, mas Chato deteve-me. «Não te faças de herói», disse-me, com lágrimas nos olhos, «só te mudaram para o dominical. Aproveita a oportunidade.»

    Mas que oportunidade? O diário Crónica deixara de ser um ponto de referência há muito tempo. Eu continuo a estar prestes a despedir-me todas as semanas. Mas, depois, penso em Rodri: o que acontecerá ao meu filho? Como vou sustentá-lo se não tiver trabalho, agora que consegui a custódia partilhada? Já tenho uma certa idade e o jornalismo está como está. Não vão contratar-me em nenhum outro lugar. Só trabalhei no Crónica durante toda a minha trajetória profissional. Não conheço nada senão este edifício e esta redação. E, sobretudo, não sei fazer nada que não seja escrever. Mesmo que sejam apenas reportagens estúpidas sobre milionários ainda mais estúpidos.

    Bebi o último gole da minha chávena de chá e fui acordar o Rodri. Faço-o sempre de forma gradual, evitando o som retumbante e desagradável de um alarme. Acedo ao quarto dele silenciosamente e aproximo-me da janela. Puxo a persiana lentamente, o suficiente para que um pequeno raio de luz bata na cama, mas nunca à altura dos seus olhos. Acaricio-lhe um pouco o cabelo e sussurro-lhe alguma coisa ao ouvido. O último passo é beijá-lo suavemente na testa. Antes de o fazer, às vezes, fico a olhar fixamente para ele durante alguns minutos sem que ele se aperceba. Parece um anjo.

    — Bom dia… — sussurrei-lhe ao ouvido, com suavidade. — Está na hora de acordar para ir para a escola.

    Rodri espreguiçou-se na cama e sorriu. Esse sorriso fazia com que tudo o resto valesse a pena, com que todas as minhas preocupações desaparecessem por um instante.

    — Rodri — informei, servindo-lhe uma taça de leite com bolachas —, lembra-te de que, esta tarde, a mamã vai buscar-te à escola.

    Ficou pensativo por um instante.

    — Este fim de semana, tenho de estar com ela? — perguntou, num tom ainda atenuado pelo sono.

    Estava prestes a fazer dez anos e aceitara a separação e o regime de custódia partilhada com bastante naturalidade. Era um menino muito maduro para a sua idade. Nós, os seus pais, estávamos a fazer um esforço para que o nosso filho se sentisse integrado nos seus novos núcleos familiares. Complicada era a forma de o levar a cabo. A organização. E também o facto de Mario, o namorado de Bárbara, não ser santo da sua devoção.

    — Sim — encorajei-o —, de certeza que têm algum plano divertido para o fim de semana.

    — É uma chatice andar a mudar de casa a toda a hora — queixou-se.

    — Eu sei, querido. Mas ambos te amamos muito e queremos passar todo o tempo que possamos contigo.

    — Entendo, mas é uma chatice. — E soprou.

    Depois de deixar Rodri na escola, fui diretamente para a redação. Normalmente, volto a casa para tomar o pequeno-almoço com Carolina e desfrutar de um bocadinho de privacidade, mas, hoje, não tinha vontade nem forças. Não depois de ter voltado a chegar tarde ontem à noite e da sua atitude durante as últimas semanas.

    — Olá, Mercedes, estás muito bonita hoje!

    — Ai, Rodrigo. — E riu-se. — Como estás, querido?

    — Melhor desde que te vi — respondi, esforçando-me para parecer alegre.

    — Ora… que brincalhão!

    Mercedes, a secretária, já estava no Crónica quando cheguei em 1999. Acho que devem faltar-lhe uns cinco anos para se reformar, embora a sua vitalidade e energia continuem intactas desde o primeiro dia. Todos a adoram, até os chefes. Dirigi-me para a sala onde os redatores do suplemento dominical trabalham. Ao fundo, à direita. Como as casas de banho. É assim que nos consideram na redação, como a equipa da segunda divisão. Nenhum redator quereria fazer parte da equipa do suplemento. Eu também não queria, mas, agora, sou um deles e, embora o trabalho careça de prestígio, tenho de reconhecer que o meu chefe é muito competente e os meus colegas, agradáveis. Pelo menos, isso.

    Naquela manhã, Daniel, o diretor do suplemento, um tipo sério e metódico, estava a dar instruções a David para que corrigisse alguns parágrafos do artigo sobre a perseguição de Hitler aos escritores alemães assim que chegou ao poder, que publicaria nessa semana.

    — Rodrigo! — exclamou, deixando o artigo de David e aproximando-se da minha mesa. — Exatamente quem queria ver!

    — A mim? — perguntei, estranhando.

    — Gostas de desportos, não é?

    — Eh… Bom, gosto de os ver. — Deixei escapar um riso envergonhado. — E, de vez em quando, faço uma corrida ou dou uma volta de bicicleta, mas pouco mais.

    — Mas gostas — disse, com atrevimento.

    Não sabia onde queria chegar, mas tratando-se de Daniel, poderia ser qualquer loucura. Nos quase dois anos que passara no dominical, propusera-nos as reportagens mais loucas, embora tenha de reconhecer que algumas tinham sido bastante divertidas. Fonseca é um diretor dialogante, acessível e sabe como motivar a sua equipa.

    — Sabia! — exclamou, triunfante. — Tenho uma reportagem perfeita para ti. Lembras-te da Paula Llorente?

    «Paula Llorente», repeti para mim… «Claro, como podia não me lembrar?» Sem esperar resposta, Daniel continuou:

    — Dentro de quatro meses, faz dois anos que desapareceu.

    — Porra! — exclamei — Já passaram dois anos?

    Assentiu.

    — A morte traumática de uma das tenistas espanholas mais importantes do mundo — continuou. — Não achas que as pessoas gostariam que voltássemos a falar dela?

    — A verdade… — Refleti por um instante. — A verdade é que não me parece ter lido ou ouvido nada sobre a Llorente nos últimos tempos e houve uma boa confusão quando desapareceu. Não chegaram a encontrar o corpo, pois não?

    — Vês como te interessa? — Piscou-me o olho. — Anda, vai ver como ficou a investigação, como está a família e, sobretudo, tenta descobrir que porra fazia a nadar na Costa Brava naquele dia com um temporal de chuva e vento.

    — Sim… claro, não é má ideia. Podia tentar dar-lhe uma volta, contribuir com algo novo…

    — Ótimo. — Deu-me uma palmadinha nas costas e, ficando sério, acrescentou: — Sei que não é preciso dizer-te, mas tenta não remexer na merda e evita cair na morbidez fácil. Não especulemos, está bem?

    — Não te preocupes, Daniel.

    — Ah e leva o teu tempo, que há muita coisa para fazer.

    — Obrigado, Daniel.

    — Não me agradeças.

    E, tal como chegara, desapareceu no seu escritório.

    «Paula Llorente»… A sua morte fora um choque para a sociedade espanhola. Durante aqueles dias, não se falava de outra coisa. Tanto que até eu, apesar dos meus problemas pessoais e com o ERE a pender por cima das nossas cabeças, estive colado às notícias. Como o resto do país.


    [1] ERE ou «Expediente de Regulación de Empleo» supõe a suspensão ou despedimento de parte do pessoal da empresa, motivado pela situação negativa da empresa, com o apoio do Governo. (N. da T.)

    Há quase dois anos Paula Llorente desaparecida

    Ao sair do duche, ouvi o seu nome em uníssono na televisão e na rádio e o tom premente dos repórteres alarmou-me logo. «Paula Llorente, a tenista Paula Llorente…». Desliguei o rádio e, de toalha e com o cabelo ainda a gotejar, fiquei parado à frente da televisão. Em todas as cadeias, estavam a falar do mesmo. Escolhi um desses programas típicos da manhã em que há de tudo: informação, conversa política, atualidade, rixas de bairro, mexericos, inclemências meteorológicas… As notícias ainda eram confusas, assinalava a apresentadora, com um ar preocupado. O que se sabia naquele momento era que Paula Llorente, a melhor tenista da história do nosso país, estava em paradeiro desconhecido desde segunda-feira ao meio-dia. Hoje, era quarta-feira.

    «A tenista estava a passar uns dias de relaxe na Costa Brava e, segundo fontes próximas do caso, na manhã de segunda-feira, apesar do mau tempo, tinha saído para nadar», continuou a apresentadora veterana, rainha indiscutível das manhãs. «Um vizinho deu o alarme ao ver que não regressava a casa e, depois disso, vários agentes da polícia estão à procura dela por terra, mar e ar. Até ao momento, a única pista são várias peças de roupa pertencentes a Paula encontradas junto da margem na cala de Rincón de los Hombres.»

    «Ui», pensei, «que mau aspeto.» A apresentadora, a cuja direita aparecera uma fotografia de arquivo de uma Paula sorridente, começou a relatar que, todos os anos, morrem mais de quatrocentas pessoas afogadas no nosso país por causas muito diversas: perda de sentidos, traumatismos, fadiga, desorientação, falta de vigilância em praias e piscinas… Não seria assim tão estranho, pensei, se não se tratasse de uma desportista de elite. Era verdade que já estava retirada, mas ainda era jovem e, segundo se sabia, tinha boa saúde.

    Mudei de canal. Noutro programa parecido com o que acabara de abandonar, estavam a falar do estado do mar no dia em que Paula desaparecera. Parece que, nessa zona, houve marés vindas do noroeste e ondas de dois metros, para além de aguaceiros esporádicos e rajadas fortes de vento. Não parecia a manhã ideal para sair para nadar, certamente. Consultei fugazmente os jornais digitais e quase todos tinham o desaparecimento da tenista Paula Llorente na capa. Nesse momento, apercebi-me de que ia chegar atrasado à minha aula de inglês, portanto, pousei o telemóvel e liguei o rádio enquanto me vestia. Numa emissora prestigiada, os cinco comentadores mais importantes juntaram-se a um locutor veterano, aqueles que se gabam de ser experientes em qualquer matéria. Tanto analisam com detalhe a última sentença judicial de um político condenado por corrupção como falam do degelo da calota glaciar gronelandesa. Nesse dia, também eram especialistas em psicologia, criminologia, meteorologia e todas as ciências havidas e por haver. Fala-se muito do sensacionalismo da televisão, mas a rádio não lhe fica atrás. Um deles, diretamente, deu-a por morta. «Depois de quase quarenta e oito horas desaparecida e com estas condições meteorológicas… só falta transmitir os pêsames à sua família.» Sou jornalista e, se a minha profissão me ensinou alguma coisa, foi que temos de ser prudentes e respeitosos. Este senhor cometera um grande erro, porque, embora muitos de nós pensássemos o mesmo do que ele, ninguém devia ser suficientemente desajeitado para o verbalizar num meio de comunicação social. Imaginei os pais ou os irmãos de Paula a ouvir a rádio nesse preciso instante e senti um aperto no coração. Por muito mau aspeto que aquilo tivesse, supostamente, a esperança é a última a morrer. Pelo menos, podiam ter a decência de não lhes arrebatar isso. Outro comentador insinuou que a ex-tenista estava a atravessar um mau bocado pessoal. «Eu tinha ouvido dizer que estava deprimida, que não queria saber nada de ninguém.» Esse comentário serviu para esporear outro dos que participavam na conversa: «Há desportistas que não sabem o que fazer com a sua vida depois da retirada e caem num buraco». «Que carniceiros», pensei. Certamente, nenhum deles conhecia Paula nem o ambiente de Paula. Provavelmente, todos eles ignoravam o dia-a-dia de Paula Llorente, o que fizera depois de acabar a sua carreira ou o seu estado de espírito nos últimos tempos. Definitivamente, falavam por falar, emitiam um julgamento sem ter a menor ideia.

    Ainda não tinha acabado de me arranjar quando o telemóvel vibrou. Adivinhei quem era antes de pegar nele.

    — Olá, chato, tudo bem?

    Ri-me.

    — Olá, Chato — disse.

    Todos chamavam Chato a José, porque ele chamava «chato» a todos. E Chato adorava a sua alcunha. Tanto que começara a assinar assim há alguns anos, como se fosse um pseudónimo.

    — Ouviste falar da Paula Llorente? Porra, tem mau aspeto, não te parece? Achas que se afogou ou que se suicidou? Porque…

    — Não tenho tempo agora, Chato — interrompi. — Tenho de ir a correr para a aula de inglês e ainda não acabei de me vestir. Depois falamos.

    Um pontapé por baixo da mesa

    Atei os atacadores das botas, agarrei no casaco e saí a correr. Tenho o turno da tarde, mas como tenho consciência de como é importante ter alguma disciplina, de manhã, alterno entre o ginásio e as aulas de inglês.

    — Senhor Rodrigo, bom dia! — cumprimentou-me Mauricio, o meu porteiro, levando o seu cigarro à boca. — Como está tudo?

    — Bem, muito bem, Mauricio, obrigado. Estou atrasado!

    — As suas aulas? — E sorriu para mim.

    — Sim — respondi, saindo o mais depressa possível. — Até mais tarde!

    — Até mais tarde, senhor — disse, acabando o cigarro. — Que aprenda muito!

    Mauricio passava mais tempo fora, à porta, do que dentro do edifício. Tinha sempre uma palavra amável ou uma piada má para contar. Sabia a vida dos inquilinos de cor.

    Gosto de viver onde vivo: no bairro de Prosperidad. Só o nome transmite bem-estar, esperança, felicidade. Foi aqui que nasci, foi aqui que cresci e é aqui que quero morrer. Só abandonei o bairro durante os anos do meu casamento com Bárbara e senti a falta dele em cada um daqueles dias. É verdade que nunca tinha deixado de vir, porque os meus pais residem aqui, assim como vários dos meus melhores amigos. Este bairro começou a gerar-se em meados do século XIX, quando esta zona era terra de cultivo em que trabalhavam camponeses e ganadeiros em busca de um futuro próspero, literalmente. Foram construindo as moradias, normalmente a cargo de mestres de obra ou até autoconstruídas pelos seus proprietários. Na Prospe, há ruas estreitas, com árvores frondosas que, às vezes, impedem a passagem da luz. Existem imensos comércios, praças, igrejas, cinemas, restaurantes… e, sobretudo, há a sua gente. Personagens heterogéneos, diversificados, jovens e mais velhos, espanhóis e imigrantes, que gostam de viver no bairro, conhecer-se e falar de tudo.

    É um bairro humilde e solidário. Se, às três da madrugada, uma mulher gritasse a dizer que a criança tem fome, estou convencido de que seriam muitos os que acudiriam em seu auxílio. Aqui, as pessoas interessam-se pelo que se passa com o vizinho e querem ajudar. Pessoas trabalhadoras, fundamentalmente.

    É claro, cheguei atrasado, o que me conquistou um olhar severo da professora. Sentei-me no meu lugar e tentei seguir a aula com atenção, mas não parava de receber mensagens de amigos e conhecidos a perguntar-me pelo estranho desaparecimento de Paula Llorente, como se o mero facto de ser jornalista garantisse que tivesse sempre informação suculenta, relevante ou exclusiva. Guardei o telemóvel. No entanto, não conseguia concentrar-me. Indevidamente, a minha mente estava ocupada com a notícia que mantinha boa parte do país em choque. Que cena. Paula Llorente, uma jovem bem-sucedida, estava desaparecida. Comecei a dar voltas à cabeça. Tentei recordar se eu próprio tinha vivido alguma experiência traumática no mar em que tivesse temido pela minha vida. Uma tia minha faleceu na praia em circunstâncias estranhas, mas isso aconteceu antes de eu nascer. No que me diz respeito, no máximo, um mau bocado causado por uma imersão de algum amigo cabrãozinho durante a adolescência. A minha relação com a água sempre foi de respeito mútuo, nunca me teria ocorrido entrar num mar revolto… porque é que Paula sairia para nadar com tão mau tempo? No fim, não consegui aguentar e, com dissimulação, consultei a página da Internet do meu jornal. Depois do que tinha ouvido na rádio, queria saber como estavam a lidar com assunto no Crónica. Quando acontecem estas desgraças, até o meio de comunicação social mais sério corre o risco de cair no sensacionalismo que, basicamente, consiste em produzir sensações, emoções ou impressões no leitor, perseguindo um interesse meramente comercial. No Crónica, costumamos ser bastante escrupulosos no tratamento deste tipo de notícias, mas, nos últimos tempos, tinha percebido uma certa tendência para exagerar ou até manipular em busca do clique fácil. Basta escrever um título irresistível na página da Internet para causar a curiosidade do usuário, que acaba por clicar na notícia instantaneamente. Dei uma olhadela e verifiquei, aliviado, que desta vez, os meus colegas tinham sido rigorosos e se tinham limitado a narrar os factos já comprovados, sem especulações e fugindo do sensacionalismo. Como deve ser. Muitas páginas da Internet vivem única e exclusivamente de alimentar a morbidez das pessoas, essa necessidade vital de ver, ouvir, sentir ou interagir com o que, socialmente, se cataloga como proibido. E o mesmo acontece com certos programas de televisão que, há alguns anos, começaram a dedicar-se, fundamentalmente, a mergulhar nas misérias dos famosos do nosso país.

    Depois de quase duas horas de aula de inglês, regressei a casa a pé com passo leve. Não tinha tido tempo para tomar o pequeno-almoço e estava esganado de fome. Estávamos no fim de março, no princípio da primavera, uma estação cambiante e imprevisível. Aquela quarta-feira estava a ser um dia ventoso, com o sol escondido por trás dos edifícios mais altos da cidade. Ao passar por um mercado de rua, senti água na boca ao ver os produtos da época: morangos, alcachofras e tomates saborosos. Comprei o necessário para um almoço nutritivo: uma grande salada com rúcula, tomate, atum, nozes, abacate e frango, com um tempero de azeite e vinagre balsâmico.

    Ao chegar a casa, preparei a salada com esmero, abri uma cerveja e sentei-me a comer à frente da televisão. Queria saber das últimas novidades do desaparecimento de Paula Llorente. Nesse momento, no telejornal do meio-dia, estavam a fazer um perfil da tenista espanhola, recordando os seus grandes êxitos em campo.

    O palmarés de Paula era assombroso:

    Quatro vezes vencedora do Roland Garros.

    Dois Opens da Austrália.

    Três Opens dos Estados Unidos.

    Duas Copas da Federação (equivalente à Copa Davis na categoria masculina).

    Prata nos Jogos de Pequim em 2008.

    «Foi número um do mundo durante quase dois anos e quase sempre se manteve entre as dez melhores jogadoras do circuito.» O apresentador desapareceu do ecrã e começaram a desfilar imagens e vídeos dos melhores momentos desportivos de Llorente. «Além disso, conquistou mais de cinquenta torneios ao longo das suas quinze temporadas como profissional. O único Grand Slam que lhe resistiu foi Wimbledon. Tradicionalmente, a erva londrina é território hostil para os tenistas espanhóis, embora alguns como o Santana, o Nadal ou a Conchita Martínez tenham conseguido levantar o prezado troféu no All England Club, vestidos de branco impoluto.»

    Consultei as redes sociais (fundamentalmente o Twitter) e verifiquei que a notícia gerara um terramoto informativo não só no nosso país, mas no mundo inteiro. Paula era conhecida e admirada em todos os territórios onde o ténis era um desporto de referência, como, por exemplo, em França. Llorente ganhara a alcunha de «a rainha de Paris» durante muitos anos por causa dos seus grandes triunfos na capital francesa. E a sua grande rival histórica era francesa: Mery Courtemanche. O seu apelido significa «manga curta» (sempre achei graça). Era uma jogadora brilhante, muito competitiva e de muito mau feitio. Adorei quando Mery ficou a perder nas duas finais do Roland Garros contra Paula! Grandes batalhas!

    Sempre gostei de ténis, portanto, até certo ponto, seguira a carreira de Llorente. Sabia que se retirara há alguns anos, quando acabara de fazer trinta e dois anos. «Demasiado cedo», pensei, quando o tornaram público. No nosso tempo, os tenistas profissionais costumam continuar a jogar até aos trinta e cinco ou trinta e seis, mas dava a impressão de que acabara completamente esgotada e há muito tempo que perdera o entusiasmo pelo ténis. Suponho que não seja fácil conviver com a pressão de ser sempre uma das favoritas, de ter de ganhar quase por obrigação cada jogo ou cada torneio. E isso sem contar com a rotina de um desportista de elite. Os tenistas viajam praticamente todas as semanas quando estão a meio de uma temporada. Mais ou menos, uns cem mil quilómetros por ano. É como dar a volta ao mundo três vezes! E, assim, temporada atrás de temporada. Qualquer um acabaria sem forças.

    Paula Llorente desaparecera em Sant Antoni de Calonge, uma pequena localidade costeira situada na província de Girona, na comarca de Bajo Ampurdán. A julgar pelo que estava a ouvir na televisão, ninguém sabia muito bem o que Paula estava a fazer lá. Dizia-se que escolhera esse lugar como retiro espiritual durante algumas semanas ou talvez alguns meses. Arrendara um apartamento numa urbanização próxima da praia e vivia sozinha. Paula Llorente nunca se casara nem tivera filhos. Tinham falado de várias relações sentimentais ao longo dos anos, embora sempre tivesse tentado ser discreta. Quando era muito jovem, saíra com um jogador italiano muito bonito, Fabio Caruso e, durante muito tempo, espalhou-se o rumor de que estava a sair com o seu treinador, o francês Boisson, mas ela nunca o confirmara. Odiava ser uma personagem pública, detestava ver-se nas páginas das revistas cor-de-rosa e odiava a perseguição dos fotógrafos e das câmaras de televisão. Desde que se retirara, raramente aparecia e tentara manter-se sempre em segundo plano. Lembro-me de a ter visto no torneio de ténis que se celebra no mês de maio em Madrid ou em algum evento de beneficência, mas pouco mais. Suponho que fosse esse mistério em torno da vida atual de Paula que alimentava o interesse e a morbidez de todos.

    As televisões reagiram depressa: ao meio-dia, todas as grandes cadeias do país tinham equipas em Sant Antoni de Calonge, situada a cerca de cem quilómetros de Barcelona. Na televisão dos nossos dias, há algo que é mais importante do que qualquer outra coisa: o direto. Em todos os canais de televisão, passavam constantemente do set para o bombardeio de imagens e para os seus repórteres in situ, que dão informação de diferentes pontos com legendas chocantes a cobrir grande parte do ecrã. De manhã, programas em direto. E à tarde, mais programas em direto. Quase não têm dados novos, limitam-se a repetir o mesmo durante horas e horas, mas, se nos descuidarmos, apanham-nos. O desaparecimento em condições misteriosas de uma estrela como Paula Llorente garantia-lhes várias semanas com um êxito notável de audiência, fosse qual fosse o desenlace. Em Espanha, adoram as tragédias e os dramas, o que podemos fazer? Um bolo para dividir que irá para quem souber vender melhor a história. E era precisamente por este motivo que tinham de estar ao corrente da notícia, com todos os recursos disponíveis. A equipa de trabalho básica é enviar um jornalista e um operador de câmara para o local dos factos. Também existe a figura do produtor de televisão. Aquela pessoa responsável por organizar os recursos humanos e técnicos, que resolve os problemas que possam surgir durante a cobertura e que tem o controlo do orçamento do programa. Muitas cadeias optam por enviar várias equipas para cobrir a notícia. Ao fim e ao cabo, esse conteúdo será a pedra angular de diversos programas durante muitos dias e também terá um papel protagonista nos telejornais. Já estavam todos lá. As mulheres repórteres, com microfones nas mãos, ganhavam aos homens de forma esmagadora. Elas são muito bem vistas no mundo da televisão: conquistaram a fama de eficientes e trabalhadoras.

    Depois do almoço, evitei que a preguiça se apoderasse de mim e fui rapidamente trabalhar. Ao entrar pela porta, como sempre, fui recebido pelo cumprimento afetuoso de Mercedes:

    — Olá, Rodrigo, boa tarde, almoçaste bem?

    Desde que me divorciei, ela mostrava a sua preocupação sincera com a minha alimentação.

    — Uma salada espetacular — respondi, piscando-lhe o olho.

    Mercedes deve ter visto de tudo no jornal e é a pessoa mais discreta e fiel que conheço. Podemos tentar surripiar-lhe informação durante horas sobre algum assunto perturbador que Mercedes não dirá nem uma palavra.

    Deixei o casaco no bengaleiro e sentei-me no meu lugar, uma mesa ampla que partilhava com outros dois colegas na secção da Cultura. Este é um momento de transição na redação do jornal: alguns foram-se embora, outros regressam depois do almoço e os do turno da tarde começam o seu dia de trabalho. Enquanto o computador se ligava, fui buscar uma infusão. Na cozinha da redação, há conversas a qualquer hora e, nesse dia, os jornalistas de todas as secções estavam a comentar a notícia do momento. É claro, havia várias teorias, cada uma mais arrevesada e sombria. Carlitos, da Atualidade, estava convencido de que Paula Llorente tinha sido raptada pela máfia russa. José Ángel, que normalmente escrevia nas páginas de Ciência e Saúde, apostava na teoria do suicídio. Todos discutiam furiosamente para defender a sua teoria. Servi-me de um chá de camomila e fiquei a ouvir por um instante, mas não disse nada.

    Nesse momento, alegrei-me por não ser o responsável por escolher a capa do jornal de amanhã. Imaginem que escolhemos encher a página com o desaparecimento de Paula Llorente e que, às oito da manhã do dia seguinte, aparece viva… ou morta. Nesse caso, a capa não teria vigência nenhuma e ofereceríamos uma notícia completamente desatualizada durante todo o dia. Nisso, a página da Internet pode mudar-se facilmente em alguns segundos, mas, nas edições impressas, temos de ter muito cuidado. Às vezes, é melhor não arriscar e optar por outros assuntos de interesse geral para a edição em papel que se vende nos quiosques. A questão é que os deixei a discutir e regressei à minha mesa. Tinha bastante trabalho por fazer. Tinha de redigir um artigo sobre a afluência aos museus espanhóis que, segundo os dados que acabara de receber, aumentara ligeiramente nos últimos dois anos, sendo o Prado o mais visitado com distinção. Portanto, pus mãos à obra. Antes, estava a redigir um e-mail para a chefe de imprensa do novo ministro da Cultura para marcar uma entrevista, quando senti um pontapé por baixo da mesa.

    — Porra! — exclamei — Enlouqueceste?

    Nacho, o meu companheiro na Cultura, sorriu e indicou-me que olhasse para a porta. O meu coração quase parou. Carolina, a jovem promessa do jornalismo político do Crónica, acabara de chegar à redação. Tinha a equipa masculina toda revolucionada, já que, para além de jovem e bonita, estava a demonstrar que era uma grande profissional. Ainda não passara um ano a trabalhar no Crónica, mas já provara sobejamente que tinha qualidades para o fazer. Mexe-se como peixe na água pelos corredores do Congresso e sabe ganhar a confiança dos deputados e senadores, que acabam por lhe revelar dados de altíssimo interesse jornalístico. É uma rapariga alta, magra, de cabelo castanho e ondulado, de nariz fino e sorriso amplo. Tem uma personalidade arrasadora. Por enquanto, estou a ser discreto. Não temos uma relação próxima. Quando nos encontramos na redação (ela entra e sai constantemente), Carolina cumprimenta-me com simpatia, comenta fugazmente algum artigo meu ou, às vezes, passa diretamente ao meu lado. É como atirar uma moeda ao ar. Questiono-me se será solteira. Tentarei jogar as minhas cartas com inteligência. Pensarei num modo de me aproximar dela progressivamente.

    — Olá, rapazes! — cumprimentou, ao passar à frente da nossa mesa. — Boa tarde, Rodrigo! Tudo bem?

    — O… olá — cumprimentei. — Sim, tudo bem, obrigado. E contigo?

    Senti que ficava vermelho como um tomate e Nacho começou a rir-se baixinho. Não tinha dito a ninguém que gostava dela, mas, pelos vistos, era impossível escondê-lo.

    — Conseguiste a entrevista com o ministro da Cultura?

    — Eh… — Pigarreei. — Estou a redigir o e-mail para a sua chefe de imprensa.

    — Diz que vais da minha parte, que a conheço bastante bem. Vais ver que te marca logo uma reunião.

    — Ah, está bem… muito obrigado.

    Esboçou um sorriso antes de seguir para a sua mesa e percebi como começava a derreter-me. Nacho continuava a rir-se e dar-me pontapés por baixo da mesa, portanto, tentei mudar de assunto.

    — Olha, Nacho, quem mandámos para a notícia da Paula Llorente?

    — O Edu, do Desporto — respondeu. — Embora ache que também vão enviar o Marc e o Alberto de Barcelona.

    Marc era um redator da nossa delegação na Catalunha que era capaz de desempenhar qualquer função. Um jornalista polivalente, um batalhador do nosso jornal que também participava em alguns debates da televisão autónoma catalã. Alberto era um fotógrafo veterano que colaborava com o Crónica desde 1989, primeiro, em Madrid e, depois, em Barcelona. O desaparecimento de Paula Llorente era uma notícia bombástica e, no jornal, devíamos estar à altura.

    Nesse momento, alguém pediu silêncio e aumentaram o volume de uma das várias televisões que temos na redação. Começava a declaração do chefe do Grupo de Desaparecidos da Polícia Nacional. Toda a redação estava pendente das palavras de Pedro Herranz, que confirmava o desaparecimento de Paula e o qualificava de alto risco.

    «Foi vista pela última vez aproximadamente às 12h00 de segunda-feira, no dia 19 de março. Um vizinho encontrou-se com ela quando abandonava a urbanização onde estava a residir, na avenida de Andorra, em Sant Antoni de Calonge. Usava uma sweatshirt cinzenta, calções e ténis e

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