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Nova Apostila
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E-book194 páginas2 horas

Nova Apostila

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Sobre este e-book

Não há dúvida: trata-se de verdadeira aula de teoria geral do Direito Civil, mas não de uma qualquer. É aula de mestre, de gênio.

Se Augusto Teixeira de Freitas, nascido em 1816 e falecido em 1883, é quase unanimemente considerado o maior dos juristas brasileiros, a Nova Apostila, que o leitor tem em mãos, é seguramente um de seus textos mais brilhantes".
(Giordano Bruno | UFMG)
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de mar. de 2023
ISBN9786525275932
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    Nova Apostila - Augusto Teixeira de Freitas

    I. Sistema do Projeto

    Scimus, et hanc ueniam petimusque damusque uicissim, / sed non ut placidis coeant immitia, non ut / serpentes auibus geminentur, tigribus agni.¹

    Horácio

    A BONDADE de um respeitável amigo, a quem o Sr. Antonio Luiz de Seabra favorece com as suas relações, permitiu-nos, ao começar deste ano, ter entre mãos por alguns dias o Projeto do Código Civil Português. O conhecimento desta recente produção de um Jurisconsulto tão distinto era por nós ansiosamente desejado, e várias circunstâncias excitavam a sofreguidão de nossa curiosidade.

    Um diligente cultor da Ciência das Leis ama naturalmente os frutos do belo terreno em que trabalha, avalia por eles a eficácia de seus esforços. Ocorria ainda a coincidência notável de nos ter sido confiada pelo Governo Imperial uma comissão igual a essa, que em Portugal acabava de desempenhar o Sr. Seabra; e comissão já antecipada por trabalhos preparatórios, sob o título de Consolidação das Leis Civis, que o mesmo Governo Imperial se dignara aprovar por Decreto de 22 de Dezembro de 1858. E por demais, recrescia o particular interesse de comparar entre si trabalhos legislativos de dois Povos irmãos, que falam a mesma língua, que vivem sob os mesmos costumes. Estes nós de origem comum nunca se desatam, antes nutrem o mais justo sentimento de predileção.

    A verdade é uma só. A humana inteligência funciona em toda a parte pelos mesmos processos, trabalha com os mesmos instrumentos. Quando em dois países se fazem ensaios de reforma legislativa, e chega-se aos mesmos resultados, aí está uma prova, ou pelo menos uma probabilidade, de que se tem acertado. Se nos coubesse a fortuna de ver que um tão esforçado pensador, como o Sr. Seabra, colhera de suas investigações sobre o Direito, em geral, e sobre o Direito Civil, particularmente, as mesmas consequências a que nós logicamente fomos conduzidos, que melhor apoio poderíamos ter para dar voga aos nossos trabalhos, e mesmo fortificar-nos na justeza de nossos raciocínios? Infelizmente não tem assim acontecido! Ambos nos elevamos à região dos princípios, nós para podermos bem distinguir as relações de uma vida real, ele para descair em um mundo fictício. Nossas aplicações foram inteiramente opostas.

    O rápido exame que logo fizemos do Projeto do Código Civil Português foi para nós uma decepção tremenda. Recaíra ele, antes de tudo, sobre o Elenco das matérias do Projeto, cuja distribuição e ordem dar-nos-ia de pronto uma ideia do sistema seguido pelo nobre autor; e a impressão não podia ser mais alheia de tudo o que devíamos esperar. Dissemos, entre nós, que o nobre autor seguia talvez a opinião dos que nenhuma importância davam a questões de método — alias videri possit hujusmodi opus scholasticum potius quiddam, et methodus, quam corpus legum imperantium;² e, nesta persuasão, (tal era o respeito para com a pessoa do autor) fechamos o Livro para mais de espaço examinarmos o interno do trabalho em cada uma de suas disposições. Do sistema adotado não pensamos mais, convencidos como ficamos de que a ninguém seria dado justificá-lo.

    Ultimamente, porém, (há menos de quinze dias) veio-nos à vista um trabalho do mesmo ilustrado Jurisconsulto, onde asperamente responde a várias censuras que à 1ª Parte do Projeto fizera o Sr. Alberto de Moraes Carvalho; e com surpresa observamos que o exímio autor, dando pelo contrário às questões de metodologia toda a importância que merecem no ensino e estudo dos conhecimentos humanos e, maiormente, quando esse estudo e ensino tem por objeto os interesses práticos da vida, as relações jurídicas do homem, desenvolve as bases de seu plano, e julga mesmo ter achado o método mais lógico, simples e natural, que melhor promete explicar em uma exposição que já se acha nos prelos.

    Poderíamos esperar que esse novo trabalho viesse à luz para que se nos não taxasse de precipitados; porém cremos de nada mais carecer. Nossa ideia está feita, e, com a segurança que sempre dá toda a convicção íntima, vamos submeter ao critério dos homens sensatos, e às meditações do nobre autor do Projeto, este aditamento que oferecemos a sua apostila sobre as observações do Sr. Alberto de Moraes Carvalho. Estará para nós reservada a mesma sorte do advogado que, embrutecido pela prática forense, não se embriaga em perfumes da Filosofia do Direito?

    Não vimos as censuras do Sr. Moraes Carvalho, delas ajuizamos pela própria Apostila do Sr. Seabra; e, ainda que o talião estivesse no espírito do direito moderno, e não fosse sempre um triste meio de justificação, nem mesmo assim aprovaríamos o desdém com que o ilustre censor fora tratado. O Sr. Seabra solicitara uma discussão franca na arena da ciência, não queria, e com razão, críticas estultas, e considerações impertinentes de profanos; e as censuras do Sr. Moraes Carvalho não estavam, certamente, neste último caso. Se não estavam, deviam ser respondidas com a maior gravidade. Se o estavam, não deveriam ter as honras de resposta alguma.

    Os estudos jurídicos são geralmente reputados como áridos e ingratos, os hábitos da meditação não são muito vulgares; e, na verdade, assaz afligem esses golpes que a meia-sabedoria nunca dispensa. Bem afortunado foi o Sr. Seabra tendo por competidor um jurisconsulto provecto, a quem não falecem nem luzes nem experiência para bem aquilatar a sua obra. Quão diversa foi a nossa estrela!

    Publicado o primeiro fruto de nossas tenazes lucubrações (falamos da Consolidação das Leis Civis), a sua única censura foi a mudez do silêncio, quebrado apenas pelas vozes perdidas de dois artiguitos que inseriu o Diário do Rio de Janeiro, onde se nos falou de uns direitos mistos que até hoje não conhecemos, e se nos disse que as leis deviam ser escritas em estilo bíblico. Se não fôssemos de sobejo compensados pelo poderoso acolhimento do sábio MONARCA, que aprovou nossos trabalhos, e que por todos os modos entre nós alimenta o sagrado fogo da Ciência; se não fora também a outra preciosa recompensa de um doutíssimo voto oficial que precedera a essa aprovação soberana, talvez que tantas vigílias fossem desde logo condenadas ao mais profundo esquecimento.

    O nobre autor do Projeto, que pela sua Apostila instigou-nos a rever novamente seu trabalho, e a fazer desde já um exame que tínhamos reservado para mais tarde, chegou pelas suas investigações a adotar um método tão artificial, repugnante, e de tão funesta influência para o fundo do Direito Civil, que, muito a pesar nosso, e só por amor da Ciência, cumprimos o dever de opor-lhe a mais vigorosa resistência.

    Ele por largo tempo cogitou sobre a ordem que deveria seguir na codificação das Leis Civis, não deixou sem maduro exame os métodos até agora adotados, e as teorias imaginadas pelos mais doutos jurisconsultos. Mas qual o resultado de tantas meditações? Um desalento completo. Ingenuamente patenteia a sua triste convicção de que os maiores esforços do espírito humano jamais poderão resolver cabalmente o problema, por efeito da mesma natureza complexa do direito; lealmente reconhece que o mais a que se pode aspirar é fazer alguma coisa menos defeituosa do que tudo que até aqui se tem feito.

    Nós também por largo tempo, em todo o decurso de nossa prática forense, muito pensamos sobre este assunto, compulsamos os monumentos legislativos, combinamos com eles todas as teorias conhecidas, fechamos os livros, e interrogamos a natureza das coisas. E qual o fruto de tanto porfiar? Não achamos por certo a pedra filosofal, não nos desvanecemos com a vaidade de ter feito alguma descoberta; e, todavia, convencidos como estamos de que na ordem física e moral há uma realidade de coisas com as suas relações apreciáveis, que corresponde a um método natural, chegamos à crença íntima e firme de ter aproveitado dos trabalhos e pesquisas anteriores uma fundamental distinção, que nos fornece o único e verdadeiro princípio classificador do Direito Civil propriamente dito.

    Essa grande distinção é a que marca a diferença entre os direitos pessoais e os direitos reais. Ela estava latente em todos os Códigos e Legislações, manifestava-se variadamente por expressões dúbias, achava-se, e persistirá eternamente, no pensamento analítico e sintético do Direito, atuava por efeitos sensíveis e práticos na cena judiciária, reaparecia na cena econômica sob a face de valor, e ultimamente veio ostentar toda a sua importância nas novas ideias sobre o regime hipotecário moderno. Nada mais fizemos do que tirar partido dessa capital distinção, tão exata para o espírito, como apreciável na vida real, colhendo dela mais uma aplicação, que não era para desprezar.

    Não é agora ocasião de explicarmos e desenvolvermos o nosso sistema, e fora escusado encarecê-lo, na suposição de que o substituísse pelo seu o nobre redator do Projeto, esperança que não temos. De nossos trabalhos, e de nossas ideias, sobre a codificação civil, terá ele, e o Sr. Moraes Carvalho, perfeito conhecimento, lendo e meditando a Introdução da Consolidação das Leis Civis, que tomamos a liberdade de oferecer-lhes, assim como, em sinal de homenagem, ao Sr. Alexandre Herculano, sem dúvida o maior vulto literário de Portugal.

    O que temos a fazer aqui é examinar, à luz de uma crítica severa, porém, desapaixonada e amiga, essas proposições com que o Sr. Seabra justifica procurar o que ele chama sistema de seu Projeto — a distribuição de matérias desse mesmo Projeto —, e com ela todas as ideias gerais que se discutem na Apostila, por nós simplesmente adicionada. Censuras, e redarguições, que respeitem a assuntos de segunda ordem, indiferentes para o todo do sistema, e essência do Direito Civil, reputaremos alheias ao nosso propósito.

    "Qual é, se diz na Apostila, o nosso fim? Expor o Direito Civil na sua ordem mais simples e natural, ordem que não pode ser fundada senão na mesma natureza do direito. E o que é o Direito Civil? O complexo (tal é a resposta da Apostila) das regras ou disposições legais, que determinam e regem as relações privadas dos cidadãos entre si." Eis a primeira noção falsa, em que discordamos do nobre autor do Projeto, noção que viciou todo o seu chamado sistema, e o fez exorbitar das linhas do Direito Civil propriamente dito, de que ele privativamente deveria tratar. Por mais imbuído que se mostrasse o ilustrado escritor nas ideias de Bentham, não pôde ainda assim escapar ao vago desse insigne faux-fuyant que se tem chamado Direito Civil, e que infelizmente dá ensanchas para a mais deplorável confusão de ideias.

    Fechados os livros, meditando, desprendendo-se de preconceitos, o erudito apostilador em boa fé achará na sua poderosa inteligência que o Direito Civil, suposto seja um complexo de regras que determinam as relações dos cidadãos entre si, não abrange, todavia, todas estas relações. Na acepção lata da apostila, o ilustre jurisconsulto toma o todo pela parte, o gênero pela espécie, e usa de uma sinédoque que não se pode admitir em discussões de rigor filosófico. Chama Direito Civil o que devia chamar Direito Privado; envolve no Direito Civil o Direito Criminal que, certamente, é um ramo do Direito Privado, mas que não é o Direito Civil propriamente dito.

    Não pensamos que o nobre redator do Projeto esteja persuadido, como a maior parte dos Escritores Franceses, de que o Direito Criminal seja um ramo do Direito Público.

    Se o passado de seu Direito Pátrio, se os Estatutos da Universidade de Coimbra, monumento de alta sabedoria — sicut cymba in oceano; se a velha distinção entre crimes públicos e particulares, distinção ainda guardada na Reforma Judiciária de 1841, posto que omitida na posterior legislação do Código Penal, não o tiverem libertado de tão errônea persuasão; se ainda não se tem desquitado das noções tradicionais de um Direito Privado — quod ad singulorum utilitatem pertinet —,³ e de um Direito Civil — quod quisque populus ipse sibi constituit;⁴ abandone agora essas suposições falazes, que se têm perpetuado à mercê do som das palavras, mas que não acham lugar em qualquer espírito que distinga e firme ideias sem lhe importar a roupagem dos vocábulos.

    Se o Direito Criminal não entra na esfera do Direito Público, é bem claro que não pode ser outra coisa senão um ramo do Direito Privado. Se tanto nos não quiserem conceder, e uma vez que se não recuse também a distinção entre crimes públicos e crimes particulares, ao menos ser-nos-á permitido concluir logicamente que esses crimes particulares entram na órbita do Direito Privado, e que, portanto, o Direito Privado compreende alguma coisa mais do que as regras ou disposições de Direito Civil propriamente dito.

    Na pior das hipóteses, não deixaremos de reconhecer as boas consequências práticas dessa divisão das Leis, que distingue os direitos que são de interesse público daqueles que são de mero interesse privado — unicuique licet contemnere haec, quae pro se introducta sunt;⁵ porém ao mesmo tempo diremos que uma tal distinção, tão aproveitável no ponto de vista das faculdades jurídicas, é falsa e funesta em relação ao direito como sinônimo de complexo de leis.

    Ela conduz a uma eterna impossibilidade de traçar a linha divisória entre o Direito Público e o Direito Privado, impossibilidade em que laboram todos ou quase todos os Escritores Franceses e Alemães; bem que em seus escritos não deixam de entrever a ideia característica que só nos pode dar a base para uma precisa separação.

    E, na verdade, a persistir-se em tal ponto de vista, o Direito Civil será reduzido a um circuito mesquinho, pertencendo ao Direito Público uma grande parte de suas disposições, e ficando o pouco que lhe resta travado assim mesmo de uma mescla, que nem ao mais penetrante classificador consentirá livrar-se de uma perplexidade contínua. Eis a razão do irresolúvel problema por efeito da mesma natureza complexa do direito.

    "A divisão de todas as leis (dizemos nós em um outro trabalho preparatório, que nos foi incumbido pelo Governo Imperial, e que já se acha nos prelos), derivada da distinção e diferença das relações jurídicas das duas personalidades, que funcionam na vida inteligente, é uma divisão real, fundada na natureza das coisas.

    Ela é perfeita, e confirmada pela análise de todas as leis; porque fora dessas duas categorias não existe efetivamente lei alguma. Ela é perfeita, e racionalmente exata, porque o concurso de personalidades individuais, e de uma personalidade pública, não pode dar em resultado senão ou relações entre aquelas, ou relações com esta.

    Em toda a escala de suas manifestações, a personalidade pública mostra-se como poder simplesmente constituído, como poder constituído e organizado, como poder em ação efetiva; e, finalmente, desce à arena dos indivíduos, individualiza-se a par deles, e coloca-se no mesmo pé, submetendo-se à aplicação das leis pelo Poder Judicial, e provocando como indivíduo a ação especial deste Poder. Eis a última personificação que toma o poder público, personificação que equivale a uma transformação completa, e o despe de seu caráter de soberania. Mas aí, neste grão extremo da escala, termina a esfera do Direito Público, e começa a do Direito Privado."

    Assim apreciado o poder público, quando, representado pelos agentes de seu ministério, vem solicitar justiça aos Magistrados e Tribunais, como se fora um simples particular, acha-se a ideia característica que nos fornece a base de uma exata linha

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