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Direito, mediação e emergência normativa
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E-book668 páginas9 horas

Direito, mediação e emergência normativa

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Sobre este e-book

Trata-se de uma obra que oferece à mediação um tratamento conceitual que não a reduz a uma de suas experiências institucionais, a mediação de conflitos. A importância dada ao laço social e às suas manifestações concretas favorece a expressão de um olhar sensível sobre o direito, revelando sua dimensão relacional e por isso afetiva. A autora realiza um trabalho científico sobre a juridicidade, aberto sobre as experiências de justiça nas instituições de Estado e fora delas. Seu ponto de vista se desloca de uma conceituação instrumental do direito em direção a uma postura existencialista da vida compartilhada com e pelo direito. Segundo essa perspectiva, interrogar-se sobre as relações entre direito/justiça oficiais e outras formas de expressão do justo, como a mediação, é se perguntar sobre a justiça futura que imaginamos hoje. Este trabalho se destina, assim, a quem se inspira por uma busca antropológica do direito, pela qual, ao buscar o justo, buscamos igualmente sua justificação, ou seja, as condições que nos impõem compartilhar de um mundo em comum.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de set. de 2023
ISBN9786525281261
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    Direito, mediação e emergência normativa - Camila Silva Nicácio

    PRIMEIRA PARTE

    A ATUALIZAÇÃO DAS NOÇÕES FUNDAMENTAIS DO DIREITO

    O sucesso da mediação não é sem interesse para o pesquisador em ciências humanas e sociais. Ao contrário, ele suscita inúmeras questões. No caso da presente obra, a primeira interrogação que se coloca é referente ao lugar da mediação em um contexto de gestão da vida social no qual a justiça oficial exerce monopólio, sobretudo no que toca à resolução de conflitos. Quais interações possíveis entre elas? – podemo-nos perguntar. A de uma aberta oposição? Ou de uma coabitação frágil e mais ou menos forçada por interesses de ordem prática? Uma relação de cooperação incapaz de dissimular a forte concorrência predominante em um mercado saturado? Ou de complementaridade, em busca de reconhecimento recíproco?

    No entanto, indagar sobre o lugar da mediação vis-à-vis da justiça oficial supõe, para além do fato de cultivar um conhecimento de suas realidades ontológicas, situá-las em um contexto de mutação, no qual tanto uma quanto outra penam a fixar suas margens de ação e a preservar seus traços diacríticos. Se a tarefa se anuncia mais simples no que toca à justiça oficial ‒ o que está longe, no entanto, de ser uma evidência ‒, sondar a mediação em seus elementos fundadores e suas maneiras de operar não é um empreendimento fácil, se se leva em conta um embaçamento terminológico e deontológico largamente reconhecido.

    A primeira parte deste trabalho pretende, então, alcançar dois objetivos precisos. De um lado, ela conta demonstrar que mediação e justiça oficial compartilham o campo jurídico segundo lógicas múltiplas, e que, ao contato de uma com a outra, tanto a mediação quanto a justiça oficial tendem a se transformar (Título I). Tal transformação não é sem relação com o projeto político que as sociedades desenham para si. Esse projeto, definido em momentos históricos, é atualmente marcado por uma ambição por mais participação social, o que ao mesmo tempo coloca em xeque a pretensão centralizadora do Estado e, à prova, o potencial emancipador da mediação.

    Por outro lado, este trabalho se propõe a identificar a relação de atualização de algumas noções do direito oficial pela mediação (Título II). O argumento central nesse título é o de que o compartilhamento do campo da gestão social com outras lógicas impõe à justiça oficial, e ao direito que ela engendra, reconhecer em alguns elementos específicos da mediação a possibilidade de atualizar, transformando-lhes o sentido, noções centrais ao direito do Estado. A exemplo da legalidade, tais noções se mostram incapazes de enfrentar o desafio de adaptação às sociedades pós-modernas, marcadas por uma diversidade de atores de direito, de fontes de direito, de procedimentos jurídicos e, sobretudo, de direitos propriamente ditos. Referida atualização demonstra, assim, não somente a pertinência do direito oficial como também testemunha sobre sua legitimidade.

    TÍTULO 1

    O COMPARTILHAMENTO DO CAMPO JURÍDICO PELA MEDIAÇÃO E PELA JUSTIÇA OFICIAL

    Tendo conhecido um desenvolvimento fulgurante nos últimos anos, a mediação parece ter definitivamente se afirmado como método de administração e de prevenção de conflitos nos mais diversos domínios sociais (familiar, empresarial, ambiental, escolar, cultural, intercultural, de serviços públicos etc.). A dispersão de suas práticas e sua pressuposta unidade ética e deontológica são, contudo, ainda objeto de debate. Por outro lado, as questões referentes à relação entre mediação e justiça oficial são recentes. Dessa relação resultam tanto sincretismos quanto recuos. O presente trabalho parte da hipótese segundo a qual um novo modelo de justiça e de mediação emerge dessa relação. Indagar a seu respeito, e acerca de suas diferentes facetas (colaboração, apropriação, concorrência, confrontação etc.) pode contribuir a desvelar tanto os diferentes perfis de uma justiça oficial pronta a se flexibilizar ao contato da mediação quanto os de uma mediação já em vias de transformação por meio de lógicas frequentes de institucionalização. Este primeiro Título tem, assim, por vocação interrogar ‒ sem, no entanto, reduzi-la a uma análise ou categorização binária ‒ referida oposição clássica entre mediação e justiça oficial, a partir de transformações que esta teria vivenciado em relação à sua administração e, aquela, em relação ao seu desenvolvimento tanto teórico quanto prático.

    CAPÍTULO 1

    A ADMINISTRAÇÃO PLURAL DA JUSTIÇA

    Indagar sobre as fontes e mecanismos de produção de direitos nunca foi uma tarefa simples por um sem-número de razões, dentre as quais, sobretudo, a ausência de um conceito unívoco de direito. Na contemporaneidade, levando-se em conta a complexidade e a pluralidade das sociedades, questionar-se sobre a emergência de direitos permanece um tema ainda delicado, cujos limites analíticos devem ser colocados a fim de se evitar que a questão se obscureça ainda mais.

    Dentre as questões que convém primeiramente tratar figuram as razões pelas quais este trabalho vai inscrever o tema da emergência de direitos no âmbito da problemática da administração da justiça e, mais precisamente, do acesso à justiça. Tal como será desenvolvido, e o leitor o compreenderá ao final deste Capítulo 1, as transformações referentes à administração da justiça, uma vez apoiadas em importantes elementos sociopolítico-econômicos presentes nos últimos noventa anos, modificaram o sentido inicialmente atribuído ao acesso à justiça. Ao se levar em conta tais transformações, este estudo pretende identificar, primeiramente, como, nas passagens sucessivas do Estado liberal ao Estado de bem-estar social, e mais tarde na sequência da crise atravessada por este, um direito de acesso à mediação pode emergir e se relacionar com uma administração da justiça igualmente renovada, como um de seus elementos mais expressivos (Seção 1). Em um segundo momento, o trabalho passa em revista os principais dispositivos brasileiros de acesso à justiça e à mediação que contribuíram concretamente para referida transformação (Seção 2).

    Seção 1: O problema do acesso à justiça

    Convém primeiramente nos debruçarmos sobre o sentido da expressão administração da justiça. Este termo, ainda que utilizado de maneira recorrente pela literatura científica, não é claramente definido³¹. A expressão é utilizada frequentemente como evidente, impregnada dos sentidos que lhe imprimem outros ramos disciplinares tais como o direito, a economia ou a ciência política. Nesse sentido, uma certa concepção de administração da justiça compreendida como o conjunto de ferramentas institucionais que permitem a gestão da coisa pública pode ser identificada em uma série de artigos publicados na revista da École Nationale d’Administration, redigidos sob a ótica dos administradores³².

    Nesse sentido, a definição apresentada acima parecerá evidente apenas ao fim deste capítulo, como resultado de um arranjo realizado a partir de registros diversos identificados na literatura, dando conta do desenvolvimento recente que a noção conheceu nos últimos anos e que nos permitem a reflexão sobre um conceito desdobrado em administração plural da justiça e governança da justiça, assim como será demonstrado. Trata-se, no entanto, de uma noção emergente que, em busca de consolidação, hesita na passagem de um paradigma³³ mais centralizador de administração a um outro, menos centrípeta, de gestão. Por administração da justiça, este trabalho compreende, então, em sentido amplo, o conjunto de medidas, dispositivos, programas e diretivas que compõem políticas públicas integradas permitindo a gestão dos tribunais, e todas as suas instâncias, mas também todas as outras instituições ou programas, oficiais ou não, dedicados ao acesso à justiça, noção que deverá ser igualmente clarificada. Trata-se, assim, de um conceito aberto, que pressupõe de saída a presença de outros atores ao lado do Estado.

    Mostra-se oportuno, por outro lado, considerar que, na grande maioria das democracias ocidentais, um conceito tradicional, muito menos flexível, é ainda hegemônico, segundo o qual a administração da justiça se confunde com a administração do poder judiciário. Convém, assim, proceder a uma distinção importante, pela qual a administração da justiça seria um gênero do qual a administração judiciária seria espécie, definida como organização administrativa, orçamentária e logística de tribunais e instâncias³⁴. De toda forma, esses dois conceitos não subsistiriam sem uma construção doutrinal que lhes confere coerência. No Ocidente, a doutrina que os conforma é a do positivismo jurídico que, assim como será explicitado adiante, se apropriou do próprio conceito de justiça, concomitantemente ao desenvolvimento dos Estados nacionais e da lei, configurando o que alguns autores convencionaram chamar de monismo jurídico³⁵.

    No Brasil, em razão da forma do Estado adotada, a questão da administração da justiça responde a uma lógica diversa. À tradicional separação horizontal de poderes de Montesquieu, visando ao equilíbrio entre poder executivo, legislativo e judiciário, se acresce uma separação vertical dos poderes, segundo uma lógica federalista, na origem de um Estado de Estados. Estabelecido como estado federal pela Constituição de 1988, o país apresenta assim um sistema complexo de repartição de competências nos três níveis de sua administração: a União Federal, os Estados-membros e os municípios (para além da capital federal).

    Contrariamente às competências atribuídas pelo Estado francês a partir da lei às suas regiões, municípios e Estados-membros brasileiros gozam de uma autonomia que lhes é diretamente atribuída pela Constituição, a qual não pode ser abolida ou alterada unilateralmente pela União Federal (poder central). No plano legislativo, as diferentes unidades que compõem a federação são autônomas, livres para votar suas constituições e leis próprias. A competência fiscal é igualmente prevista nos três níveis. Assim, os Estados-membros tratam de questões regionais, respeitando os princípios constitucionais, enquanto os municípios se dedicam às questões locais e a União Federal, ao seu turno, às nacionais.

    No que toca ao poder judiciário, nos dois primeiros níveis da administração ‒ União Federal e Estados-membros ‒ a Constituição Federal impõe, em seus Art. 92-126, a obrigação de organizar suas próprias estruturas e políticas, nos limites de suas competências e prerrogativas³⁶. Na trama intrincada das competências comuns e privativas dos níveis federais, uma competência concorrente é igualmente prevista, da qual o Art. 24 - XIII da Constituição é um exemplo significativo ao prever as modalidades de organização da assistência judiciária e as defensorias públicas. Os membros federados são, assim, responsáveis pela organização de dois dos mais importantes dispositivos tanto em matéria de administração quanto de acesso à justiça no país.

    No Brasil, tendo em vista a forma federativa, um arranjo e equilíbrio entre as unidades federadas devem em permanência ser encontrados, incluindo as questões referentes à administração e ao acesso à justiça, ainda que as orientações centrais, comuns, e nem por isso menos negociadas, sejam estabelecidas pelo poder central, assim como será apontado nas seções seguintes.

    § 1: À sombra do modelo de Estado, as metamorfoses do acesso à justiça

    O perfil de acesso à justiça aplicado em um dado Estado depende da maneira pela qual este Estado conduz as políticas de administração da justiça. Todos os dois parecem estar relacionados a uma certa maneira de organizar politicamente o Estado propriamente dito. Assim, estabelecida a noção de administração da justiça, impõe-se um segundo esforço de clarificação, tendo em vista diferentes clivagens e desenvolvimentos que a questão do acesso à justiça conheceu no Brasil. A noção é polissêmica e marcada por diversos acontecimentos da história recente do país, donde a necessidade em se estabelecer um breve estado da arte.

    A comparação com outras regiões nos serve aqui de apoio. Na Europa, de maneira mais ou menos geral, o termo acesso à justiça propagou-se a partir dos trabalhos conduzidos pelo comparatista italiano Mauro Cappelletti, ao longo dos anos 70, ainda que a problemática tenha sido já objeto de preocupação em tempos mais remotos³⁷. Tal expressão foi definida, em um primeiro momento, como o direito de representação diante dos tribunais (direito ao direito) e como a garantia de efetividade dos direitos individuais e coletivos. O jurista florentino, apoiado por uma equipe de profissionais de diversos horizontes, conduziu durante seis anos em vários países ocidentais um amplo estudo cujas premissas se referiam à questão da assistência judiciária ou legal aid. Desenvolvidos no seio da universidade e do Instituto Universitário Europeu de Florença, esses estudos ficaram conhecidos sob o nome de The Florence Access to Justice Project e ensejaram uma rica publicação em quatro volumes³⁸. A síntese desses trabalhos foi publicada com o título de Access to Justice and the Welfare State, na sequência de um colóquio internacional realizado em Florença em outubro de 1979, na presença de mais de 60 experts com experiências, formações e nacionalidades diversas³⁹. Tal colóquio foi batizado sob o nome evocativo de Après la publication des volumes du projet de Florence: perspectives d’action.

    A questão de partida se encorava no acesso à justiça das camadas mais desfavorecidas. Como dar um conteúdo real ao princípio da igualdade entre os cidadãos, que se encontra proclamado nas Constituições dos estados modernos?, perguntava-se René David em seu prefácio para a versão francesa do texto Accès à la justice et État-Providence⁴⁰. De início, preocupados com a resposta para esta questão, os autores do Projeto de Florença se deram rapidamente conta da importância de os cidadãos conhecerem bem os seus direitos, uma vez que o acesso à justiça, traduzido como acesso aos tribunais, não garantia a igualdade efetiva de todos diante da justiça. Para além da assistência judiciária destinada a abrir as portas do sistema de justiça, era necessário garantir aos cidadãos uma assistência jurídica que, ao intervir preventivamente, pudesse esclarecer sobre o conteúdo de seus direitos, a fim tanto de prepará-los para reclamar tais direitos na justiça quanto de abordá-los de outra maneira, inclusive recorrendo a outras instituições que não os tribunais.

    Ao acesso aos tribunais e à tomada de consciência de direitos, acrescentaram-se duas outras preocupações. No contexto do Norte, o advento do Estado de bem-estar social tinha tornado propício o desenvolvimento de novas demandas, cujo perfil, eminentemente coletivo, era dificilmente levado em conta por estruturas judiciárias muito pouco preparadas a lidar com conflitos que não tivessem natureza individual. Organizar tais estruturas para a gestão de novos conflitos tornou-se crucial e o Projeto de Florença contribuiu também para apresentar experiências estrangeiras diversas, suscetíveis de participar daquele esforço de mudança. As class actions nos Estados Unidos ou o alargamento da noção de qualidade para agir na França foram dispositivos naquele momento colocados em evidência⁴¹.

    Além do tratamento das demandas relativas (aos então novos) direitos econômicos e sociais, Cappelletti e sua equipe se atentaram igualmente à necessidade de não limitar o acesso à justiça a simples considerações sobre a administração judiciária. Outros atores então recentemente implicados no jogo social estimavam que outras regras se desenhavam e que o Estado não asseguraria, sozinho, a gestão da justiça. Era necessário, então, concentrar-se na investigação de outros modos de resolução de conflitos, sondando, inclusive, sobre o papel dos juízes em uma eventual configuração do acesso à justiça. René David antecipou em 1984 uma preocupação tida como corriqueira nos dias de hoje: […] deve o juiz sempre resolver os conflitos ou não deve ele, preferencialmente, ‘dissolvê-los’ utilizando os procedimentos da mediação ou da conciliação?⁴².

    Apontadas tais ideias, o organizador e seus coautores apresentaram, então, as três ondas da evolução do acesso à justiça ao acesso ao direito⁴³, identificadas graças ao estudo realizado, cujas características gerais são: 1ª onda, o acesso à justiça como acesso ao sistema judiciário, e sua tradução, o acesso aos tribunais; 2ª onda, o acesso à justiça como garantia da efetividade dos direitos e/ou interesses coletivos; e 3ª onda, o acesso à justiça como desenvolvimento de modos alternativos de resolução de conflitos, como alternativas possíveis ao recurso aos juristas, aos tribunais e aos procedimentos judiciais.

    A terminologia adotada pelo Florence Project, em razão da inquietação que ela suscitava, difundiu-se na quase totalidade dos países ocidentais. No entanto, inspirada inicialmente pelas transformações havidas na administração da justiça dos Estados Unidos, a transposição da metáfora das três ondas ao continente europeu⁴⁴ seria precocemente questionada, e mais ainda em relação ao contexto brasileiro, como veremos mais adiante.

    Com efeito, para enfrentar dificuldades de ordem socioeconômica advindas depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos procederam a reformas substantivas em relação a seu arsenal normativo, suas estruturas de justiça e as profissões jurídicas, com o objetivo de melhorar as condições de acesso à justiça das pessoas mais desfavorecidas. Apesar de diferenças pontuais e contextuais, tal evolução pode ser igualmente observada em vários países europeus, concentrados no esforço de reconstrução de estruturas judiciárias que deveriam responder à necessidade de uma população então majoritariamente desamparada.

    Do outro lado do Atlântico, a partir de uma sucessão precisa de mudanças, os Estados Unidos desenvolveram nos anos 60 um programa de "escritórios jurídicos de bairro⁴⁵", mais conhecido pela expressão inglesa neighborhood offices, que garantiria a defesa dos direitos da população desfavorecida. Tal iniciativa foi um exemplo significativo do que Cappelletti identificou como sendo a 1ª onda do Access-to-Justice Movement. A este programa se sucedeu, a partir de 1970, uma abundância de public interest law firms, estruturas jurídicas públicas voltadas à proteção de interesses difusos⁴⁶, cujas características se inscreviam justamente no coração da 2ª onda. Os anos 70 conheceram ainda o desenvolvimento acentuado de outras modalidades de resolução de conflitos que, assimilados a uma nova tendência⁴⁷, iriam desde então compartilhar a demanda por direito e justiça com os tribunais e seus procedimentos judiciais (3ª onda).

    Essa nova tendência inspiraria o movimento mais evidenciado da década seguinte, batizado no inglês por Alternatif Dispute Resolution (ADR) e rebatizado em línguas latinas sob a expressão modos alternativos de resolução de conflitos (MARC).

    Segundo Cappelletti, o amplo movimento do acesso à justiça tenderia a integrar essas três ondas, a partir de uma lógica de coabitação entre elas, na qual suas características específicas seriam preservadas. Cinquenta anos depois, essa delicada coabitação continua a desafiar tanto administradores da justiça quanto atores jurídicos e sociais em geral. Se ela força o Estado a uma reconfiguração material de sua estrutura para a promoção do acesso à justiça, os tribunais constituindo-se em eixo central⁴⁸, esse tipo de coabitação o convida igualmente a iniciar uma mudança em sua política tradicional de apropriação e de reprodução da justiça como valor. O reconhecimento de diversos atores, criadores e intérpretes do direito no jogo social, implicaria consequentemente o abandono do monopólio do Estado não somente do conteúdo material, mas também ideológico da justiça. Tal transformação implicaria mudanças substantivas, como novos arranjos entre forças políticas de regra opostas, em benefício de uma administração da justiça mais coerente, efetiva e compartilhada.

    Para melhor compreendermos as possibilidades e características de tais novos arranjos, é necessário apresentar um breve balanço das transformações mencionadas acima e dos diferentes itinerários que elas tomaram no que se refere ao acesso à justiça.

    A - O Estado liberal e os perigos da igualdade formal no acesso à justiça

    Ao apresentar os traços principais de sua Sociologia Jurídica⁴⁹, o autor português Boaventura de Sousa Santos chama atenção para a administração da justiça contemporânea a partir do que ele chama de sociologia crítica da justiça. Nesse contexto, ele se pergunta sobre o forte desenvolvimento do protagonismo social e político dos juízes, tanto na Europa quanto no continente americano⁵⁰. Ele identifica as mudanças ocorridas na ação dos juízes nos três principais momentos históricos porque já teria passado o Estado desde a criação dos primeiros Estados-nações. Assim, o autor vai lembrar, sucessivamente, do período do Estado liberal, daquele do Estado-providência e do então período atual, o qual, por falta de consenso acerca de uma noção inequívoca, é chamado de período após a crise do Estado-providência. A análise de Santos se aproxima do que foi apresentado por Cappelletti a partir da metáfora das três ondas. Suas reflexões acerca da evolução do papel e da ação dos juízes nesses momentos históricos sucessivos permitem iluminar as transformações pelas quais o acesso à justiça teria, por sua vez, atravessado, em função de cada onda identificada.

    Segundo esses autores, o período do Estado liberal teria sido um longo e importante momento para a consolidação do modelo jurídico moderno que, desde então, se estabilizaria nos países ocidentais. Durante todo o século 19, e até a Primeira Guerra Mundial, o Estado e suas ferramentas de legitimação, o direito e a justiça, teriam respondido a princípios tais como a separação de poderes e a consequente supremacia do poder legislativo; a neutralização política do poder judiciário, submetido ao respeito da legalidade e da lógica silogística racional-formal; e o predomínio dos direitos individuais.

    Naquela época, a ação dos juízes se voltava em direção ao passado, objetivando assegurar a ordem jurídica pré-estabelecida, que seus princípios de ação não podiam em nada alterar. Esses juízes, obrigados a responder unicamente na hipótese de serem interpelados, se limitavam a resolver os litígios individuais, sensíveis à lógica da segurança jurídica e dos princípios de uma justiça puramente retributiva, de que a generalidade e a universalidade da lei seriam garantidoras. Santos indica que os juízes foram, então, em razão dessas exigências, submetidos "[…] a uma prática judiciária tecnicamente exigente, mas eticamente débil, tendendo a se traduzir em rotinas e, consequentemente, a desaguar em uma justiça trivial⁵¹". Segundo o autor, a independência dos juízes traduzia, nesse caso preciso, seu desarmamento político.

    Suas decisões, limitadas a responderem aos casos concretos, seu poder político reduzido a modestas prerrogativas, os juízes ignoraram a explosão da violência social conhecida pelo período liberal, marcada de mais a mais pelo:

    […] desenvolvimento da economia capitalista, e mesmo da revolução industrial, e com ela, a transferência maciça de pessoas, o agravamento sem precedente das desigualdades sociais e o advento do que foi chamado a questão social (criminalidade, prostituição, moradia precária, insalubridade etc.). Tudo isso esteve na origem de uma explosão do conflito social cujas dimensões foram tão acentuadas que acabaram por definir as grandes divisões políticas e sociais da época⁵².

    Não é por acaso que a questão do acesso à justiça, nesse período, concentrado na resposta de perfil caritativo, dentre os quais a assistência judiciária, estendida à totalidade das classes populares, visava garantir o acesso ao sistema de justiça pela única via dos tribunais, que, ao responder às suas demandas segundo rotinas e fórmulas rígidas, desengajavam-se de toda responsabilidade em relação à situação real atravessada por camadas inteiras da população. Segundo o princípio da igualdade formal preconizada pelos ideais liberais, o importante era garantir a cada um o direito de reclamar seu próprio direito diante das instâncias oficiais, estando pressuposta a igualdade de todos. Esse sistema de assistência, que perdurou até a Segunda Guerra Mundial, foi considerado pelo Florence Project como característico da primeira onda de acesso à justiça. Ele evoluiria para um modelo mais abrangente, dando conta das transformações engendradas pelo Estado liberal e que precipitaria, enfim, seu declínio.

    B - O Estado-providência e o paternalismo mal calibrado

    Em razão das condições sociopolíticas e jurídicas que emergiram durante esse período, muitos países europeus, em momentos diversos de suas histórias nacionais, confirmaram o advento e consolidação de um outro modelo político de Estado. Este modelo exigiu uma transformação copérnica do papel do Estado. Todas suas dimensões, social, política e jurídica, foram convocadas a responder aos imperativos das mudanças, a partir de um movimento que começou aproximadamente no final do século 19 e se prolongou até o final da Segunda Guerra Mundial, data na qual o novo modelo foi finalmente consolidado nos países então ditos "centrais⁵³".

    O impacto sociopolítico dessas transformações no domínio da justiça foi claro e preponderante para a configuração do direito e da justiça que floresceram nos quarenta anos seguintes. O Estado-providência nasceu sob o signo da promoção do bem-estar social, em nome do qual ele operou a consagração constitucional de inúmeros direitos econômicos e sociais (direito ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à educação etc.), em uma manobra que Santos qualificou de gubernamentalización de la producción del derecho. Tal manobra se traduziu finalmente pelo questionamento da separação de poderes, tão cara à época precedente, considerados o predomínio então adquirido pelo poder executivo e a pane causada no sistema judiciário pela introdução de novos direitos, que o classicismo judiciário não estava preparado em levar em consideração.

    A confrontação entre esse novo ferramental jurídico e o formalismo do poder judiciário causaram, segundo Santos, um verdadeiro curto-circuito no direito. Por outro lado, uma inteligibilidade incontestável se difundiu a partir da explosão legislativa da época, conduzindo à juridicização da realidade social, mas também à judiciarização dos conflitos, em razão da ampliação do recurso aos tribunais. Esse caos normativo atentou, em um só golpe, tanto contra a coerência e a unidade do sistema jurídico quanto contra o princípio da legalidade e da aplicação silogística das normas.

    À justiça retributiva do período liberal se substituiu a justiça distributiva, consagrada então juridicamente. Segundo Santos:

    A proteção jurídica da liberdade deixa de ser uma relação negativa para se transformar em relação positiva, somente realizada por meio dos serviços do Estado. […] trata-se de uma liberdade que, longe de ser exercida contra o Estado, deve ser por ele exercida. O Estado assume, assim, a gestão da tensão que ele mesmo havia criado entre justiça social e igualdade formal, e todos os organismos e poderes do Estado são igualmente responsáveis por essa gestão⁵⁴.

    Para garantir o equilíbrio entre justiça social e igualdade formal, a ação dos juízes se revestiu de uma dimensão até então impensada: a dimensão política de seus papéis na promoção do Estado de bem-estar social. A ação voltada ao passado e fracamente reativa do período liberal se transfigurou em uma ação dirigida ao futuro, buscando garantir a efetividade do direito e dos direitos recentemente consagrados pela lei. Julgamentos praeter legem ou mesmo contra legem foram largamente admitidos e adotados em nome da efetividade, o que enfraquecia ainda mais o princípio da legalidade.

    Em resposta, ao mesmo tempo, à juridicização e à judiciarização crescentes, uma série de medidas apostando na informalidade da justiça foi desenvolvida, tal como a simplificação de procedimentos, a criação de instâncias encarregadas unicamente de conflitos de menor valor monetário ou ainda a adoção de mecanismos alternativos de resolução de conflitos – identificados por Cappelletti como características da terceira onda de acesso à justiça.

    A fim de garantir a efetividade dos novos direitos sociais e econômicos típicos do Estado-providência, a estrutura do Estado foi obrigada a se ampliar com a criação de numerosos serviços, políticas e corpo de funcionários. Não tardou para que a administração de tal estrutura fosse paralisada por restrições orçamentárias que terminaram por frear o desenvolvimento do Estado-gigante, submerso pela criação de uma burocracia ineficaz, à qual a diluição dos meios e, mais tarde, a corrupção levaram ao tiro de misericórdia. Nesse sentido, o aumento da juridicização e da judiciarização teriam causado estragos indeléveis, engendrando uma falta de eficácia, eficiência e de acesso e, notadamente, um poder judiciário que, a despeito dos esforços de toda uma comunidade de experts, tal como o Florence Project, não mais se reabilitaria.

    Segundo Tunc, o acesso à justiça, durante esse período, conheceu uma transformação considerável a partir da afirmação de novos direitos e dos esforços para torná-los efetivos, o que se impôs como características da segunda onda de acesso à justiça. Tais direitos teriam representado o coroamento da mudança de postura do Estado em relação aos cidadãos, que a partir de então se engajaria na edificação de uma administração da justiça com um olhar humano⁵⁵, levando em conta as condições reais de acesso e concretização da justiça, segundo uma lógica de igualdade material. Esse modelo, como afirmado mais acima, será, no entanto, duramente questionado no período seguinte.

    C - O acesso à justiça à prova da crise do Estado-providência

    No período compreendido entre o fim dos anos 60 e começo dos anos 80, uma série de elementos aponta a origem da degradação do Estado de bem-estar social⁵⁶. Já fragilizado por algumas de suas características intrínsecas, a política do Welfare State sofreu os golpes de pelo menos três fatores: as modificações havidas no sistema de produção em razão do desenvolvimento tecnológico; o advento e desenvolvimento da política neoliberal, mormente em seu viés de desregulamentação econômica e, finalmente, o movimento de globalização, que significou o começo da erosão da soberania dos Estados-nação. Uma outra fase, conhecida como o período do pós-crise do Estado-providência, nascia então dessa conjuntura. Nesse momento histórico, e mais precisamente em relação à administração da justiça, transformações importantes podem ser observadas.

    A explosão do número de litígios havida no período anterior gerou um movimento de rotinização dos julgados e de avaliação da produção dos juízes pelo critério da performance quantitativa, coroando, segundo a expressão de Kazuo Watanabe, a "cultura da sentença⁵⁷". Após uma fase de intenso controle da vida coletiva e individual dos cidadãos, a partir do que Santos chamou de clientelización y normalización des ciudadanos, os juízes testemunharam, perplexos, os contornos da curiosa nova dinâmica que se desenhava: enquanto as mudanças provocadas pela degradação do Welfare State contribuíram para renovar temas relativos à apreciação do poder judiciário, elas tirariam de seu foco algumas tantas outras. Ainda que as desigualdades sociais tenham se acentuado com a crise do Estado-providência, o número do contencioso não aumentou, até mesmo diminui em alguns domínios nos quais, antes, os juízes exerciam por excelência sua influência, a exemplo do campo do direito do trabalho. Por outro lado, outras áreas se desenvolveram, às quais o poder judiciário não estava preparado a responder, tais como as demandas relativas aos direitos dos consumidores e ao meio ambiente.

    Assim, à diminuição sensível dos litígios na área cível, sobretudo se comparada ao aumento havido no período precedente, um crescimento igualmente significativo se verificou em relação às ocorrências penais. Como em um sistema de balanças, tais movimentos estabilizaram, em certa medida, o aumento do contencioso em geral. Tal estabilização resultou, entre outros, do desenvolvimento dos modos ditos alternativos de tratamento de conflitos ‒ que se impuseram finalmente como a marca distintiva da terceira onda do Florence Project ‒ e do congestionamento da estrutura judiciária, que tornava aquela via alternativa mais atraente aos olhos dos jurisdicionados.

    Outros aspectos contaram igualmente para a contenção do aumento dos litígios, tais como a desregulação imposta pelas políticas liberais e pela globalização. Santos adverte, contudo, a respeito dos efeitos ambíguos provocados por tal desregulação, pois que:

    Paradoxalmente, após décadas de regulação, a desregulação só foi possível a partir de uma produção normativa específica e às vezes muito elaborada. Ou seja, a desregulação significa, de uma certa maneira, uma regulação, e, consequentemente, uma sobrecarga legislativa adicional⁵⁸.

    Assim, se tal desregulação limitou o número excessivo de litígios, isso ocorreu em relação à intervenção do poder judiciário, sendo os novos litígios recebidos e tratados por tribunais e estruturas especializadas, donde a importância crescente, por exemplo, da arbitragem naquele momento. Para além da regulação que visava à desregulação econômica, uma produção normativa considerável pautou-se igualmente na globalização, com o desenvolvimento de um novo direito transnacional. Dito de outra forma, a confecção de normas continuou a ocupar um lugar importante no período de crise do Welfare State, embora tenha sido fruto da ação de novos atores, externos ao Estado.

    Após os trabalhos de Santos e do projeto de Florença, que se concentraram sobretudo nas mudanças ocorridas no Estado e na justiça durante a transição paradigmática compreendida entre o período liberal e o da crise do modelo do Welfare State, uma vasta nova pesquisa sobre acesso à justiça, na esteira da realizada por Cappelletti e equipe, foi conduzida pelo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, dirigido por Santos, a partir do Centro de Estudos Sociais (CES) de Coimbra⁵⁹. Por meio de um extenso relatório, tal pesquisa atualiza e amplia as investigações e conclusões formuladas pelo Florence Project trinta anos antes. Ela considera sobretudo o estado do avanço das políticas de administração da justiça em alguns países europeus (Inglaterra, Espanha, Portugal e França) a partir da crise do Estado-providência e do impacto das políticas neoliberais sobre a questão do acesso ao direito. Tal impacto, naturalmente, não podia ter sido previsto pela equipe florentina, em ação nos anos 70.

    Por meio de pesquisa comparada, o estudo português verificou a hipótese segundo a qual o acesso à justiça depende de um funcionamento positivo da sociedade e do Estado para:

    […] garantir que os cidadãos conheçam seus direitos, que não se resignem quando tais direitos não são respeitados e que tenham condições para enfrentar as dificuldades (econômicas, socioculturais etc.) de acessar uma estrutura considerada a mais adequada para gerir e resolver uma determinada questão, seja ela a comunidade, uma instância formal não judiciária, ou os tribunais⁶⁰ .

    Assim definido, o conceito de acesso à justiça advindo das observações da equipe portuguesa permite levar em consideração a questão da consciência/conhecimento dos direitos aliada ao acesso efetivo às estruturas de justiça, além dos modos alternativos de regulação social. A ideia de adequação de diferentes conflitos a diferentes meios de regulação torna-se decisiva, enquanto no Access to Justice Movement ela era ainda tímida em razão do caráter ainda experimental das alternativas então em curso. Em 2002, ano de finalização dessas pesquisas, o relatório português aponta a presença de um Estado que, embora ainda indispensável no acesso à justiça, encontra-se definitivamente situado em uma rede complexa de diversas parcerias e iniciativas, que ele não poderá ignorar ou deixar de apoiar a partir de uma política ampla e coordenada. No que toca à resolução de conflitos, esse conceito de acesso à justiça será privilegiado no presente trabalho por duas razões. A primeira porque ele se refere ao julgamento de adequação e oportunidade entre os diferentes métodos, oficiais ou não, na escolha dos cidadãos. Em segundo lugar, porque referido conceito leva a sério um funcionamento positivo da sociedade e do Estado, sem desresponsabilizar um ou outro da administração e do acesso à justiça. No entanto, porque o acesso à justiça não se resume à resolução de conflitos, tal conceito deverá ser ampliado a fim de considerar a dimensão preventiva e criativa das ações sociais.

    O relatório português confirmou, assim, as três ondas identificadas e descritas por Cappelletti e equipe, acrescentando, por assim dizer, uma quarta⁶¹. Se as reformas realizadas pelos países centrais após a Segunda Guerra, sobretudo a partir de 1965, tinham visado às classes populares sob a forma de criação de uma larga franja de serviço de assistência judiciária, os anos 70, por sua vez, testemunham da evolução da representação e defesa de interesses difusos, o que preparou o terreno para a chegada das formas alternativas de resolução de conflitos. Isso aconteceria, no entanto, apenas no final dos anos 70, quando o Florence Project terminava seus trabalhos. Por essa razão, a apreciação de novas formas de resolução de conflitos se mostrou mais uma promessa do que uma realidade.

    A tais transformações se acresceram outras, em razão de uma nova reconfiguração do Estado. Assim como demonstrado por Cappelletti⁶² e Santos⁶³, as principais reformas no acesso à justiça dos países centrais se traduziram por um esforço de consolidação do Estado-providência, situado entre os anos 50 e 80. Por sua vez, Pedroso, Trincão e Dias mencionam uma mudança significativa advinda a partir dos anos 80 e 90, quando, e em razão dos elementos mencionados supra (política neoliberal, globalização, desenvolvimento tecnológico etc.), os governos desses países iniciaram esforços para uma radical redução orçamentária relacionada ao financiamento das estruturas do Welfare State.

    O que levou Cappelletti a temer a amplificação, considerada por ele como inevitável, do domínio do Estado Leviatã, resultando no aumento de despesas voltadas ao acesso à justiça, confirmou-se integralmente, sobretudo nos anos 90. As restrições orçamentárias do período serão a confirmação melancólica daquele momento. O Estado-providência, no objetivo que foi o seu de tornar mais efetivo o acesso à justiça, teria por fim o comprometido, o que levou a uma nova configuração do modelo de administração da justiça⁶⁴.

    O relatório português aponta assim para uma maior restrição quanto aos critérios de elegibilidade e de acesso aos serviços do Estado, seja em suas formas mistas (como o modelo do judicare na Inglaterra), sejam públicas (a exemplo do public salaried attorney norte-americano), além da imposição – eleita ao patamar de uma obrigação ‒ da participação nos custos dos processos pelos usuários da justiça⁶⁵. Para a equipe portuguesa, tais mudanças retomariam, em grande medida, o esquema caritativo anterior à Segunda Guerra.

    Ainda que muito custoso para as finanças públicas, o financiamento pelo Estado do acesso à justiça dos períodos precedentes não obteve êxito em assegurar a qualidade dos serviços oferecidos à população, sobretudo em matéria de assistência judiciária, finalmente muito criticada por esse déficit de qualidade. Os profissionais encarregados da proteção dos direitos dos menos favorecidos eram, de regra, inexperientes, ou até mesmo malformados. Os autores notam igualmente seu desinteresse e descomprometimento, em razão da insuficiência de remuneração. Sobre essa questão, Cappelletti mencionava já em 1984 a dificuldade em equilibrar disponibilidade de acesso e qualidade da justiça prestada, prevenindo contra o risco de uma wholesale justice ou justiça aproximativa⁶⁶ que, em razão da limitação dos gastos orçamentários do Estado, sacrificaria a qualidade dos serviços.

    Clarividente, esse autor evocava o controle, na escala local, pelos eventuais beneficiários a fim de que os profissionais responsáveis pela assistência judiciária fornecessem um trabalho de qualidade⁶⁷. Por outro lado, Michael Zander, também relator do Florence Project, estimava que a gratuidade integral não deveria ser alçada como princípio da assistência judiciária⁶⁸.

    O problema em relação ao financiamento do acesso à justiça iria se estender até os dias de hoje, e as questões referentes à assistência judiciária se reproduziriam, por sua vez, no campo da mediação, assim como veremos em detalhe, impondo a mobilização dos atores envolvidos. É certo que, se a metáfora das ondas de acesso à justiça deixa supor um jogo social com vários atores, estes são obrigados a se confrontar e permanentemente se articular segundo uma maré agitada, própria à cena social, na qual reinam a complexidade e a riqueza. Eis porque, em resposta às mudanças gestadas pelas políticas neoliberais dos anos 90, os Estados centrais, sob a égide das instituições europeias, retomaram a partir do fim dos séculos 20 e começo do 21 o discurso que prevê o acesso à justiça como direito fundamental, insistindo sobre a necessidade de consolidar todos os meios de acesso aos direitos para o cidadão⁶⁹.

    Esses movimentos, em ordem alternada, conferem à questão do acesso à justiça a dimensão de um importante desafio, suscetível de balizar a ação de diversos atores, inúmeras estruturas e lógicas diversas de serviços. Assim como será demonstrado, um novo modelo de administração e, consequentemente, de acesso à justiça e ao direito se estruturou e sua construção e consolidação vão testemunhar sobre a complexidade de um arranjo novo, tão complexo quanto necessário⁷⁰.

    As conclusões provisórias dos autores de Coimbra igualmente indicavam no sentido do advento de uma política nova que:

    A análise de várias formas de acesso dos cidadãos ao direito e à justiça por meio de estruturas públicas ou privadas, cuja ação se dá fora do sistema judiciário, permite alargar o conceito de acesso e de compreender o impacto desses meios na concretização dos direitos dos cidadãos. Essa quase rede de serviços jurídicos complementares, normalmente desvalorizados ou ignorados, permite estabelecer uma nova concepção de acesso dos cidadãos ao direito e à justiça, na qual o papel de um conjunto diversificado de estruturas públicas e privadas é importante para reforçar o sistema democrático em geral e, em particular, o acesso à informação jurídica e à resolução de conflitos por meio de formas judiciárias e não judiciárias, públicas ou privadas, formais ou informais⁷¹.

    Tal política se confronta igualmente à questão orçamentária que, por sua vez, nos reenvia a uma outra, referente ao modelo de acesso à justiça que sociedade e Estado pretendem coroar e fazer valer. Os modelos brevemente analisados, liberal, de bem-estar social e neoliberal, pressupõem, cada um deles, uma certa ideia de Estado, que conformará, à luz de ideologias diversas, a administração da justiça e a relação dos cidadãos ao direito. Iniciativas vindas de cada diferente modelo poderiam ser agenciadas em favor da concepção de um novo modelo, original e adequado. Esse momento corresponde ao período atual e as iniciativas cidadãs e governamentais parecem poder dialogar, nessa "luta⁷²" que lhes é própria do jogo sociopolítico, que o direito só faz traduzir e formalizar, na maior parte dos casos, a posteriori, uma vez que as necessidades sociais não esperam o despertar das sensibilidades legislativas, executivas e judiciárias para fazer valer sua legitimidade.

    Por outro lado, os dois relatórios, o primeiro datando de 1984 e sua sequência, de 2002, permitem, no entanto, entrever a superação de algumas ideias tidas durante muito tempo como verdades absolutas e que contemporaneamente se mostram como anacrônicas e incômodas. A primeira se refere ao monopólio do Estado sobre a resolução dos conflitos, uma vez que, como afirma Marc Galanter em seu relatório, os tribunais, de fato, resolvem apenas uma pequena parte da totalidade dos conflitos que poderiam ali aportar e uma parte ainda mais residual do conjunto dos conflitos produzidos socialmente⁷³. Advinda da primeira, outra ideia, também ultrapassada, se relaciona à redução da questão do acesso à justiça ao acesso aos tribunais, redução que o centralismo político e jurídico efetua, mas que, levando-se em conta a pluralidade das possibilidades efetivas de regulação da vida em sociedade, não tem razão de ser. E finalmente uma terceira questão, lembrada com insistência por Galanter, relativa à necessidade de se encontrar resposta aos problemas no contexto de sua emergência, no contexto no qual as partes estão inseridas, para garantir uma justiça não simplesmente menos custosa como também mais adequada. Se a expressão adequação não aparece explicitamente, pode ser, no entanto, pressuposta nesta e noutras passagens, por exemplo no relatório de André Tunc, preocupado que os cidadãos possam reconhecer na justiça vinda dos modos alternativos de resolução uma verdadeira justiça, em relação ao seu custo, sua eficácia e, sobretudo, sua pertinência em regular os casos concretos⁷⁴.

    Admite-se, assim, que uma vez afastado o mito do monopólio judiciário na resolução de conflitos e a "preocupação exclusiva⁷⁵ de assegurar a todos a representação diante dos tribunais, novas formas de garantia do acesso à justiça e aos direitos sejam estimuladas, sobretudo baseadas nos critérios da adequação e da oportunidade. Levar a sério esses critérios parece responder a um imperativo enunciado por Galanter há 50 anos e que resta atual como nunca, a saber, a necessidade de investigar as relações entre os tribunais oficiais e o direito espontâneo para fazer avançar as condições de acesso à justiça (Galanter, 1984, p. 188). A segunda parte desta obra se presta justamente a sondar sobre a emergência desse direito espontâneo" ou desses novos direitos.

    A sequência das transformações pelas quais os Estados-nação passaram desde o fim do século 19, com a sucessão de um período liberal a outro de bem-estar social e finalmente àquele da desregulação é, tal como descrito acima, um fenômeno próprio aos países centrais, notadamente a França, a Inglaterra, a Alemanha e os Estados Unidos. Tais transformações não podem, contudo, ser identificadas ao desenvolvimento histórico dos países conhecidos como semiperiféricos e "periféricos⁷⁶".

    §2: O acesso à justiça em face do desafio da redemocratização no Sul

    O tom em muitos aspectos militante dos trabalhos da equipe de Florença faz pensar que o começo dos anos 70 foi um momento histórico de forte mobilização política e social na Europa. No Sul, os países periféricos e semiperiféricos lutavam igualmente, embora em domínios diversos. Com um passado marcado pelo colonialismo e, em seguida, por ditaduras militares suficientemente longas para minar estruturas democráticas ainda em consolidação, tais países estavam animados de um outro tipo de preocupação quando, na Europa e nos Estados Unidos, a questão da extensão da proteção e do acesso aos direitos se colocava fortemente.

    A - A supremacia dos direitos coletivos, a cidadania cativa

    Segundo as análises realizadas pela historiadora Eliane Botelho Junqueira, por B. de Sousa Santos e M. Cappelletti⁷⁷, três razões mais ou menos sistematizadas podem ser consideradas como fundamento das diferenças vivenciadas por aqueles dois blocos de países. Se o passado colonial (a) submeteu vários dentre eles a uma dependência material e intelectual, a instabilidade política (b) que se seguiu durante os períodos militares só fez agravar os termos de uma questão que se afirmava como de mais a mais crítica, traduzida em desigualdades sociais profundas (c) que, herdadas da época colonial, foram ratificadas e ampliadas pelos regimes autoritários. Esse quadro geral se refere a muitos dos países africanos, alguns países europeus do Leste e, em menor medida, Portugal e Espanha. Na América Latina, e mais particularmente no Brasil, ele responde, no entanto, pela integralidade da história institucional.

    Santos pontua que, enquanto os países centrais conheciam a transição da época liberal àquela do Welfare State, muitos países ao Sul eram ainda colônias ou se encontravam sob o jugo de ditaduras, seja de direita ou de esquerda. Já na ocasião da transição seguinte, a partir da crise do Estado-providência e do advento de políticas neoliberais, os países periféricos e semiperiféricos viviam, na maior parte dos casos, o paroxismo da época autoritária (enquanto tantos outros, notadamente na África, restariam ainda durante vários anos sob o domínio colonial).

    Essa distância entre uma realidade e outra, explica o sociólogo do direito, teve como consequência a produção de uma sobrecarga normativa incomensurável em vários países periféricos e semiperiféricos, obrigados que foram a promulgar e a consolidar os direitos políticos e civis (inexistentes no caso das ex-colônias ou enfraquecidos no contexto dos países sob ditadura), ao mesmo tempo em que tiveram que declarar e proteger os direitos de segunda (coletivos) e de terceira geração (difusos)⁷⁸. Um feito dessa monta havia sido realizado pelos países centrais, entre avanços e retrocessos, em um intervalo de mais de um século⁷⁹.

    A diferença nas agendas sociopolíticas dos países centrais, periféricos e semiperiféricos mostrou-se, assim, um elemento fundamental para compreender a evolução que tais países viveriam no plano jurídico e judiciário. Nesse sentido, Botelho Junqueira afirma que, na ocasião do advento do Access to Justice Movement nos anos 70, a preocupação do Brasil não era, absolutamente:

    […] expandir o Welfare State e tornar efetivos os novos direitos conquistados principalmente a partir dos anos 60 pelas minorias étnicas e sexuais, mas a necessidade de alargar ao conjunto da população os direitos básicos, aos quais a maioria não tinha acesso, tanto em função da tradição liberal-individualista do ordenamento jurídico brasileiro, quanto em razão do histórico de marginalização socioeconômica dos setores subalternos e da exclusão político-jurídica provocada pelo regime pós-64.

    Enquanto o Florence Project se difundiu em diversos países sob a forma de ondas de acesso à justiça, a preocupação brasileira se enraizou em um contexto local de combate ao regime autoritário, de saída da ditadura militar e de emergência e de reforço dos movimentos sociais, severamente reprimidos durante o período autoritário. Se o setor universitário e os setores profissionais jurídicos brasileiros se preocuparam com a questão dos direitos coletivos e do desenvolvimento dos meios alternativos de resolução de conflitos, eles apenas o fizeram em razão da situação de precariedade geral da população, o que se refletia no acesso e no gozo de direitos sociais elementares (moradia, saúde etc.) e não em consequência da crise de um Estado-providência que, segundo Santos, nunca teria emergido nos países do

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