Crônicas Do Poder
De E. N. Falco
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Crônicas Do Poder - E. N. Falco
1
CRÔNICAS DO PODER
Três histórias de ficção para refletir sobre
uma realidade distópica
HANNAH – MONA
CODINOME: FANTASMAS
SEIS SEMANAS
E. N. Falco
2
3
Assim como Sherazade, contamos histórias para não morrer.
(Autor desconhecido)
4
5
HANNAH
MONA
E.N.Falco
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8
9
[1]
O guarda alterna o olhar desconfiado entre a pasta de documentos que apresentei e o veículo estranho que estava prestes a apreender. É um rapaz jovem, talvez seja novo na cidade, provável alguém de um município próximo que passou em concurso há pouco tempo. Mas conheço esse olhar, a incômoda dúvida sobre os limites da própria autoridade, e acredito que o silêncio revele a tentação de desafiar quem quer que seja que autorizou o trânsito desta peça esquisita.
Taruga é um veículo experimental. Apesar da aparência de um carro pequeno, individual, trata-se de um triciclo motorizado com opção para tração a pedal. No projeto, inverti os pneus e coloquei tração dianteira para que o capô personalizado em fibra de vidro tivesse o design que um carro antigo. O motor elétrico é autossuficiente, utiliza energia solar de placas cuidadosamente colocadas no capô, o que me dá faróis potentes e surpreendente velocidade. Mas também posso usá-lo como fosse uma bicicleta, basta acionar os pedais e essa é a minha opção na maior parte do tempo.
Entretanto, esse não é um veículo de série, não foi fabricado aos milhares em alguma linha popular, não tem registro em formulários padrão e suponho que nunca terá, visto o pouco interesse em industrializar produtos que, além de baratos, não tem repercussão econômica imediata ou dependência de alguma fonte de energia.
Mas Taruga está legalizada, foi meu projeto de conclusão na Faculdade de Design e aproveitei as benesses da época para conseguir documentação especial que me permite trafegar com o veículo em qualquer parte do país. Desde então tramita pelos labirintos do legislativo, um pedido de legalização do modelo para que outros 10
similares possam ser fabricados como alternativa de transporte urbano.
Provável que esse projeto, assim como tantos outros, esteja esquecido no fundo do armário de algum legislador, aguardando uma pauta agendada para o infinito. Por mim, tudo bem, enquanto o projeto aguarda, minha licença de tráfego permanece ativa. Infelizmente para o guarda, ele não poderá apreender o veículo, nem mesmo acrescer uma multa à sua meta do mês.
Mas sem saber, o guarda me ajuda, propiciando a desculpa necessária para ficar aqui sem chamar a atenção do homem que sigo.
Ele está parado, no saguão do prédio onde trabalha uma semana a cada mês, e sei que aguarda a mulher com quem fez uma segunda família em segredo, longe dos olhos da esposa.
O trabalho me parece tão fácil, que nem deveria ter cobrado por ele. Mas, verdade seja dita, não fosse o dinheiro, sequer teria aceito fazê-lo. Esse é mais um dos trabalhos eventuais que faço para um investigador particular, e que rendem o extra de que preciso para os pequenos luxos da vida diária. Entretanto, desta vez, tudo está facilitado porque tenho informações privilegiadas que não partilhei com ninguém, conheço a jovem apaixonada com quem este homem irá se encontrar. Ela trabalha próxima à pousada que escolhi para residir, é balconista do pequeno mercado que abastece a redondeza, uma moça muito bonita que aguarda ansiosa que este homem enfim despreze sua esposa e assuma uma família com ela, é sua melhor esperança de um futuro melhor. Ela mesma teria feito as fotos, se soubesse deste trabalho ou eu as tivesse pedido. E veja só, não é que o destino conspirou a seu favor? A esposa desconfiada contratou o investigador particular, que por sua vez me conhece e me contratou para o trabalho.
Coincidência fosse eu, justo quem tem a informação, com antecedência, dos dias, lugares e encontros marcados entre o homem e sua amante.
11
Uma batida no semáforo mal planejado oferece ao guarda a desculpa perfeita. Ele me devolve os documentos e segue resoluto na direção do evento onde sua autoridade não tem limites, onde pessoas nervosas já saem dos carros aos gritos discutindo os respectivos prejuízos. Parece que o destino realmente cronometrou o tempo exato e me deu a desculpa perfeita para discretamente pegar a máquina fotográfica enquanto jogo os documentos no chão do carro, um movimento que ninguém percebe. Depois me posiciono como estivesse fazendo fotos de paisagem, o que é comum, todos aqui conhecem meu trabalho e já me viram a fotografar a cidade, gestos que passam despercebidos. O que ninguém sabe é que a potência do zoom está clicando closes do encontro alegre do homem e sua garota bonita, até as pequenas sardas ficam nítidas nas potentes lentes, não resisto a pegar um ângulo perfeito para um retrato a carvão.
Daqui irão ao motel, só há dois na cidade e ela já me confidenciou, há tempos, qual o seu preferido. Pego a Taruga e sigo na direção da montanha, desta vez coloco a motor porque preciso de velocidade, já testei o mirante e há um ponto exato onde posso fotografar com discrição, pois o dito motel de preferência fica na saída da cidade, entrada pela estrada, encaixado na base da montanha. Do mirante, tenho vista privilegiada do pátio de entrada, dependendo do quarto escolhido consigo até a placa do carro entrando na garagem do conjugado particular.
[2]
Mona me irrita.
12
Há três anos escolhi esse lugar para morar. Embora tenha feito a opção de construir minha casa como uma Tiny House em um velho ônibus reformado e desde então tenha uma vida um tanto quanto nômade,
mesmo
assim
precisava
de
um
endereço
para
correspondências, um lugar fixo para indicar como referência.
Essa pousada foi um achado. A cidade beira mar, pequena, tem sua maior renda no turismo de verão, breves três meses no ano e uma carestia de recursos no aguardo da próxima temporada. Encravada numa baía entre o mar e o início da reserva da mata nativa, a pequena cidade alterna paisagens de praia e montanha, trechos de areia e pequenos despenhadeiros de pedra. Na cidade, casas antigas fazem frente ao calçamento de pedras, a pracinha central pontuada por uma bela igreja dos tempos coloniais. Mas o município se estende até os vizinhos balneários de classe média povoados com esparsas casas modernas que permanecem vazias na maior parte do ano.
A pousada nada mais é do que uma casa grande e antiga, com muitos quartos, que durante o ano hospeda os barulhentos universitários de uma cidade próxima, e turistas no período de férias.
No extenso quintal os proprietários organizaram, aos poucos, uma área de camping, e acresceram dois espaços para estacionar trailers, foi um destes que aluguei para colocar meu bus-house. Mas me apaixonei pela cidade, é um bom lugar para mim.
Tudo perfeito, não fosse a filha do casal de proprietários, Mona.
A menina era uma adolescente quando cheguei, três anos depois engrossa o coro de universitários que se hospeda na pousada. É uma moça simpática, bem educada, mas não me foi possível ignorar o impacto que causei em sua personalidade. Até entendo, talvez seja a pessoa mais curiosa, com a vida mais aventureira, que ela já teve a oportunidade de conhecer. Mas incomoda como ela me observa constantemente, quando exige que lhe dê satisfações de onde vou e o 13
que faço sem sequer perceber que está sendo inconveniente, e a forma como tenta imitar meu jeito de vestir, de pentear e de agir. Minha sorte é que a faculdade também exercer sua cota de influência, e para esses jovens na idade da rebeldia, os poucos anos que nos separam são o suficiente para que me considerem uma adulta
, alguém que precisa trabalhar para pagar as próprias contas, uma realidade que ainda não os atingiu e que os amedronta na maior parte do tempo. E com tantos universitários transitando na pousada, sinto Mona como uma menina perdida entre o medo da responsabilidade e a ânsia da aventura que faz de mim um exemplo.
Mas tenho razões suficientes para não querer ninguém me observando tão de perto. Eu não tenho amigos, apenas uma multidão de conhecidos e contatos profissionais, e isso é parte da carapuça que precisei criar para minha própria segurança. Seria bom, para mim, que Mona escolhesse outra pessoa como modelo. Sua proximidade traz uma sensação de angústia que não sei definir, e não gosto.
[3]
Estou na estrada, outra vez, incluí no trajeto uma parada rápida pela capital, queria visitar minha mãe de adoção e conversar um pouco com o único homem que conhece por inteiro a minha história, o investigador policial que ainda é responsável pelo meu caso. Nós nos encontramos uma vez a cada dois ou três meses, no Clube de Tiro que ele frequenta com regularidade. Foi por influência dele que consegui o porte de armas pouco tempo depois de completar a maioridade civil, tenho uma pistola pequena que nunca usei senão nestes treinamentos, mas carrego comigo, por precaução.
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Preciso contar com a sorte para encontrá-lo. Preciso torcer para que nenhum homicídio tenha tomado seu tempo de treinamento, que nenhuma família enlutada precise ser consolada, que nenhuma reunião extraordinária o tenha retido na delegacia, e que ele esteja no stand de sua preferência. Sempre o penúltimo da fila de cabines, para que o último espaço, aquele que ninguém gosta de usar, possa ser requisitado por mim com absoluta discrição. Não me atreveria a marcar um horário em sua agenda, ele foi peremptório de que o mais seguro era que não fossemos vistos juntos, jamais.
Segurança à parte, sei que aprecia minha iniciativa, vejo isso em seu rosto sereno e no sorriso de alívio que não consegue esconder, quando chego para o treinamento demonstrando que sigo em frente, e que estou bem. Devo minha vida a este homem, mas o mistério ainda paira sobre a minha história. Temos um pacto: ele não desistiu da investigação, e eu não desisti de viver.
Neste cair da tarde, só nós dois ainda estamos treinando. No campo quase vazio, fico à vontade para contar as novidades, de como me enturmei com alguns grupos de sobrevivencialismo, que agora estou ganhando algum dinheiro com treinamento de novatos. Ele ri e me pergunta sobre os outros projetos, cito como resposta o velho ditado que papai sempre repetia, não coloque todos os ovos na mesma cesta, e como levo o conselho ao pé da letra. Meu trabalho principal continua a ser fotografia e ilustração, tenho um projeto captando recursos de um financiamento coletivo e vários freelas que rendem o bastante para as despesas do dia a dia. Nessa contabilidade, os cursos de sobrevivência na selva entraram na mesma categoria dos projetos personalizados para customização de Tiny Houses, são trabalhos eventuais e uma boa desculpa para viajar, conhecer pessoas e ganhar um extra.
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Ele acena a cabeça num gesto de concordância, mas suas palavras reiteram a necessidade de que eu esteja sempre alerta, porque a investigação prossegue ainda que a passos lentos, e seus possíveis desdobramentos são imprevisíveis. Já ouvi essas mesmas palavras tantas vezes, que consigo escutar nuances nas entrelinhas daquilo que não foi dito. Intuitivamente, sei que ele tem alguém na mira, que está chegando mais perto do que quer que seja que procura.
Hora de partir.
Ele se despede com um olhar caloroso como um abraço, antes de sair. Com ele, vai uma parte do meu passado, a felicidade que já tive e perdi. Fico mais um tempo, miro para mais duas ou três munições já planejando aproveitar a loja do Clube para repor o material que gastei no treinamento. O pensamento está longe, acompanha o homem que salvou a minha vida, mais de uma vez, e no passado distante que me esforço para esquecer, ao menos na maior parte do tempo.
[4]
Uma fogueira grande foi acesa a partir dos seis pequenos braseiros que cada um dos novatos aprendeu a fazer usando técnicas de fricção de gravetos. Apesar da aparência, não estamos na mata selvagem, é apenas um trecho de preservação natural de uma fazenda, uma dúzia de passos e estaremos novamente na civilização, entre campos cultivados e casas quentes bem iluminadas. Ou seja, um local apropriado para a primeira experiência desse grupo leigo de interessados em sobrevivencialismo.
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Ainda assim, quando a noite cai, o mundo fica pequeno e