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Operadoras de guerra
Operadoras de guerra
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E-book639 páginas9 horas

Operadoras de guerra

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Sobre este e-book

«Um romance revelador e detalhado sobre mulheres admiráveis... Chiaverini tece os fios que se entrelaçam na vida destas valentes mulheres-soldado, salientando o seu profundo sentido de orgulho e dever.»
KIRKUS REVIEWS
Jennifer Chiaverini apresenta um romance ousado e revelador sobre uma das maiores histórias alguma vez contadas sobre a Primeira Guerra Mundial: a das mulheres do Corpo de Transmissões do Exército dos Estados Unidos.
Em junho de 1917, o general John Pershing chegou a França com o objetivo de estabelecer as forças norte-americanas na Europa. Rapidamente descobriu que a comunicação com as tropas destacadas no campo de batalha era impossível. Precisava de operadoras capazes de gerir as ligações com rapidez e precisão, que falassem francês e inglês na perfeição, que mantivessem a compostura no caso de se encontrarem debaixo de fogo inimigo e que fossem absolutamente discretas, uma vez que as comunicações continham informação classificada.
Responderam mais de 7600 mulheres ao anúncio, incluindo Grace Banker, que trabalhava para a AT&T como formadora de operadoras de centrais telefónicas; Marie Miossec, uma francesa e cantora de ópera; e Valerie DeSmedt, uma operadora de vinte anos da Pacific Telephone decidida a lutar pelo seu país natal, a Bélgica. Estiveram as três entre as primeiras mulheres que juraram lealdade ao Exército dos Estados Unidos. Os soldados masculinos que foram substituir demoravam um minuto a fazer a ligação de uma chamada. As mulheres-soldado da central telefónica faziam-no em apenas dez segundos.
Às vezes ridicularizadas com a alcunha «meninas do telefone», as mulheres do Corpo de Transmissões do Exército dos Estados Unidos serviram com honra e desempenharam um papel essencial na conquista da vitória dos Aliados. O risco de morte era real — trabalhavam enquanto choviam bombas em seu redor —, tal como a ameaça de uma nova doença mortal: a gripe espanhola. Nem todas as operadoras telefónicas conseguiram sobreviver.
A sua história nunca tinha sido o foco central de um romance... até agora.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de mai. de 2023
ISBN9788491399179
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    Operadoras de guerra - Jennifer Chiaverini

    Editado pela HarperCollins Ibérica, S.A.

    Avenida de Burgos, 8B

    28036 Madrid

    Operadoras de cable

    Título original: Switchboard Soldiers

    © 2022, Jennifer Chiaverini

    © 2023, para esta edição da HarperCollins Ibérica, S.A.

    Publicado pela HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

    © Da tradução de inglês, Mariana Mata

    Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

    Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

    Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

    Desenho da capa: Elsie Lyons

    Imagems da capa: Debra Lill; National Archives © Classic Picture Library/Alamy Stock Photo; © Shutterstock

    1.ª edição: Maio 2023

    I.S.B.N.: 9788491399179

    Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

    Sumário

    Créditos

    Dedicaçao

    Prólogo

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Capítulo 15

    Capítulo 16

    Capítulo 17

    Capítulo 18

    Capítulo 19

    Capítulo 20

    Capítulo 21

    Capítulo 22

    Capítulo 23

    Capítulo 24

    Capítulo 25

    Capítulo 26

    Capítulo 27

    Nota da autora

    Agradecimentos

    Notas

    Dedicaçao

    Para Marty, Nick e Michael,

    com amor e gratidão

    JOVENS MULHERES DA AMÉRICA

    ATENÇÃO!

    Esta é a oportunidade de servirem o vosso país na Força Expedicionária do general Pershing em França — uma hipótese de fazer tanto para ajudar a ganhar a guerra quanto os homens de cáqui que «saltam para as trincheiras».

    O Tio Sam quer ter o seu sistema telefónico em França a ser operado pelos operadores mais eficientes do mundo, isto é, pelas jovens americanas. O Corpo de Transmissões pediu às companhias telefónicas dos Estados Unidos que lhes garantissem estas «operadoras de guerra».

    Mas lá por serem ou terem sido telefonistas, não pensem que podem assegurar facilmente um lugar nesta força operacional expedicionária. O primeiro requisito essencial é a capacidade de falar e ler fluentemente em francês e inglês e ser capaz de compreender facilmente o francês falado numa linha telefónica. O sistema telefónico americano em França não só faz a ligação do quartel-general do general Pershing a vários pontos de importância militar, como também está diretamente ligado ao sistema telefónico do governo francês, pelo que, se o seu francês não for muito, muito bom, não se considere à partida como candidata qualificada…

    Portanto, se consegue lidar com a língua francesa tão bem quanto a inglesa, se for fiável, engenhosa e capaz de «fazer tudo sozinha», caso seja necessário, como dizem os soldados quando o curso da batalha obriga à ação rápida e individual para enfrentar uma situação séria — então, candidate-se, por favor. Já foram selecionadas quase uma centena de jovens mulheres e, a julgar por elas, esta unidade irá satisfazer todos esses requisitos e ser uma das forças americanas mais democráticas e verdadeiramente representativas enviadas para o estrangeiro…

    Estas jovens mulheres vão ser soldados sujeitos às restrições militares em todos os aspetos. O salário será de 60 dólares por mês para as operadoras, 72 dólares para as supervisoras e 125 dólares para as operadoras principais, para além de subsídios de refeição e de alojamento quando estes não forem fornecidos pelo Exército.

    As autoridades do Corpo de Transmissões assinalam que esta força operacional não vai em viagem de lazer ou em «alegre passeio», pelo que não é necessário levar vestidos de noite, sendo que as oportunidades sociais não estão de todo incluídas no programa. Será uma missão de guerra de uma natureza e tamanho habitualmente fortemente apelativo para a nação feminina americana sendo que, para lidar com ela, o Corpo de Transmissões procura jovens mulheres de sangue frio que sejam engenhosas, capazes de exercer o bom senso em situações de emergência e que estejam dispostas a trabalhar arduamente e até a suportar dificuldades, se necessário…

    As informações sobre as candidaturas podem ser obtidas por chamada para o gerente da sua companhia telefónica local, através dos formulários de candidatura, etc., ou junto do Oficial Principal do Corpo de Transmissões do Exército, Sala 826, Edifício Anexo Mills, Washington D.C., que trata das entrevistas para este trabalho.

    Bell Telephone News, fevereiro de 1918

    Prólogo

    4 de agosto, 1914

    Cincinnati

    MARIE

    Marie encheu-se de orgulho e expetativa enquanto a mãe tomava o seu lugar habitual diante do piano de cauda brilhante no gracioso salão da sua casa em Mount Auburn. Ao fundo da sala, Marie vislumbrou só uns leves traços de prateado no cabelo louro mel da mãe, que estava penteado num nó elegante na nuca, com uns quantos fios soltos a encaracolarem-se à volta do seu rosto adorável. Uma brisa fresca que soprou pela janela aberta agitou o folho rendado do corpete do vestido de popelina de seda cor-de-rosa da maman, trazendo o canto dos pássaros e um ligeiro aroma a glicínias do jardim e oferecendo uma pausa momentânea do calor e humidade da tarde de final de verão. A maman conseguia fazer o seu salão parecer tão grandioso quanto um palco, e uma sala de espetáculos tão intimista como a sala da sua própria casa. Era em tudo naturalmente graciosa, ponderada e espantosamente bela, um estilo que a sua filha mais velha se esforçava por imitar, mas que ainda não conseguia dominar. Muitas vezes temia nunca vir a conseguir.

    O pai sentou-se à frente do piano, os dedos flexíveis e compridos pousados sobre as teclas e o sol a bater-lhe nas madeixas ruivas do cabelo castanho-escuro apenas ligeiramente mais escuro do que o da própria Marie. A aguardar pelo seu sinal, olhou para a esposa com a admiração que todos ali partilhavam e a carinhosa e duradoura afeição que era só dele e dela. Uma gota de transpiração trilhou caminho pelo pescoço de Marie abaixo por debaixo do seu vestido de musselina de cor de marfim — de forma invisível, esperava ela —, mas tal como todos os outros na sala, permaneceu perfeitamente imóvel, fascinada pela presença da maman enquanto se preparava para deixar a sua voz levantar voo. Enfiada entre as suas duas irmãs mais novas num pequeno sofá atrás das cadeiras dos convidados, Marie esperou, sem respirar, pelas primeiras notas refinadas. Quando a pequena Aimée miou uma queixa e se contorceu para ver melhor, Marie agarrou-lhe na mão para a acalmar. Pegou também na mão de Sylvie, embora aos quinze anos, Sylvie soubesse comportar-se devidamente num concerto, mesmo num casual entre amigos como aquele. Em resposta, Sylvie apertou-lhe a mão e mostrou um rápido sorriso. Por muitas vezes que ouvissem a mãe a cantar, nunca se cansavam.

    Elas e os amigos dos pais que se tinham ali reunido para o seu sarau musical semanal, a maioria deles colegas do Conservatório de Música, amigos de longa data da companhia municipal de ópera, ou novos conhecimentos da Orquestra Sinfónica de Cincinnati. As suas tertúlias de terça-feira à tarde tinham-se tornado numa tradição de verão favorita desde que a família Miossec tinha vindo para a América há dois anos para que o pai de Marie, um pianista, compositor e historiador musical de renome pudesse aceitar uma cátedra no conservatório. O reitor tinha adoçado a proposta ao oferecer uma posição no corpo docente à maman. O papá gostava de declarar que o reitor queria mesmo era a magnífica diva Josephine Miossec e que só o tinha recrutado para adquirir a sua esposa, de outro modo inalcançável. De cada vez que ele dizia aquelas coisas, a maman olhava para o céu, abanava a cabeça e murmurava dúvidas, embora o carinho do sorriso de soslaio que dava ao marido mostrasse às três irmãs que a tinha voltado a encantar.

    Marie desejava um dia ter um amor como o deles e sabia que Sylvie também. Confessavam muitas vezes os desejos e sonhos uma à outra, mas só à noite, já tarde, depois de Aimée ter adormecido. Embora Aimée fosse uma querida, era demasiado nova para perceber e podia deixar escapar acidentalmente um segredo embaraçoso à frente dos pais, ou pior, à frente dos vizinhos ou colegas de escola.

    Só Sylvie sabia quanto Marie queria ser como a mãe, de viajar pelo mundo como ela tinha feito no auge da sua carreira, de encantar a plateia nas gloriosas salas de espetáculos da Europa, de desempenhar papéis icónicos nas salas de ópera mais consagradas do mundo, conquistando críticas elogiosas nos dois lados do Atlântico, inspirando os maiores compositores da época a comporem canções perfeitamente adequadas ao timbre único da sua voz. Sempre leal, Sylvie nunca advertia Marie para diminuir ligeiramente as suas expetativas, nunca admitia em voz alta o que Marie tinha começado a suspeitar ao completar o seu primeiro ano no Conservatório de Música de Cincinnati — que tinha, de facto, uma voz encantadora, mas a esperança fervorosa e o estudo diligente só a iam conseguir levar até certo ponto. Se persistisse, tornar-se-ia certamente melhor do que era naquele momento, como simples rapariga de dezanove anos, mas será que isso seria suficiente? Ou será que tudo o que desejava ficaria sempre para além do toque dos seus dedos?

    Quando Sylvie lhe voltou a apertar a mão, Marie levantou o olhar para encontrar a irmã a observá-la com um olhar inquiridor. Marie esforçou-se para lhe oferecer um pequeno sorriso e voltou deliberadamente o olhar para a mãe, que mesmo nesse momento quebrou o murmúrio expectante com as primeiras notas esplêndidas de uma Lied de Schubert, uma das três do programa. Em instantes, as dúvidas persistentes de Marie dissiparam-se, arrastadas por um rio de música. Em todo o redor, sentiu um alívio súbito de uma tensão da qual não estava consciente até ter desaparecido, como se fosse uma respiração sustida durante demasiado tempo e finalmente libertada.

    Saboreou o momento, sabendo que a tensão ia certamente regressar quando a música terminasse.

    Durante o verão inteiro, as notícias terríveis vindas da Europa preocuparam a sua família, desde aquele dia fatídico de junho quando o arquiduque Franz Ferdinand, o presumível herdeiro do trono do império austro-húngaro, tinha sido assassinado em Sarajevo por um nacionalista sérvio. Tinham estourado desentendimentos de longa data entre rivais enquanto as nações amigas estreitavam alianças e juntavam esforços contra os inimigos. A amada França de Marie era aliada da Rússia que, por sua vez, tinha uma aliança com a Sérvia. Assim, no conflito que se agravava a cada dia que passava, a sua pátria estava contra o império austro-húngaro e a sua aliada de longa data, a Alemanha. Umas semanas depois do assassinato do arquiduque, a Áustria tinha atacado a Sérvia por acolher terroristas. Em resposta, a Rússia tinha movido tropas para a fronteira que partilhava com a Alemanha para desencorajar o Imperador Wilhelm II de fortalecer a posição do seu aliado. Diplomatas de muitas nações tinham trabalhado sem parar para restaurar a calma desde então, mas parecia a Marie que as suas vozes eram afogadas por acusações de traição e ameaças de maior força militar que voavam de um lado para o outro acima das cabeças.

    Apenas três dias antes, a 1 de agosto, a Alemanha tinha declarado guerra à Rússia. No dia seguinte, a Alemanha tinha enviado tropas para o Luxemburgo e exigido passagem desimpedida para atravessar a Bélgica, o país neutro que se encontrava entre os exércitos do imperador e de França. Depois — teria mesmo sido só na tarde anterior? —, a Alemanha tinha declarado guerra a França. Em horas, França respondeu com a declaração de guerra à Alemanha, esmagando as últimas esperanças dos pacifistas por uma solução diplomática. Agora, França estava a preparar-se para mover tropas para a Alsácia Lorena, províncias perdidas para a Alemanha no tratado que tinha acabado com a guerra franco-prussiana há mais de quarenta anos. Quando o pai de Marie era novo, os seus pais, tias e tios tinham abandonado as suas casas e negócios no território anexado e voltado a estabelecer-se em Nancy, preferindo permanecer franceses orgulhosos do que ter a sua nacionalidade alterada para a alemã legalmente e de forma forçada. Naquele momento, as tropas alemãs avolumavam-se na fronteira da Bélgica e os políticos do Reino Unido, uma nação empenhada na neutralidade da Bélgica e na paz na Europa, tinham colocado de lado os seus próprios desentendimentos partidários para se unirem na oposição à agressão alemã. Parecera a Marie que aquilo era um bom presságio para França, mas quando pensou na sua querida família e amigos no seu país, o coração apertou-se de preocupação. Nem conseguia imaginar como deviam estar assustados, em pavor à espera dos primeiros sons distantes da artilharia e dos canhões.

    Os pais de Marie andavam tensos há vários dias, de palavras breves e calmas e raros sorrisos que rapidamente se desvaneciam. Marie presumiu que cancelariam o sarau musical, mas nesse mesmo dia, a sua mãe tinha pedido às filhas que a ajudassem a arrumar e a preparar tudo, como sempre, e mais tarde tinha-se retirado para o quarto para aquecer a voz enquanto se vestia e arranjava o cabelo. — Hoje precisamos mais do que nunca do consolo da música e de boa companhia — ouviu-a Marie dizer ao papá instantes antes de a campainha tocar a anunciar as primeiras chegadas.

    Os amigos deviam ter concordado com a maman, pois quase três dúzias de convidados lotaram o salão nesse dia, uma das melhores afluências do verão. Embora todos tivessem sorrisos um pouco tensos e dessem gargalhadas ligeiramente forçadas, pareciam todos partilhar do acordo tácito de não estragar a tertúlia com especulações sombrias sobre acontecimentos para além do seu controlo que se desenvolviam a milhares de quilómetros de distância.

    A determinação em se reunirem, apesar das preocupações, foi recompensada com a bela voz soprano de Josephine Miossec.

    Os amigos e família ouviram, enfeitiçados, até ela terminar a sua terceira Lied com uma nota final tão pura e ressonante que pareceu permanecer no ar até já só ser uma memória. Seguiu-se um grande e caloroso aplauso. A maman fez uma vénia graciosa, e o papá também se levantou para fazer uma vénia irónica, mas acenou aos amigos para os calar quando decidiu que aplaudiam há tempo demais, provocando risos de apreço. Depois convidou um amigo e colega, um talentoso violoncelista, a subir ao palco e, com o papá a acompanhar, logo as notas ricas e suaves de Saint-Saëns encheram a sala.

    Seguiu-se um dueto de guitarras e depois um trio de piano, flauta e violino, e assim passou uma hora e depois algumas, até que a maman deu o concerto por terminado ao convidar todos para irem até lá fora tomar uma bebida. Reconhecendo a deixa, Marie e as irmãs levantaram-se do sofá e apressaram-se a ir até à cozinha para ajudar a mãe. Tendo em conta o calor, serviram limonada com gelo, vinho fresco e cerveja gelada, em conjunto com um tentador sortido de sanduíches leves, pastelaria fina, fruta fresca e queijos.

    Bem treinadas nos seus papéis, as irmãs Miossec circulavam com bandejas, recolhiam copos vazios e mantinham um olho na mãe para o caso de lhes acenar para receberem novas instruções. Alguém ligou uma grafonola e as notas animadas de uma melodia de Irving Berlin vaguearam até ao exterior pelas janelas da cozinha em viva contraposição com o canto das cigarras e o intermitente tinir distante do elétrico. Entre o riso e a conversa, a provocação amigável e os mexericos académicos, e o debate ardente de todas as coisas musicais, Marie apanhava ocasionalmente um sussurro de especulação ansiosa sobre o conflito no estrangeiro. De cada vez que ouvia, afastava-se rapidamente com a sua bandeja de doces e salgados, sem querer dissipar a ilusão de que tudo estava bem, pelo menos ali e naquele momento.

    Ainda assim, quando regressou à cozinha para carregar a bandeja, parou à escuta quando ouviu a voz do pai, urgente e séria, do lado de fora da janela aberta. Um nome chamou-lhe a atenção: Bertha Baur, presidente do conservatório.

    — Só sabemos que está de férias na Alemanha. Enviou uma carta de Berlim, mas isso foi há semanas — dizia o pai de Marie.

    — A última coisa que soube é que estava em Munique — disse outro homem. — Estava a planear passar o verão inteiro na Alemanha. Da forma como as coisas estão, sabe-se lá se é capaz de regressar a tempo do semestre do outono.

    — Os alemães não iriam detê-la, pois não? — perguntou uma mulher. Marie reconheceu-lhe a voz — a da flautista.

    — Podem nem sequer precisar. Só têm de tornar a travessia marítima demasiado perigosa — comentou sombriamente o guitarrista.

    — Alguém sabe alguma coisa do Louis Victor Saar? — perguntou o violoncelista.

    Ao som do nome do seu professor de teoria musical, Marie aproximou-se mais da janela. No final do semestre da primavera, tinha referido que tinha planos de visitar a sua Holanda natal em junho e passar o resto do verão a dar espetáculos e palestras na Baviera.

    — Recebemos uma carta dele em julho. Na altura, estava em Munique. Não referiu quaisquer desenvolvimentos políticos ou militares — disse o pai de Marie.

    — Talvez os alemães estejam a censurar a correspondência — sugeriu o guitarrista. — Isso explicaria porque é que temos tão poucas notícias de todos os nossos colegas no estrangeiro. De certeza que não podem estar todos demasiado ocupados para escrever.

    — Não me parece que nenhum dos nossos amigos seja proibido de abandonar a Alemanha mesmo que a guerra rebente. Exceto, talvez, o Kunwald e a esposa. Admito que estou preocupado com eles — disse o pai de Marie.

    Os outros murmuraram em concordância.

    Marie tinha conhecido o Dr. Ernst Kunwald, o maestro austríaco que tinha deixado a Filarmónica de Berlim há dois anos para conduzir a Orquestra Sinfónica de Cincinnati. Há algum meses, tinha também tomado a seu cargo o Festival de Maio, onde conduziu a estreia americana da Sinfonia n.º 3 de Gustav Mahler. Nos seus dois anos em Queen City, tinha impressionado o público com os seus brilhantes olhos azuis, uma presença marcante e um discernimento impressionante no repertório. Havia rumores de que andava a corresponder-se regularmente com o seu compatriota Richard Strauss para tentar assegurar a estreia americana do seu novo e ainda inacabado poema sinfónico, há anos em composição.

    — Mas o Kunwald não está na Alemanha, pois não? — perguntou a flautista. — No final da época sinfónica, disse-nos que ia regressar a casa, em Viena, para passar o verão. A Áustria não declarou guerra a ninguém.

    — Sim, mas tendo em conta a aliança tradicional da Áustria com a Alemanha, pode ser só uma questão de tempo — respondeu o pai de Marie. — O Kunwald aposentou-se como tenente do exército de reserva do Império Austríaco. Pode ser chamado de volta ao serviço.

    — Espero que não — exclamou a flautista e todos adicionaram uma opinião.

    Marie já tinha ouvido o suficiente. Acabou de encher a bandeja com hors d’oeuvres e levou-a para o exterior, passando pelo pai e colegas, cujas vozes tinham baixado para um tom urgente.

    — Marie — chamou a mãe da outra ponta do jardim, a sorrir e a acenar.

    Pousando a bandeja na mesa mais próxima, Marie aproximou-se com rapidez, despenteando o cabelo de Aimée à passagem. A mãe estava a conversar com um homem de bigode e cabelo preto por volta dos seus quarenta anos. Tinha um charuto na mão esquerda e uma corrente de relógio em ouro a atravessar-lhe a ampla barriga que desaparecia no bolso de cintura do casaco do seu fato cinzento-claro.

    Ma petite — disse a maman, estendendo o braço para agarrar na mão de Marie e puxá-la para perto. — Permite-me apresentar-te o Dr. Stephen Brooks. Stephen, esta é a minha filha mais velha, Marie.

    O Dr. Brooks inclinou a cabeça em ligeira vénia e estendeu a mão. — Encantado por conhecê-la, mademoiselle.

    — O prazer é meu, senhor — respondeu Marie, apertando-lhe a mão.

    — O Dr. Brooks vai juntar-se ao corpo docente do conservatório como professor convidado neste outono — anunciou a mãe. — A última vez que veio a Cincinnati foi para o Festival de Maio.

    — Tal como disse à sua mãe, fiquei bastante impressionado com a atuação do coro de câmara do conservatório — comentou o Dr. Brooks. — Imagine a minha surpresa ao saber que a filha mais velha de Josephine Miossec era uma das sopranos.

    — Oh. — Marie sentiu a calor a subir-lhe às faces enquanto a mãe e o Dr. Brooks lhe sorriam, radiantes. — Ela referiu isso?

    — Porque é que não haveria de referir? Foi uma atuação maravilhosa e gabar os filhos é uma prerrogativa maternal — respondeu a mãe.

    — Claro que é — concordou o Dr. Brooks, a rir-se. — Sei que só os melhores estudantes são selecionados para este ensemble.

    Marie reagiu com um ligeiro encolher de ombros e um sorriso. — É verdade que a audição foi muito competitiva.

    — A ma petite é demasiado modesta — protestou a mãe. — Foi a única aluna de primeiro ano a conseguir um lugar.

    — A sério? — As sobrancelhas negras do Dr. Brooks ergueram-se enquanto soprava no charuto. — Muito notável, menina Miossec. Fico à espera de ouvi-la como solista. Talvez no sarau musical da próxima semana?

    — Ah, eu… — Marie atrapalhou-se à procura de uma desculpa. — Bem, gostaria, mas… — Nesse momento o telefone tocou dentro de casa, em tom sumido, mas inconfundível. — Se me dão licença…

    — Não, fica, ma petite. O teu pai atende. — A mãe fez um aceno de cabeça em direção à casa e, efetivamente, Marie viu o pai a entrar pela porta das traseiras, arruinando a sua desculpa e anulando a sua esperança de rápida fuga. Felizmente, a mãe tinha mudado de assunto, por isso Marie conseguiu evitar comprometer-se a cantar na semana seguinte, ou explicar porque é que não iria cantar. Como é que podia confessar a um provável futuro professor do conservatório que ainda não era suficientemente boa para cantar em tal companhia, pelo menos não da forma como gostaria? Não queria que os colegas dos pais a vissem como uma criança precoce. Queria que a respeitassem, se não como igual, então pelo menos como artista aspirante por mérito próprio.

    Perdida nos pensamentos, levou-lhe um instante a perceber que a mãe e o Dr. Brooks tinham parado de falar e que a atenção se tinha voltado algures para trás dela. Virando-se, Marie observou outros convidados a aproximarem-se das janelas traseiras, onde o seu pai estava lá dentro parado com o castiçal do telefone erguido até à boca com a mão esquerda, e o recetor levantado até ao seu ouvido direito. Estava a repetir a conversa para os convidados ouvirem, mas Marie estava demasiado longe para apanhar mais do que as frases mais urgentes: o Reino Unido fez um ultimato a Berlim. Os alemães têm de cessar a atividade militar de imediato ao longo da fronteira belga ou provocam a guerra também com o Reino Unido. O rei Albert da Bélgica tinha feito um apelo formal de ajuda a França e ao Reino Unido como garantes da sua neutralidade por tratado internacional.

    Mon dieu — murmurou a maman.

    De coração a bater fortemente, Marie sentiu a mão da mãe naquele momento a apertar a dela e foram as duas juntar-se aos que já estavam reunidos à volta das janelas.

    — A Alemanha declarou guerra à França e à Bélgica — repetiu o pai, calando-se para ouvir entre as frases. — Esta é a sua terceira declaração de guerra esta semana, tenho já declarado guerra à Rússia e invadido o Luxemburgo. As tropas alemãs avançaram para dentro da Bélgica em três pontos, violando a sua política de neutralidade. Foi reportado que já haveria um milhão de homens franceses perto da linha de fronteira, mas a França corria ainda maior risco com a invasão da Alemanha ao Luxemburgo e Bélgica, mesmo nas suas fronteiras. A França tem defesas muito limitadas ao longo da fronteira belga, tornando-a vulnerável a ataques naquela frente. — Uma pausa longa enquanto ele escutava. — Não pode estar a falar a sério. — Outra pausa. — Sim, percebo. Não posso acreditar, mas percebo. Obrigado, Paul. — Desligou a abanar a cabeça e a franzir a testa.

    — O que foi, mon cher? — perguntou de imediato a mãe de Marie.

    — Wilson proclamou oficialmente que os Estados Unidos vão manter-se neutros no conflito, «imparciais no pensamento, bem como na ação».

    — O que é que é suposto isso querer dizer? — perguntou o violoncelista.

    — Sei tanto quanto você — respondeu sombriamente o pai de Marie. Afastou-se da janela para voltar a pousar no telefone na sua mesa habitual.

    Marie apanhou algumas blasfémias abafadas em várias línguas enquanto os convidados murmuravam a sua consternação, raiva ou preocupação. O pai reapareceu à porta, de braços cruzados sobre o peito e expressão desoladora enquanto procurava o olhar da maman na multidão.

    De repente, parecia que todos tinham sido tomados pela necessidade urgente de regressar a casa. Marie sabia que para muitos deles, e para a sua própria família, as suas verdadeiras pátrias ficavam a milhares de milhas do outro lado do oceano, na linha de fogo ou algures perto dela. Duas das amigas da maman ficaram para ajudar a limpar, mas ela depressa as mandou embora, de sorrisos constritos, abraços e garantias recíprocas de que tudo correria bem, de algum modo.

    Assim que a família ficou sozinha, Aimée desatou a chorar. — O que é que vai acontecer à grand-mère e ao grand-père? — perguntou a tremer, de lágrimas a correrem pelas faces. — A nossa família, os meus amigos. A nossa casa. A minha escola.

    O papá pegou nela e abraçou-a. — Os nossos amigos e família são muito espertos e cuidadosos — declarou, beijando-lhe a face enquanto ela aconchegava o rosto contra o ombro dele. — Vão manter-se em segurança, aconteça o que acontecer. Quem sabe? Talvez aqueles alemães decidam ficar onde estão. É uma longa caminhada pela Bélgica debaixo deste calor de verão. Porque é que haverão de deixar as suas casas e os seus biergartens só para aborrecer os vizinhos?

    As suas palavras e tom carinhoso acalmaram Aimée, mas Marie e Sylvie perceberam perfeitamente o olhar que lançou à mãe sobre a cabeça da irmã mais nova, apreensivo e completamente alerta. Embora Aimée aparentemente não o tivesse percebido, sabiam que os soldados iriam onde quer que os generais os mandassem, independentemente das suas próprias preferências.

    — Como é que a América pode manter-se neutra? — ouviu Marie a mãe lamentar-se ao pai no final dessa noite enquanto Marie e Sylvie ajudavam Aimée a preparar-se para ir para a cama. — Prezam a liberdade, a democracia e a justiça, ou assim o dizem. Esta agressão alemã é um ultraje. Como é que os Estados Unidos podem ficar parados e nada fazer quando os seus amigos internacionais mais próximos são forçados a uma guerra em autodefesa?

    — Os americanos não querem participar num conflito na Europa. Pensam que não é da sua conta — respondeu o papá.

    — É uma atitude surpreendentemente provinciana nesta época e altura!

    — Há um vasto oceano a separar os nossos continentes. É de esperar um certo provincialismo, mesmo neste século. — O papá suspirou. — Tenta não te preocupar. Esse mesmo oceano protege as meninas, a ti e a mim.

    — Tentar não me preocupar? — A voz encantadora da maman estava embargada pelas lágrimas. — Como é que não me hei de preocupar? Nós podemos estar a salvo, por agora, mas todos os outros que amamos, todos os nossos mais queridos… Oh, Stephane, eu…

    — Calma, meu amor. As meninas ainda não estão a dormir.

    As suas vozes baixaram até ao sussurro e Marie não ouviu mais nada.

    1

    ABRIL 1917

    Nova Iorque

    GRACE

    Contaria aos pais nessa noite, resolveu Grace enquanto esperava na plataforma pelo primeiro comboio da manhã para Manhattan. Depois do jantar, quando os pais e irmãos estivessem confortavelmente saciados e satisfeitos devido ao delicioso assado com batatas de domingo da mãe, anunciaria a sua intenção de sair do seu quarto de infância e mudar-se para um apartamento na cidade.

    Era um plano perfeitamente razoável. Grace só tinha de ajudar a família a percebê-lo.

    Há meses, três amigas do trabalho tinham-na convidado a ir viver com elas e a sua resposta há muito que era esperada. A quarta colega de quarto das raparigas ia casar em junho e tinham concordado unanimemente que Grace seria a escolha ideal para preencher a vaga. Umas semanas antes, Grace tinha visitado o adorável apartamento com dois quartos em Chelsea, num encantador prédio típico num bairro seguro, apenas a alguns minutos de elétrico da sede da Companhia Telefónica e Telegráfica Americana (AT&T)[1]. Tinha janelas amplas para deixar entrar o sol, uma casa de banho privativa, uma cozinha eficiente e uma sala espaçosa para conviver e descontrair. Era absolutamente perfeito, e se não fosse a firme convicção dos pais de que as raparigas não deveriam sair de casa da família até se casarem, Grace teria assinado o contrato de arrendamento na hora. Mas claro que não podia, não só por amar e respeitar muito os pais para fazer coisas assim nas suas costas, mas também porque a lei exigia que um homem fosse seu fiador.

    Grace deslocou as alças da mala para o cotovelo e puxou a manga do seu casaco verde de caxemira para trás para olhar para o relógio de pulso. Embora a chegada do comboio só estivesse prevista para dali a cinco minutos, olhou na mesma para os carris, na esperança de o ver ao longe. Não costumava trabalhar aos domingos e tinha calculado mal o tempo e chegado à estação antes do necessário. Uma das suas futuras colegas de quarto tinha pedido o dia de folga e, apesar de Grace ter sido promovida a instrutora, ainda gostava de manter as suas habilidades na central telefónica em dia, por isso ofereceu-se para cobrir o turno. As tardes de domingo eram habitualmente bastante agitadas, especialmente no painel de longa distância, enquanto as famílias espalhadas pelo país se reuniam de novo pelas linhas telefónicas, entre as missas e o jantar de domingo.

    A viagem de Grace seria muito mais curta a partir de Chelsea, que era precisamente o tipo de razão pragmática mais provável de conquistar os pais. Graças à sua recente promoção, Grace podia muito bem pagar a renda. Os pais tinham-na encorajado a viver na residência quando estava no Barnard College. Lembrar-lhes-ia como tinha progredido entre as outras raparigas inteligentes e ambiciosas, sendo que partilhar um apartamento seria mais ou menos o mesmo tipo de experiência. As suas futuras colegas de quarto eram tão equilibradas e sensatas quanto a própria Grace, todas elas telefonistas capazes com mais de um ano de experiência. Só isso deveria ser referência de carácter suficiente, uma vez que toda a gente sabia que a AT&T fixava padrões excecionalmente elevados para a conduta das suas empregadas.

    Grace estava bem preparada para ir ao encontro desses padrões, uma vez que as próprias expetativas da sua família as excediam. Tal como todas as crianças Banker, Grace tinha sido educada para ser notavelmente responsável, boa filha e cidadã, digna de confiança, honesta e trabalhadora. Tinha tirado o curso com distinção na faculdade e feito uma dupla especialização em história e francês. Tinha um emprego que adorava, com excelentes perspetivas de progressão. Mas o mais importante era que Grace já tinha vinte e quatro anos, vinte e quatro e meio, para ser mais precisa. Já era tempo de viver a sua vida. Não tinha o pai declarado tantas vezes como estava orgulhoso do seu espírito independente? Com certeza que ele e a mãe percebiam que ela era uma jovem inteligente, capaz e moderna, que podia cuidar de si e não precisava da proteção benevolente de um pai ou marido para cuidar dos seus próprios assuntos. E nem sequer estava a pedir para viver completamente sozinha, pois residiria entre amigas de confiança, raparigas simpáticas de boas famílias que conheciam a cidade e lhe iriam mostrar como as coisas funcionavam. Talvez se os pais as conhecessem e vissem com os próprios olhos…

    Grace suspirou e abanou a cabeça para desanuviar. Em Barnard tinha integrado o Clube de Debate e feito teatro amador. Com certeza que conseguia construir um argumento melhor do que aquele que estava atualmente a ensaiar na sua cabeça. O problema não era encontrar as palavras certas para provar que o seu plano era sensato, mas fazê-lo sem ferir os sentimentos de ninguém. Os pais ficariam consternados ao saber que ela não era completamente feliz a viver em casa. Também ficariam perplexos, pois a sua irmã mais velha ainda vivia com a família, apesar de ter um emprego remunerado como professora. Porque é que Grace não haveria de fazer o mesmo?

    Grace explicaria, com a maior gentileza possível, que adorava a família e que sempre adoraria a sua casa. No entanto, tinha chegado a altura de deixar o ninho, tal como Eugene, o irmão mais novo, planeava fazer em breve. Mas claro, era esperado que os filhos um dia saíssem de casa. Essa era a trajetória de um jovem desde o nascimento. Mas não as filhas, pelo menos não sem um anel no dedo e um véu de tule branco na cabeça. Para as pessoas da geração dos pais, esperava-se que uma jovem mulher devidamente educada se mudasse da casa do pai para a do marido com uma paragem pelo meio, e a possível exceção de um período intermédio na faculdade, que permanecia um raro privilégio para as melhores e mais inteligentes.

    Grace enfiou as mãos nos bolsos do casaco, a pensar nas suas opções e a desejar ter começado há meses a preparar os pais para o seu eventual voo. O apito gutural do comboio que se aproximava interrompeu o seu devaneio. Encontraria as palavras certas para persuadi-los, disse para si quando o comboio parou na plataforma e subiu a bordo. Uma vez ultrapassado o choque inicial, admitiriam que o seu plano fazia imenso sentido. Para além disso, estaria apenas à distância de uma viagem de comboio, e havia sempre o telefone para conversas que não pudessem esperar pela visita seguinte.

    Instalou-se num lugar à janela, desenrolou o cachecol e desapertou os dois botões de cima do casaco. Estava frio para meados de abril, e as nuvens cinzentas ameaçavam chuva, mas ainda havia luz suficiente para se conseguir ler confortavelmente. No entanto, as notícias eram tudo menos reconfortantes, como descobriu quando tirou o jornal da mala e leu as manchetes. Assim era desde que a guerra tinha eclodido na Europa, cada vez mais grave depois de um submarino alemão ter afundado o navio de passageiros RMS Lusitania há dois anos. Mais de mil almas, incluindo as de muitos cidadãos americanos, tinham ficado perdidas nas águas frias da costa sul da Irlanda. Em resposta ao ultraje internacional, a Alemanha tinha insistido que tinha todo o direito de tratar o transatlântico desarmado como um navio militar, uma vez que, para além dos muitos passageiros civis a bordo, o navio também transportava munições num desafio ao bloqueio alemão à Grã-Bretanha. Mas embora o governo alemão não tivesse admitido a prática de infrações, depois disso, a sua marinha tinha deixado os transatlânticos de passageiros em paz, concentrando os seus ataques em navios comprovadamente britânicos. Durante quase dois anos, persistira uma perigosa tensão no mar, acabando por rebentar apenas há dois meses, quando a Alemanha anunciou a sua intenção de retomar a guerra submarina sem restrições. Num discurso perante uma sessão conjunta do Congresso, no início de fevereiro, o presidente Wilson tinha declarado que, embora os Estados Unidos não desejassem um conflito hostil com a Alemanha, se os alemães afundassem quaisquer navios americanos, encontrar-se-iam de imediato em guerra. De relações diplomáticas entre as duas nações cortadas, todos os dias havia novos relatórios de Washington e da Europa que faziam parecer, pelo menos a Grace, que o país estava a avançar firme e inevitavelmente para a guerra.

    O seu coração apertava-se só de pensar. O irmão, Eugene, tinha a idade ideal para ser soldado, e era corajoso, inteligente e estava em forma, cheio até acima de honra e amor à pátria. Todas as crianças Banker tinham sido educadas com um forte sentido de patriotismo e dever, pois os seus antepassados tinham vindo para a América antes da Revolução e a América tinha sido muito boa para eles. Se o país entrasse em guerra, Grace sabia que o irmão pousaria a caneta de escrivão e pegaria nas armas, mas o que poderiam ela e as irmãs fazer?

    Grace dobrou o jornal no colo e olhou pela janela. O trajeto de uma hora de distância entre Passaic e Manhattan não era particularmente pitoresco, mas a familiaridade emprestava-lhe charme. Ainda assim, os seus pensamentos estavam tão distantes que bem que podia estar a viajar de persianas fechadas, de tão pouca atenção que dava à paisagem que passava.

    Se chegasse à guerra, Grace imaginava que as mulheres da família iriam redobrar os esforços para apoiar a ajuda humanitária já em curso. A partir do momento em que as descrições de vilas devastadas e de refugiados desesperados tinha chegado às costas americanas, os clubes de mulheres em todo o país organizaram angariações de fundos para viúvas e órfãos em França, na Grã-Bretanha e na Bélgica. As revistas femininas ofereciam páginas de conselhos sobre como cultivar uma horta adequada e preservar fruta, vegetais e ervas aromáticas. E ainda havia outros grupos de mulheres a prepararem-se para a entrada da América na guerra fazendo tudo o que podiam para evitá-la. Algumas das colegas universitárias de Grace tinham-se juntado ao Women’s Peace Party[2], que organizava imensos desfiles, comícios e convenções para promover a sua plataforma antiguerra. «Como mulheres, devemos ter um compromisso único para com a paz», tinha-lhe uma amiga explicado no apelo que fez a Grace para se juntar à causa. «Como mães, e como futuras mães, temos interesse em assegurar que os nossos filhos não sejam abatidos num campo de batalha. Como cidadãs de uma democracia, temos de defender as nossas irmãs mais vulneráveis. Todos sabemos que as mulheres e as crianças são sempre e invariavelmente as que mais sofrem com a guerra.»

    Grace não conseguia discordar, mas outras amigas envolvidas em esforços de preparação para a guerra também apresentaram argumentos válidos, e ela sentiu ser impossível estar completamente do lado de um grupo contra o outro. Até o movimento sufragista, unido pelo desejo do direito a voto, se dividia em relação à questão de os Estados Unidos deverem ou não entrar na guerra. E quanto mais políticos e homens de negócios insistiam que era do interesse do país ficar fora do conflito — ao que parecia, na proporção inversa de quanto os seus amigos no estrangeiro precisavam desesperadamente deles — mais duvidosa Grace ficava.

    Tinha começado a cair uma chuva leve quando o comboio entrou na estação, por isso Grace ajustou o chapéu, desembarcou e procurou abrigo debaixo de um toldo de mercado enquanto esperava para apanhar o elétrico para a baixa de Manhattan. Desceu na paragem mais próxima da Broadway, 195 e caminhou apressadamente a partir de lá, de queixo aninhado na gola e de mãos enfiadas nos bolsos para se aquecer. Cortaria o seu tempo de viagem em dois terços se se mudasse para Chelsea, refletiu ao atravessar a Fulton na esquina, correndo em direção à entrada do edifício de vinte e nove andares da Companhia Telefónica e Telegráfica. Tinha apenas um ano, com uma impressionante fachada neoclássica de granito Vermont branco acentuada por camadas de colunas gregas de granito cinzento. Sobre o telhado escalonado da ala da rua Fulton erguia-se a Genius of Electricity[3], uma enorme estátua em bronze dourado de uma figura masculina alada, colocada sobre um globo, rodeada por cabos, com dois relâmpagos agarrados ao punho esquerdo erguido. O título da estátua original tinha sido Genius of Telegraphy[4], mas o presidente da AT&T tinha-lhe dado um novo nome depois de a corporação ter cedido a Western Union para evitar alegações antimonopólio. Tal como a maioria das suas colegas de trabalho, Grace preferia a alcunha muito mais lúdica que a estátua tinha adquirido, Golden Boy[5].

    Entrando pela sacada da rua Fulton, Grace soltou o cachecol e começou a tirar o casaco enquanto atravessava o vasto átrio, com as suas botas de salto baixo a clicarem no chão de mármore cinzento que brilhava à calorosa luz lançada pelos candelabros de bronze e alabastro suspensos do teto de doze metros, encaixotado numa grelha de vigas embelezadas a verde e dourado e apoiadas por colunas dóricas em mármore branco.

    Sem clientes e apenas alguns turistas a percorrerem o átrio tão cedo numa manhã de domingo, de guias na mão, olhares de admiração virados para cima, pelo que Grace conseguiu fazer o seu caminho desimpedido até a um discreto corredor reservado a empregados. Trocou breves cumprimentos amistosos com as colegas de trabalho igualmente preocupadas com quem se cruzou a caminho da sala dos telefonistas, onde pendurou o casaco e o chapéu, deixou a mala no seu cacifo, e fez uma pausa para se ver ao espelho, ajustando o laço na gola da sua blusa e passando uma mão pelo cabelo castanho-escuro cortado a direito para afagar os caracóis achatados pelo seu chapéu.

    — Bom dia, Grace — cantarolou uma voz. — Já falaste com os teus pais?

    Grace voltou-se e descobriu uma das suas futuras colegas de casa a levantar-se do sofá ao canto, com a sua blusa branca e saia azul comprida quase tão idêntica à da própria Grace, com o seu cabelo preto brilhante arranjado num perfeito penteado à Gibson Girl.

    — Bom dia, Lily. — Quando a amiga ficou a olhar para ela na expetativa, Grace acrescentou: — Não, ainda não lhes dei a notícia, mas tenciono fazê-lo esta noite.

    Lily colocou uma mão na anca e olhou-a com ar cético: — Tencionas ou vais fazê-lo?

    — Vou — respondeu Grace com convicção. — Já tenho tudo mais ou menos planeado. Depois do trabalho e depois de jantar…

    — Ah, estou a ver… Então foi por isso que abdicaste do teu dia de folga para fazer o turno de telefonista da Molly, para evitar os teus pais — provocou Lily.

    — Não estou a evitar ninguém — protestou Grace a rir. — Não estou a procrastinar, pelo menos já não estarei, não após esta noite.

    — Como queira, menina Banker. — Sorrindo, Lily fez-lhe sinal para que se aproximasse e apontou para uns panfletos espalhados sobre a mesinha de centro. — Olha, lembras-te quando foste ver o apartamento e estivemos a falar sobre como nós, jovens, podemos fazer a nossa parte para além de tricotar, plantar e poupar uns cêntimos para os órfãos de guerra?

    — Claro, lembro-me bem. — Grace juntou-se a ela ao pé da mesa e pegou num dos panfletos. — «A Escola do Serviço Nacional» — leu em voz alta. — Acho que a Caroline da estenografia foi a um campo deles no mês passado.

    Se a memória estiver correta, tinha sido há cerca de um ano que a Secção de Mulheres da Liga Naval tinha criado a Escola de Serviço Nacional, uma série de campos de duas semanas onde era ensinado calistenia militar, cozinhar para os enfermos, mudar camas de hospital e a fazer ligaduras e pensos cirúrgicos a jovens mulheres. Muito mais intrigantes para Grace e as amigas eram as aulas de funcionamento do wireless e do telégrafo. E, ainda assim, Grace tinha ficado com muitas dúvidas em inscrever-se, não só porque a maioria da Secção de Mulheres da Liga Naval era conhecida por ser ultraconservadora e antissufragista, mas também porque sabia que a AT&T não podia dispensar uma instrutora como ela durante duas semanas, mesmo se estivesse inclinada a passar o seu valioso tempo de férias numa empreitada tão duvidosa. Pelo que ouvira, uma rapariga trabalhadora como Caroline era uma exceção entre as participantes, que tendiam a ser jovens socialites bem-intencionadas com pais indulgentes, tempo a mais e nenhuma necessidade de ganhar a vida.

    Com um suspiro de ceticismo, Grace atirou o panfleto para cima dos outros. — Estás a pensar em inscrever-te?

    Lily encolheu os ombros e dobrou-se para apanhar o panfleto que Grace tinha deixado cair. — Não sei. — Ao examinar o que tinha na mão, franzindo pensativamente a testa, olhou para os outros e pegou num com um desenho apelativo de uma jovem bonita e sorridente, de olhar baixo, enquanto enrolava tecido branco num rolo de ligaduras. — Gosto da ideia de servir o meu país.

    Grace olhou de relance para o relógio e dirigiu-se para a porta. — Se realmente queres servir o seu país, alista-te na Reserva Naval.

    O nariz de Lily torceu-se em desagrado. — Ser uma yeomanette[6] e trabalhar num escritório a arquivar papéis e a datilografar?

    — Para libertar o marinheiro para o serviço no mar, claro.

    — Não soa muito glamoroso.

    — Não me parece que o glamour esteja em questão. — Divertida, Grace parou à porta. — Vemo-nos na central. Não te atrases para o teu turno ou terei de te reportar.

    — Não o farias.

    — Talvez. — Grace atirou-lhe um sorriso sobre o ombro na despedida. — Tenta-me.

    — Mexer em papelada num escritório da marinha seria mais aborrecido do que o que estou a fazer agora — disse ainda Lily nas costas dela. — Eu quero aventura, excitação. Quem é que se junta à marinha para se aborrecer de morte?

    — Trata-se do serviço e não de aventura — respondeu Grace de volta enquanto se apressava para o seu destino.

    Chegou à central uns minutos adiantada, de pulsação a acelerar ao agradável som familiar dos cliques das tomadas e do murmúrio de vozes. Filas altas de estações telefónicas preenchiam a sala, dispostas de costas umas contra as outras com corredores ao meio para as operadoras se poderem sentar cada uma no seu posto. Quando encontrou o seu lugar, Grace trocou cumprimentos com amigas, por vezes só com um aceno ou sorriso, caso a telefonista estivesse a tratar de uma chamada. Sentando-se, colocou os auscultadores, ajustou o bocal, examinou fila após fila de pequenas lâmpadas, tomadas e fichas numeradas para ter a certeza de que tudo estava em ordem, e aguardou a primeira chamada da manhã.

    Não demorou muito. Grace ainda mal se tinha recostado na cadeira quando uma lâmpada se acendeu, assinalando a entrada de uma chamada. Com rapidez, pegou num cabo preto flexível, localizou a tomada correspondente de entre as muitas dispostas em filas ao fundo do painel telefónico e conectou-o com firmeza.

    — O número, por favor? — inquiriu em voz límpida e profissionalmente cordial. As operadoras telefónicas eram enfaticamente instruídas a serem «raparigas de sorriso na voz» e o que quer que não surgisse naturalmente devia ser alcançado através da prática e do refinamento.

    — Certo, operadora, preciso do BA 5-7121 de imediato, por favor — respondeu um homem.

    — Sim, senhor — respondeu. Aquela era fácil, dentro da sua própria rede. Grace ligou rapidamente a outra ponta do cabo na tomada de destino e puxou a manivela que fazia tocar a campainha do telefone. Quando o destinatário atendeu, Grace permaneceu em linha por um instante para ter a certeza de que estavam ligados, mas depois acendeu-se outra pequena lâmpada e foi obrigada a avançar.

    Dessa vez, o interlocutor queria ligar para alguém fora da sua rede, por isso Grace teve de se esticar um pouco e ligar o cabo a uma tomada diante da operadora à sua direita. Tinham muitas vezes de estender os braços e, à frente umas das outras, esticar um cabo do próprio posto até lá, o que, em dias de muito trabalho se tornava num feito acrobático, já que todas elas tentavam fazer a ligação das chamadas com rapidez, eficiência e precisão sem se meterem no caminho umas das outras, criando um som péssimo. De vez em quando, tinham de verificar as chamadas em ligação para ver se as partes ainda estavam a conversar. Se as chamadas tivessem sido terminadas, a operadora desligava os cabos para libertar a tomada. Desgraçada da operadora que puxasse a ficha quando as partes estavam só em pausa a alinhar os pensamentos. Uma chamada de longa distância era uma produção ainda mais elaborada, envolvendo múltiplas operadoras que estabeleciam uma retransmissão entre diferentes centrais numa ou mais cidades entre o interlocutor e o destinatário, num processo que podia demorar horas.

    A maioria dos clientes eram simpáticos e amáveis, mas, infelizmente, outros eram bruscos ou encontravam-se impacientes, aborrecidos, inseguros ou eram francamente grosseiros. Às vezes, um interlocutor fornecia um número incorreto e castigava a pobre da operadora que, sem culpa nenhuma, não conseguia contactar a pessoa que ele buscava. Outras, o destinatário não atendia e o interlocutor descarregava a sua frustração em cima da operadora. E outras ainda, um qualquer indivíduo atrevido ficava intrigado com uma voz encantadora e abandonava a chamada original para conversar com a telefonista que, para frustração dele, estava terminantemente proibida de lhe dizer o nome. No meio de tudo isso, esperava-se que a telefonista permanecesse impávida, cortês e prestável, sem nunca se ofender, nunca perder as estribeiras e de modo algum desatar a chorar. Como instrutora, Grace observava com frequência as novatas nas linhas e, por vezes, quando as respostas da telefonista indicavam que a chamada estava a correr mal, Grace ficava de pé atrás da cadeira da rapariga, pousava-lhe uma mão reconfortante no ombro e murmurava encorajamento ou frases

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