Povo alegremente nu: Colect�nea de Contos Traduzidos pelos vencedores do Concurso de Tradu��o Liter�ria 2022
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Povo alegremente nu - Kateryna Babkina
RICHARD, CORAÇÃO-DE-GALINHA
Tradução de Denilson Monjane
Estava claro desde o início que ninguém iria a lugar algum. As nuvens acima da cidade tinham trazido chuva, enquanto sentávamos na cozinha, rindo e fazendo planos – onde jantar e o que fazer depois. Serhiy e eu trouxemos Richard connosco; Nadia e Radu juntaram-se a nós pelo caminho. Foram três dias numa cidade do sul à beira mar, ainda mais preciosos roubados dos últimos eventos políticos que todos nós – sendo jornalistas ou fotógrafos – temos acompanhado incessantemente por um longo período, com não mais que um intervalo para um descanso. O verão estava perto, e sentimos que desejava água, mas era sangue que o verão desejava.
Conheci Richard há dois anos em Hanói. Todos os dias, às cinco da manhã, os altifalantes ecoavam canções optimistas nas ruas – os Vietnamitas indo para casa depois de um duro dia de trabalho, tinham de ouvir vozes de crianças elogiando o partido. Os Vietnamitas indo para casa depois de um dia de trabalho fácil dentro dos seus carros enormes não conseguiam ouvi-las. Os altifalantes mal tinham-se silenciado, quando as vozes dos pássaros os abafou: todo café, todo hotel, todo salão de cabeleireiro, e, certamente, toda mercearia em Hanói tinha pássaros em gaiolas. Gaiolas penduradas no tecto ou toldos sobre as janelas das lojas; apertados e estreitos, perdiam-se entre o emaranhado de trepadeiras e cabos eléctricos. Não se encontravam pássaros em nenhum sítio; só duas vezes por dia – antes do pôr e do raiar do sol – eles dominavam a cidade por alguns minutos.
Um dos nossos colegas nos contactou. Concordámos que nos encontrássemos perto da Catedral de St. Joseph e depois vagueamos por esta Notre Dame Vietnamita, tão fora do lugar no meio destes macarrões, palmeiras, e chapéus cónicos, gradualmente nos conhecendo melhor. Havia alguns velhos afrescos preservados no quintal da igreja, três Reis carregando as suas prendas pelo deserto. Um deles apontava para cima admirado – olha, Baltazar, olha, Melchior, parecia dizer, uma samambaia brotou de onde a estrela de Belém devia estar, o que devíamos fazer agora? E então, por muitos, muitos anos, os três vaguearam pelo deserto, tendo perdido de vista os seus marcos – samambaias cresceram de cada uma das paredes em Hanói. Uma mulher idosa, uma vendedora de rua numa bicicleta carregada de frutas, parou e repousou por perto; Ela parecia estar a dormir em pé, o seu chapéu balançando e a sua sombra redonda também, para lá e para cá nas lajes de pedra sob seus pés.
Richard era grande e barulhento, americano até a ponta dos dedos; ele vestia uma camisete "não-é-meu-presidente , mas julgando pelo seu aspecto e as opiniões políticas do seu dono, ele tinha-a desde o mandato do presidente anterior. Richard era obcecado pelos mortos.
Passou dois meses a viajar pela linha férrea de Truong Son e visitando locais da Guerra do Vietname. Richard fotografou os vivos como se estivessem mortos; tinha uma habilidade para encontrar as posições e os ângulos certos – nas suas fotografias, surfistas tirando uma soneca pareciam cadáveres de soldados abandonados depois de uma batalha brutal, e os filhos dos turistas preguiçosamente olhando de soslaio, encostadas às paredes das câmaras de tortura, enquanto os seus pais escutavam os guias turísticos, pareciam pequenos combatentes Vietnamitas massacrados. Mesmo um grupo de anciãos holandeses observando o exterior do hotel e caminhando para o machimbombo se assemelhavam a refugiados abatidos, e o que desajeitadamente segurava um pasta parecia estar a segurar uma criança morta.
As fotografias do Richard – todas elas estranhas e todas sobre mortos vivos – foram vendidas para revistas de renome. Até a Time e a Esquire compraram. Richard era de Seattle, e era a sua primeira vez no estrangeiro. De qualquer modo, era muito jovem e lidava com o conceito de morte e cronicando cadáveres no mundo dos vivos como a glorificação da fluidez e mudança, como uma investida em perder tempo, como resistência social, e revolta contra tudo que oprime a vitalidade do corpo humano, e como as outras coisas. Vagueamos toda a noite, e Richard continuou a balbuciar sobre a morte e tacteando a câmara no seu pescoço, mesmo que ninguém estivesse a morrer à nossa volta, e não teve de tirar nenhumas fotografias. Em vez disso, ali havia muita gente viva e barulhenta – desconhecendo o conceito de espaço privado – correndo; o crepúsculo estava repleto de pessoas. Tentaram nos vender comida. Tentaram nos vender comida de toda janela e estante; Estriparam galinhas em todas as partes que se podem imaginar, corações de galinha escorregadios estoiravam e estalavam sob os nossos pés. Esguichando sangue. Perguntei a Richard se já tinha visto uma pessoa morta antes.
A minha avó, antes de ser cremada. Eu tinha nove anos na altura,
ele respondeu gravemente.
Richard enviou-me um e-mail depois das pessoas terem prestado as suas condolências aos sucumbidos em Fevereiro. Ele prestou as suas condolências; uma canção de luto Plyve Kacha
comoveu-o e foi pesquisar a sua tradução na Internet. Perguntou-me o que se estava a passar, disse que se sentia mal e que estava ali por nós, mas eu sabia o que realmente se passava na sua mente. Havia me enviado algumas palavras raras de apoio quando tudo começou, e eu valorizei isso. Pois, não pôde perder pessoas mortas num só lugar. Falei com o Serhiy sobre isso, e convidámo-lo.
Quando Richard chegou já não havia mortos – só os que foram levados como reféns, detidos ou desaparecidos. Já havia conflito no leste da Ucrânia, um combate ligeiro, já não há refugiados. Tudo isto aparentava ser insuportável para Richard, mas o que poderíamos ter feito com ele? Estava aborrecido, desapontado, como uma criancinha, que tinha saudades da Praça Europeia, carbonizada e enegrecida pela borracha queimada, cocktails Molotov e tiros. Só os bêbados e malucos ficaram nas tendas do centro da cidade. Os repórteres estrangeiros, fotógrafos e operadores de câmara que ele pode ter conhecido se dispersaram por algum motivo. Richard era para nós uma nova etapa em termos de nutrir a tolerância em torno dos outros
, que nos invadiram vindos de todo mundo. Tratou a nossa dor profundamente pessoal com uma curiosidade profundamente consumista, e tínhamos de aceitar isso, uma vez que, tecnicamente, não havia feito nenhum mal. Passeou pela cidade por uns poucos dias, enquanto trabalhávamos como cães para processar o desenvolvimento lento no leste da Ucrânia, no entanto ele tirou apenas uma fotografia. Um rapazinho – cerca de quatro anos – caíra, tendo tropeçado sobre as pedras de paralele-pípedos, removidas pelos protestantes na Praça Europeia, onde o tráfego ainda estava bloqueado. Na fotografia do Richard, o rapaz parecia estar morto, desesperadamente morto, o fundo mostrando montes de grinaldas comemorativas e lâmpadas incandescentes onde pessoas foram baleadas.
Deve ter sido um génio, este Richard, um génio em documentar a morte onde aparentava não estar mais presente, um génio em fixar a presença omnipresente da morte mesmo onde ainda não era visível. No final de