A Teologia do Holocausto e o Problema do Mal
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A Teologia do Holocausto e o Problema do Mal - Leonardo Delatorre Leite
INTRODUÇÃO
A questão acerca do mal rendeu inúmeras reflexões filosóficas² e disputas no campo da teologia, sobretudo, com o intuito de explicar, ainda que de forma limitada, a preservação da bondade divina, bem como de sua onipotência, diante do sofrimento humano e da degradação moral³. Por certo, as questões sobre o mal podem ser abordadas em termos seculares, visto que se referem, primordialmente, a um problema acerca da inteligibilidade do mundo como um todo⁴. Aliás, conforme atesta Susan Neiman (2003, p. 19-20), a filosofia dos séculos XVIII e XIX foi guiada pelo problema do mal [...] que não pertence nem à ética, nem à metafísica, mas forma um elo entre as duas
. Além disso, na concepção da autora supramencionada, promover uma reconstrução das reflexões acerca do mal representa o melhor caminho de abordar a própria história da filosofia, pois as questões concernentes ao sofrimento, crueldade e degradação moral englobam temáticas da ética, da estética e da metafísica, envolvendo, assim, uma visão mais complexa da própria filosofia.
O presente livro discorrerá sobre o problema do mal a partir das teodiceias clássicas e das reflexões posteriores ao holocausto, pois o genocídio em massa dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial suscitou um questionamento profundo sobre a possibilidade da bondade de Deus diante de tamanho sofrimento, ameaçando, por conseguinte, as bases da teologia judaica e da filosofia cristã. As ponderações realizadas terão como base a autobiografia de Elie Wiesel, sobrevivente dos campos de extermínio. Os relatos do autor supracitado carregam reflexões religiosas, as quais, posteriormente, moldaram as grandes temáticas da Teologia do Holocausto⁵. A brutalidade promovida pelo totalitarismo nazista foi o grande motivo pelo qual Wiesel perdeu sua fé e sua esperança na bondade do Criador. Segue-se, portanto, que o problema do mal é crucial para a própria preservação dos elementos centrais do judaísmo e do próprio cristianismo. Conforme atesta Ariel Finguerman (2012, p. 5-8):
O Holocausto não ameaçou apenas a existência física dos judeus, mas também do judaísmo como religião. O massacre do povo escolhido
na Europa nazista, num nível de barbárie inédita na história mundial, pareceu ter abalado as estruturas de uma fé que reivindica um especial relacionamento com um Deus definido como bom, justo e preocupado com os assuntos humanos. Tamanha destruição não poderia passar desapercebida pelos pensadores judeus, que começaram a elaborar explicações religiosas para o holocausto [...] os teólogos cristãos ficaram divididos quando se depararam com o desafio de explicar a Shoá, assim como no entendimento sobre qual deve ser o impacto desse evento no cristianismo pós-1945 [...] o leitor não deve concluir de maneira apressada que o impacto do Holocausto tenha sido maior no judaísmo do que no cristianismo.
A presente dissertação filosófica terá como proposta primordial apresentar, por meio da pesquisa descritiva e bibliográfica, uma breve exposição acerca das reflexões teológicas levantadas pela obra A Noite de Elie Wiesel, quais sejam: é possível a compatibilidade entre o sofrimento humano e a afirmação da bondade divina⁶? O universo concentracionário nazista abalou o status dos judeus como povo eleito
? Como o Holocausto⁷ pode ser interpretado na história sagrada de Israel? O Criador ocultou sua face
durante o totalitarismo nazista?
Diante do exposto, será defendida a seguinte tese: Conforme aponta Yehuda Bauer⁸, o holocausto é historicamente inédito. Não obstante, em termos religiosos, não pode ser compreendido como um acontecimento capaz de abalar os princípios centrais do judaísmo e do cristianismo, visto que tal fenômeno pode ser analisado a partir das teodiceias clássicas, do problema da presença do sofrimento na criação⁹ e da afirmação da possibilidade lógica entre as seguintes sentenças: Deus é onipotente e misericordioso
e O mal existe
. Desse modo, apesar de sua brutalidade e crueldade desumanizadora, o universo concentracionário nazista não modificou os fundamentos da fé judaica e da cosmovisão cristã¹⁰. Destarte, apesar dos impactos dos questionamentos e do ceticismo no tocante aos atributos divinos de amor e justiça, o holocausto pode ser avaliado dentro do quadro geral do problema do mal¹¹, o qual foi abordado por teólogos e filósofos medievais e modernos.
Numa primeira análise, será realizada uma reflexão sobre as nuances e traços da literatura judaica do holocausto. Ulteriormente, será apresentada uma breve exposição acerca da obra A Noite, reafirmando o impacto que a brutalidade e a crueldade do regime nazista tiveram sobre as crenças elementares de uma religião centrada num relacionamento piedoso com um Deus qualificado como sumamente bom. Em seguida, será feita uma reconstrução dos argumentos clássicos e centrais dos autores cristãos sobre o problema do mal. Nesse sentido, Santo Agostinho, Leibniz e Blaise Pascal terão uma proeminência na presente abordagem teórica. Posteriormente, voltaremos ao tema da teologia judaica do holocausto, sobretudo, a partir dos escritos de Eliezer Berkovits e Joseph Soloveitchik. Por fim, será apresentada, com base no exposto e nas ponderações de C.S. Lewis, uma defesa de Deus
frente às posições que enxergam no mal e no sofrimento humano verdadeiros antagonistas de sua onipotência e justiça. Não obstante, antes de adentrar nas nuances supramencionadas, é premente ressaltar uma observação: o presente trabalho adota uma visão segundo a qual o mal possui uma parcela de inteligibilidade. Todavia, ele transcende o condicionamento social cotidiano. Num certo sentido, ele é metafísico, visto que se impõe
em relação a todos os aspectos da vida, ou seja, em relação à vida em si, não somente no tocante a uma parte ou dimensão dela¹².
² De maneira geral, poderíamos dizer que o mal teve dois tratamentos básicos pelos filósofos que o abordaram. De um lado, a tentativa de compreendê-lo teoricamente, de onde resultou, na maior parte dos casos, a conclusão de que o mal, enquanto tal, não existe. De outro lado, a tentativa de explorar a experiência do mal, o mal que sofremos e vemos os outro sofrerem, o mal que causamos e vemos os outros causarem, de onde resultou a conclusão de que estamos mergulhados no mal e que é impossível evitá-lo. A partir deste aparente paradoxo (o mal não existe e ao mesmo tempo é inevitável) e da maneira como a filosofia confrontou-o, pudemos selecionar um percurso mínimo para entender os rumos da questão
(OLIVA, 2019, p. 10-11).
³ As concepções modernas do mal foram desenvolvidas em uma tentativa de parar de culpar Deus pelo estado do mundo e de assumirmos sozinhos a responsabilidade por ele [...] a história da filosofia está tão imersa no problema do mal, que a questão não por onde começar, mas sim onde parar
(NEIMAN, 2003, p. 16-24).
⁴ Ao enfrentar o problema do mal, a filosofia assume, portanto, um risco total, aceitando que, enquanto não atravessar o fogo dessa questão, ela não sabe bem o que é, tampouco se é [...] o problema do mal coloca um ponto final na filosofia, permitindo, se for resolvido, o acordo final; se for insolúvel, anuncia o seu fim, ou promete alguma promoção além de si mesma
(BORNE, 2014, p. 20-21).
⁵ A adoção da expressão Teologia do Holocausto
reflete sua importância na literatura acerca da temática em questão, tais como Holocaust Theology – A reader
de Cohn-Sherbok e Wrestling with God – Jewish Theological Responses during and after the Holocaust
, de Katz (2007). Não obstante, alguns autores afirmam, como o próprio Ariel Finguerman, que qualificar as ponderações e reflexões dos escritores judeus sobre a Shoá como Teologias
implicaria a marginalização de tais pensamentos no contexto da própria história intelectual judaica, o que, por certo, os impactos do holocausto não permitiriam. Ademais, a Teologia
, entendida aqui como uma abordagem sistemática de uma fé mediante um método lógico e uma ordenação de princípios, não esteve presente no escopo dos pensamentos e escritos dos judeus na maior parte de sua história. Nesse sentido, a utilização do termo designa tão somente uma atitude pedagógica, já que, por meio de uma análise teórica, pode-se afirmar que tal expressão apresenta