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Entre As Sombras E A Luz
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Entre As Sombras E A Luz
E-book1.017 páginas11 horas

Entre As Sombras E A Luz

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Sobre este e-book

Entre as Sombras e a Luz é um romance ambientado na Roma Antiga, narrando a história de Octavius, filho de um judeu liberto e apaixonado pela jovem Valeriana, recém-convertida ao Cristianismo. Dissimulando seu desinteresse pela fé no intuito de conquistar Valeriana, Octavius é arrastado para um dos mais turbulentos períodos da História, ao centro do conflito entre a inflexível tenacidade dos primeiros cristãos e a potência do império que os cercava. Ficção e eventos históricos minuciosamente tratados se entrelaçam para conduzir o leitor em uma narrativa empolgante, ao violento choque que moldaria a Civilização Ocidental.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de jul. de 2023
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    Entre As Sombras E A Luz - Marcus Fadel

    1

    FADEL, M ARCUS

    ENTRE AS SOMBRAS E A LUZ

    IS B N 978 -85 -356 -4214 -8

    2ª EDIÇÃO – 2023

    E D IT O R A C LU B E D E AU TO R E S

    DISPONÍVEL EM FORMATOS IMP RESSO E DIGITAL EM

    https://clubedeautores.com.br

    MARCUS FADEL

    Entre as Sombras

    e a Luz

    Dedico este livro

    a minha mãe ( in memoriam) e a meu pai,

    que com seus valores iluminaram

    as vidas de tantos filhos;

    à Gioconda ( in memoriam)

    ao tio Juarez (in memoriam);

    a minha esposa, Ana,

    e a nossas crianças, Beatriz e Alexandre,

    das quais este livro furtou alguns

    momentos de lazer.

    4

    Sumário

    Capítulo I Jerusalém ....................................................................................................... 7

    Capítulo II Octavius ...................................................................................................... 14

    Capítulo III A Banalidade do Mal ........................................................................... 27

    Capítulo IV E avanti a lui, tremava tutta Roma ............................................... 36

    Capítulo V O Visitante.................................................................................................. 43

    Capítulo VI Conspiração ............................................................................................. 48

    Capítulo VII Claudius Imperator Romanorum .................................................. 81

    Capítulo VIII Um Convertido Atrapalhado ........................................................ 96

    Capítulo IX Lar, doce lar.. ........................................................................................ 104

    Capítulo X Sobre sorrisos ........................................................................................ 115

    Capítulo XI É fogo que arde e não se vê .............................................................. 127

    Capítulo XII MCDXCIX................................................................................................ 144

    Capítulo XIII Um pateta para o jantar ................................................................ 156

    Capítulo XIV É dor que desatina sem doer ........................................................ 175

    Capítulo XV Vou dormir, querendo despertar ................................................. 194

    Capítulo XVI A Revolta de Crestus....................................................................... 205

    Capítulo XVII Priscila ................................................................................................. 228

    5

    Capítulo XVIII Mare Nostrum .............................................................................. 247

    Capítulo XIX Ægyptus, Cellarius Mundi .............................................................. 272

    Capítulo XX Maximus ................................................................................................. 300

    Capítulo XXI Regresso ............................................................................................... 325

    Capítulo XXII Gália ...................................................................................................... 337

    Capítulo XXIII Lugdunum ........................................................................................ 357

    Capítulo XXIV A Caravana ....................................................................................... 385

    Capítulo XXV Desilusão............................................................................................. 403

    Capítulo XXVI Nero Imperator Romanorum .................................................... 407

    Capítulo XXVII Tu pisavas os astros distraída. . ............................................ 420

    Capítulo XXVIII Roma, Caput Mundi ................................................................... 445

    Capítulo XXIX As garras da besta ......................................................................... 460

    Capítulo XXX Os Grilhões Rompidos .................................................................. 484

    Capítulo XXXI Noite Plácida .................................................................................... 506

    Capítulo XXXII A Condição Humana ................................................................... 524

    Capítulo XXXIII Tudo o que tenho levo comigo ............................................ 553

    Capítulo XXXIV Neapolis, Caput Caeli ................................................................. 593

    Capítulo XXXV O Paraíso Invadido ...................................................................... 615

    6

    Capítulo XXXVI Reencontros ............................................................................... 625

    Capítulo XXXVII O Bom Combate ......................................................................... 666

    Capítulo XXXVIII Trevas e Luz............................................................................... 672

    Capítulo XXXIX Memento homo, quia pulvis es ............................................... 694

    Notas do Autor .............................................................................................................. 697

    7

    Capítulo I

    Jerusalém

    Crucificai-o! Crucificai-o!, gritava a cidade toda com um barulho ensurdecedor, como se outras palavras não existissem. O menino Octavius gritava também. Já não se considerava menino, do alto de seus dez anos recém-completados achava-se no direito de fazer parte da turba, ao menos enquanto seu pai não o encontrasse ali. De fato, sua estatura enganava a muitos e ninguém diria que o garoto já não era púbere. Ele não entendia o motivo da desordem, daquele redemoinho de gente que carregava a todos como uma corrente irresistível, convergindo de todas as ruas de Jerusalém para o monte que o garoto agora já vislumbrava.

    Quem ou por que deveria ser crucificado, ele ignorava, tampouco lhe interessava saber. Mais o animava participar da manifestação, achar-se em comunhão com aquelas vozes e naquele uníssono imaginar-se alguém. O fazer parte de uma multidão importava mais que a opinião que a movia. E se o grupo, aquele incontável grupo, sequer o notasse, tampouco isso contava, pois Octavius não se percebia inferior à massa. Importava a festa, a manifestação unânime do povo, que de tão intensa não poderia estar equivocada. À frente, o que tinham era um símbolo, não alguém. Um símbolo em que jogar seus rancores sem medo, pois o coro de uma tal multidão infunde uma certeza imune a qualquer remorso. Tinham à frente a figura anônima de um espetáculo.

    De repente, porém, o espetáculo adquiriu uma identidade.

    Ao pé do monte um madeiro se tornou visível, vacilando de um lado a outro lentamente. Aos poucos uma cabeleira surgiu e, à medida que galgava o

    8

    monte, todo o dorso ensanguentado do condenado pôde ser visto. Octavius titubeou nos impropérios e finalmente silenciou. Com dificuldade abriu caminho pela multidão, e em breve se encontrou a poucos côvados1 do supliciado. Seu coração já lhe batia forte, não pelo esforço que fizera, antes pela dúvida que já lhe batia às portas da moral. O sorriso cínico, contudo, a máscara que escondia o vazio por trás de seu rosto, conservou quase impecável.

    Mas mesmo deste se desfez quando, num instante, o condenado lhe arrebatou o olhar como se o acorrentasse. Octavius se envergonhou e teria interrompido sua caminhada não fosse a turba, que, em seu movimento contínuo e lento, o empurrasse de forma inexorável para o alto do monte. Seu olhar se desviou para o solo. De repente, passou a ver o condenado, de um espetáculo que era, como um homem como ele próprio se sentia, membro de uma família que choraria sua ausência, que talvez nada seria na ausência sua.

    Uma hora depois Octavius estava trêmulo de medo e sentia a cada instante que desfaleceria a seguir. Chegara a cair no chão quando ouviu as marteladas que pregaram o homem à cruz e algumas mulheres o ajudaram a se levantar. Vai para casa, menino! Não tens idade para ver tal crueldade. Mas olhando a multidão compacta atrás de si, e sentindo as náuseas que lhe aumentavam a fraqueza, Octavius não se sentiu em condições de obedecer.

    Logo que pôde, sentou-se, de costas para a cruz, e com a cabeça entre os joelhos pediu ao Altíssimo que logo se dispersassem, para que pudesse se levantar e voltar para a hospedaria. Sequer pensou em seus amigos, se o identificariam no meio da multidão, e se tivesse tido tão pequeno pensamento, no estado em que estava, seguramente não sentiria vergonha de sua frouxidão.

    Olhou por cima dos ombros para as mulheres que já o haviam esquecido e percebeu que a turba não era tão unânime quanto pensara aos pés do monte. Permeando os rostos distorcidos de feras prestes a avançar, ora

    9

    gargalhantes, ora vociferantes, uma pequena mostra de expressões tristes derramava em silêncio as suas lágrimas. Ao contrário do garoto, porém, não desviavam o olhar da cruz, como se algo nela justificasse o sofrimento de contemplá-la.

    Veio-lhe à mente o pai. Se tivesse dado ouvidos à coerência do pai não estaria agora naquela situação vergonhosa. Dias antes fora puxado pela orelha e quase arrastado para a hospedaria diante de outros garotos que rolavam de rir da cena. Ao chegar à hospedaria, a orelha tão doída que se surpreendeu que não lhe tivesse sido arrancada, pediu ao pai um falso perdão, unicamente para que o largasse. Pois na verdade desejava ter atirado a pedra que ainda empunhava na mulher que por algum pecado, cujo significado ao garoto escapava, devia morrer apedrejada.

    Mas agora, deitado e passando mal, dava-se conta de que não teria tido estômago para tanto. Se não conseguia se manter em pé diante de uma crucificação, que dizer de contemplar um corpo transformado em massa disforme por pedradas? Tampouco lhe importava, seus sintomas é que lhe interessavam e o assustavam agora. Tudo o que queria era estar de novo ao lado de seu pai, mas sentia-se tão mal que soluçava de medo de morrer a seguir.

    Algumas vezes gritou por ajuda, ou achou que o fez, visto que sua voz estava tão débil que duvidava que alguém o escutasse. Quem poderia escutar uma trombeta no meio daquela algazarra de desordeiros? Percebeu aí que o barulho provavelmente era parte de seus males, mas tapar os ouvidos mal adiantava. E

    apesar disso subitamente foi estarrecido por uma voz que, contra toda a lógica, se superpôs à multidão.

    Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem!

    Octavius sentou-se e virou-se para a cruz, incrédulo. Mas não havia dúvida. O que ouvira fora dito pelo crucificado.

    10

    O menino se levantou, apoiou-se em um rochedo e encarou a cruz com forças que imaginava não mais dominar. Sua concentração naquele espetáculo grotesco cancelou todo o resto, sua atenção foi tanta que se desconcentrou de si mesmo e não tirou mais os olhos da cruz. Muito tempo depois o homem lançou um forte grito, cujas palavras o menino não pôde distinguir.

    E então o céu começou a escurecer e um forte vento soprou do Sul, trazendo aos circunstantes grande apreensão. À sua volta, as pessoas que há pouco gritavam ofensas pediam piedade a Deus pelo seu erro. Octavius não entendia nada, exceto que a escuridão, que em poucos minutos equivaleria à mais tenebrosa das noites, parecia anunciar a todos um castigo do Todo-Poderoso. Durante três horas as trevas cobriram Jerusalém e o povo correu desnorteado pelas ruas gritando por clemência e se autoflagelando. Muitos rasgavam suas roupas e, cobrindo-se do pó que achavam nas ruas, choravam em altos brados aos céus. A escuridão era tamanha e o tumulto tão grande que poucos conseguiam seguir o caminho de suas casas. Octavius sentiu um grande pavor, e corria ora num sentido, ora em outro, com medo de cair e ser pisoteado, enquanto ao mesmo tempo se perguntava se havia refúgio possível se quem os castigava era a ira de Deus e não dos homens. E os gritos de gente de todas as partes do mundo, em todas as línguas mais estranhas que houvesse, aterrorizaram-no ainda mais, pois do seu desconhecimento e do pavor dos outros em meio à escuridão imaginou tratar-se de vozes de demônios a perseguir os pecadores.

    Mas o suplício daquela multidão, embora parecesse interminável, não durou mais que poucas horas. Como se fossem nuvens, as trevas abriram caminho para a luz e o sol irrompeu sobre toda Jerusalém. Os gritos cessaram e um silêncio contemplativo e temeroso se apoderou da cidade, entrecortado

    11

    aqui e lá por lamúrias de crianças e alertas dos anciãos, que exortavam a pedir perdão a Deus, pois em alguns momentos viria o fim. Por todos os lados semblantes sérios e consternados mostravam nas lágrimas ainda cadentes e nas roupas esfarrapadas os sinais da angústia que há pouco os assolara. Punidos, silenciosos, cabisbaixos, todos se voltavam para seus lares ou hospedarias certos de que algo mais os esperava.

    Um eclipse. Um simples eclipse!, bradou o pai quando o menino, exalando mau cheiro pelo suor que o medo lhe causara, gaguejou-lhe a história da punição divina.

    Às vezes me surpreendes, Octavius. Então não vimos juntos um eclipse anos atrás em Roma? E na época não no-lo haviam previsto os amigos de teu mestre Sêneca?

    O garoto aos poucos foi saindo de seu pavor histérico e considerando as palavras do pai. Mas a escuridão daquele dia em Roma não havia sido assim tão profunda, muito menos tão demorada. Também não lhe havia provocado medo algum, replicou, para que seu pai o fizesse entender que talvez não a escuridão, mas sim o desespero da multidão alvoroçada fora aquilo que verdadeiramente o havia assustado. Se desta vez fora mais forte e mais súbito o fenômeno, Octavius haveria que convencer a si próprio de que fora traído pelos seus sentidos. Sêneca ficaria envergonhado dele, disse seu pai, por fim, afagando-lhe a cabeça e aconselhando-o a ir se lavar. Na volta, alertou, conversariam a respeito de obediência e punição.

    Ainda trêmulo e pálido, mas cada vez mais recomposto, o menino aquiesceu baixando a cabeça. Observou que seu pai trajava vestes diferentes das que portava quando saiu da hospedaria horas antes. Pouco depois, achando esfarrapados os trajes com que o vira ao sair, sentiu-se reconfortado no olhar

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    zombeteiro de sua mãe. Enquanto examinava as roupas do seu pai, rasgadas e cheias de cinzas, percebeu que não fora o único da família a se desesperar.

    ***

    Jerusalém dormiu e acordou intranquila. Poucos comentavam os eventos da véspera e ninguém cria nos raros fanfarrões que fingiam não fazer caso. Octavius e as demais crianças da hospedaria não ousaram afastar-se muito de seus pais, mas logo perceberiam não ser necessário distanciar-se demais para encontrar o pânico. Naquela cidade abarrotada de gente pelas festividades, em que havia quatro ou cinco vezes mais estrangeiros do que habitantes, não era de surpreender que apenas poucos reconhecessem ou percebessem o que estava ocorrendo. Mas aos gritos histéricos que esporadicamente eclodiam, o clima em cada canto da cidade foi se tornando progressivamente mais inquietante. Boatos foram se espalhando e se distorcendo entre nativos e visitantes, e nos incontáveis idiomas que ensurdeciam a cidade eram expressos medo por uns e incredulidade e impaciência por outros. A poucas quadras da hospedaria chegou aos ouvidos dos garotos que um morto havia sido visto perto dali. O informante era um estrangeiro com forte sotaque pontino, e falava aos risos no meio de um pequeno grupo. Os meninos ficaram pasmos, e embora o orgulho os impelisse a disfarçar, mudaram subitamente seu caminho para voltar ao albergue.

    Que besteira, disse Octavius, oscilando a voz, em franco contraste com as bravatas de coragem que ajuntou.

    De repente, um grito muito próximo e uma clareira se abriu ao seu lado.

    Uma idosa aterrorizada apontava para um passante, sozinho no meio do espaço que se fez. O homem sorriu naturalmente para a multidão, que, não vendo

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    nenhum risco, reagrupou-se maldizendo a velha. Mortos não andam, velhota!, gritou alguém, irritado e puxando risos e ofensas. A velha mulher permaneceu estática, pálida e lacrimejando. Octavius sentiu algo inquietante no ar. Sem dúvida ele não era o único impressionado pelos acontecimentos do dia anterior, e embora sua excessiva juventude não lhe permitisse pôr em palavras, seus instintos percebiam em cada passante a explosão iminente da tensão. A poucos passos do albergue distinguiu na multidão um rosto feminino, suave, enquadrando um sorriso leve e despreocupado. Tamanha discrepância com a multidão não fugiu ao olhar atento do menino. A jovem e bela mulher vinha em sua direção e assim ele pôde fixar-se nos detalhes daquele rosto, que subitamente lhe pareceu conhecido. Uns passos a mais e já não havia mais dúvida alguma. Octavius passou a se sentir mal e a voz lhe faltou. Puxou pela túnica o garoto que lhe ia à frente distraído e fê-lo ver a moça que se aproximava. Esta, percebendo a atenção, abriu mais o sorriso e o dirigiu distintamente ao pequeno grupo. Os demais garotos começaram a gritar e fugiram. Octavius não conseguiu se mover e na nova clareira que se abriu ficou a sós com a jovem, pálido como a neve, sentindo as pernas fraquejarem. Ela se aproximou sorridente e, quando ele sentiu sua respiração, perguntou-se no íntimo por que nenhuma marca das pedradas lhe marcava o rosto. Ouviu-a dizer-lhe algumas palavras que lhe soaram indistintas, pois já desvanecia, algo sobre já o ter perdoado ou nada mais ter importância, e quando finalmente a jovem o agarrou, no vão esforço de evitar-lhe a queda, Octavius já não tinha mais consciência alguma.

    14

    Capítulo II

    Octavius

    Roma, vários anos mais tarde 2.

    Roma estava em festa. Uma festa parda até o dia precedente, contida, percebida apenas nos olhares esperançosos dos cidadãos, que aguardavam ansiosos por um césar melhor. O detestado Tibério estava morto, e o povo mal podia disfarçar o seu alívio. Poucos dias se passaram até que a guarda pretoriana impôs o nome do novo imperador, recebendo a seguir o apoio do exército e do próprio senado. A alegria finalmente foi extravasada e o povo o recebeu com vivas ensurdecedores pelas ruas da Cidade Eterna, e não poucos foram os que ousaram ofender o falecido césar do meio da multidão, alternando suas ofensas ao morto com os seus vivas entusiasmados ao detentor de todas as esperanças do império. Em festa, Roma aclamava a ascensão do jovem e enigmático imperador.

    A Octavius a euforia não contagiava. Nomeado senhor dos escravos do palácio imperial havia alguns meses, acompanhava de um balcão, com o olhar esquecido, a triunfal entrada do novo césar no pátio do palácio, onde receberia as homenagens do senado e da corte. Distraído, Octavius mal parecia ouvir os vivas do povo que ladeara o cortejo pretoriano até os portões, mas não deixou de sorrir quando estes lhes foram fechados na cara, deixando para fora os

    romanos puros, enquanto lá dentro ele, cidadão impuro, descendente de escravos, saboreava a invejável posição de um palaciano. E resisto mais do que os césares, pensava, altivo, enquanto resumia na memória a inacreditável sucessão de eventos dos últimos anos.

    15

    Seu pai morrera havia poucos meses, desgostoso dos descasos do filho com os planos que ele a duras penas articulara para garantir-lhe uma vida ainda mais fausta. Libertado do jugo da escravidão desde a infância pelo próprio imperador Otávio Augusto em agradecimento aos serviços prestados pelo avô de Octavius, Simeão crescera no palácio e soubera se aproveitar dos laços estreitos com as colônias judaicas e das facilidades que sua posição lhe outorgava. Hábil no manuseio da palavra e no jogo da vida, conquistou também a simpatia de Tibério, em cujo império soube se valer de suas relações para acumular uma considerável fortuna. Com ela, o escárnio dos romanos puros aos poucos arrefeceu e, ao final de sua vida, ofuscados pela fortuna do liberto, poucos se lembravam das origens de Simeão, de forma que a maioria transformava a inveja não em ódio, mas em bajulação, à qual o falecido não se rendia no íntimo, embora aparentasse fazê-lo no seu exterior. Afinal, que vantagem é para um palaciano colecionar inimigos? Dessa forma, acumulou amizades estratégicas, falsas em sua maioria, mas que lhe permitiam também o seu desfrute e lhe aumentavam a segurança na difícil arte do equilíbrio entre as marés do império. Raras eram as amizades de fato, e estas Simeão nutria com especial dedicação. Dentre elas, a mais rara das joias, Simeão orgulhava-se de Lucius Annæus Sêneca. Admirador sem entusiasmo da sua filosofia, admirador devoto do próprio Sêneca, Simeão era menos discípulo do que amigo do filósofo, mas obteve para seu filho o que escola alguma lhe poderia confiar, e logo se espalhou por Roma que o tutor de Octavius era aquele que rejeitara educar filhos de tantos nobres. Sabendo claramente onde pisar naquele pântano sempre nebuloso dos interesses e intrigas, Simeão montou bases sólidas para si e para seu filho. E para os poucos que ainda ousavam ofender aquele astuto senhor respondia com a indefensável profecia, que um dia a história faria verdade, e afirmava que, se já naqueles dias quase um quinto dos

    16

    cidadãos de Roma era, como ele, de descendentes de escravos, um dia viria em que romano algum seria puro. E ninguém ousava atacá-lo por este ou outros insultos, pois bem sabiam quem era o seu protetor.

    Já Octavius não herdara do pai nada além da fortuna. Da mãe, falecida anos antes, herdara a imprudência e a impassividade, que tantos desgostos trariam a seu pai. Mas herdara ainda a inocência quase parva, que o levaria a se desfazer justamente das amizades menos confiáveis, mas mais propícias, de seu pai. "Fuge amicos qui te semper laudant 3", repetiria como a própria mãe, para se convencer de que o desprezo àqueles antigos laços era o que de melhor poderia fazer. Nos meses que se passaram desde a morte do pai, rapidamente concluiu não ser nem astuto nem hábil como Simeão nas relações interpessoais. Jovem de grande estatura e força, era espontâneo demais para se manter às custas de intrigas e mentiras na corte palaciana, e por esta razão preferiu se distanciar de césar ao invés de adulá-lo, de sorte que rapidamente viu esvair-se o poder que lhe deixara o genitor, ficando ao final restrito unicamente ao comando dos escravos da cozinha e da limpeza do palácio. O

    vácuo gerado por sua pouca determinação e excesso de receio foi logo ocupado por libertos oportunistas, e por fim seria totalmente preenchido pelo astuto Félix, que se tornou o imediato de césar dentro do palácio, e para o qual a História reservava ainda muito mais. Octavius manteve-se como um ente pálido, mas não importunado entre os nobres, exatamente como desejava, pois, conhecendo seu caráter irascível, temia expor a vida por não poder sujeitá-lo.

    Seu débil autocontrole já lhe arranjara confusões demais no passado recente, e não fosse a intervenção do pai e a não obrigatoriedade dos judeus em cumprir o serviço militar, Octavius poderia ter sido condenado até mesmo à morte pela agressão a um colega pretoriano. Seu pai ficara inconsolável: a guarda pretoriana era um cargo para pouquíssimas pessoas, e conseguir colocar lá um

    17

    filho ainda adolescente e sem passagem prévia pelo exército havia sido uma demonstração de enorme prestígio junto ao imperador. Dessa forma, acreditava Simeão, a carreira do filho estaria assegurada na defesa dos césares (e nas traições aos mesmos) por toda uma próspera vida. Quem sabe um dia não teria ele mesmo o poder de um imperador? Mas Octavius logo demonstraria ao pai quão desastrada e ingênua fora aquela profecia ao provar a grande habilidade aprendida no manejo da espada na face de um desafeto. Maximus, o pretoriano que o desafiara, jurara vingança pela vergonhosa cicatriz que ostentaria até o fim de seus dias. Octavius foi expulso da guarda, mas, graças aos esforços de Sêneca e de seu pai, não só foi perdoado por césar como recebeu deste a promessa de suceder a Simeão.

    Aos dezenove anos gozava da sensação de invulnerabilidade com que a juventude engana, e com a consequente arrogância desta crença, não via ainda riscos em seu proceder. Octavius detestava viver de aparências e, criado relativamente longe dos seus semelhantes, não acreditava de fato em quase nada do que a fé de seus ancestrais lhe ensinava. Apenas por meros interesses da mocidade – entenda-se paixões – houvera mantido os contatos indispensáveis com o seu povo em Roma. Mas perdidas as esperanças de conquista da bela Priscila, aproveitou-se do luto em seu coração como desculpa ao pai para tornar suas idas à colônia ainda menos frequentes. Como também a Simeão a fé era mera aparência, e como Octavius já não tinha mais a mãe, pia e rígida, o jovem se distanciou mais e mais de seu povo original, bem como de seus cultos. Sua cidadania romana lhe permitia vislumbrar um horizonte muito mais amplo do que um hebreu radicado em Roma poderia conceber.

    Octavius se aproveitava dessa dádiva não só para contemplar um vasto leque para o futuro como também para se distanciar das incômodas raízes hebraicas, que, contudo, não cortara por completo. Ademais, embora odiasse e fosse

    18

    odiado pela maioria dos colonos judeus, havia na colônia certas pessoas nas quais o interesse de Octavius ia muito além dos intuitos financeiros. Era certamente o caso de seu tio Malaquias, do sacerdote Sofonias e alguns poucos mais. E evidentemente da meiga, bela, enfeitiçante Priscila, cuja rejeição ainda lhe doía no peito como se ocorrida na véspera.

    Que te parece este Gaius, Octavius?

    Imerso havia vários minutos naquele vaivém entre seus pensamentos e o cortejo do imperador, Octavius nem se lembrava da existência do tio, desconfortavelmente esquecido ao seu lado desde que a multidão chegara ao pé do monte Palatino.

    Gaius?, retrucou, distraído e sem vontade, enquanto o semblante de Prisca4 ainda relutava em sua mente.

    O imperador, Calígula. Acorda, sobrinho, acrescentou o tio, impaciente.

    "Ah, sim. Não se sabe ainda ao certo, tio. Aos romanos é uma dádiva, pois não creem que alguém possa ser pior que Tibério. Espera-se que com a morte dele nunca mais se repita algo como a lex de majestate e o povo possa viver em paz, sem medo de prisões sem causa ou perseguições indevidas. Mas para nós, judeus – disse Octavius em um esforço para parecer sincero – não faz grande diferença. Continuaremos, como sempre, cerceados e vigiados. Nem mais nem menos que antes. Para mim, pode mudar algo, visto que Calígula era um desafeto de Tibério. Por isso já me decidi a mudar de ares, caso qualquer instabilidade surja no palácio. As cobras que estavam quiescentes certamente acordarão com o novo césar, motivo a mais para eu me apagar um pouco."

    O tio se apoiou na balaustrada com os cotovelos e cobriu a boca com as mãos, contemplativo.

    19

    Tens razão. No fim, são todos iguais para nós. Tibério não tinha a grandeza de seu antecessor, mas não foi menos malévolo para conosco do que aquela aberração de que herdaste o nome. Octavius já esperava pela agressão do tio desde que o recebera na sala, de forma que estava preparado para não se alterar. Era a provocação de sempre, o mesmo veneno desde que Octavius ainda aprendia a falar, dissimulada no sobrinho, mas dirigida sempre ao pai, agora ausente.

    Graças àquela aberração teu pai foi libertado da escravidão. E por isso és livre, tio.

    "E por isso és cidadão romano e não chegas a ser vigiado nem perseguido como o resto de teu povo."

    Não te queixes para mim, meu tio. Não sou meu pai para que me provoques. Sabes que de romano pouco tenho além do nome. A cidadania não passa de uma formalidade que me abre muitas portas...e de que a comunidade judaica também se aproveita quando precisa de mim, ou de ti... Mas não creio que Calígula, Tibério ou Otávio Augusto de fato te preocupem tanto. Muito menos acredito que me procuraste para criticar meu nome, com o que por sinal já me estás aborrecendo tanto quanto me ofendes. Mas pelo carinho que tenho por ti vou esquecer que hoje levantaste de mau humor. Prefiro pensar que desejaste me ver apesar de todo o malabarismo a que isso te força.

    "Malabarismo! Nossos ritos de purificação são malabarismo para ti...

    como vives em um ambiente impuro, nem te preocupas em te purificar de tempos em tempos..."

    Era uma verdade. Mas Octavius não precisou se desculpar para saber que seu tio já o perdoara. Também não precisou dizer que estava envergonhado do que havia dito, uma vez que seu tio já o percebera.

    20

    Enfim! Eis por que eu vim: a comunidade recebeu uma carta de Saulo de Tarso. Lembra-te dele? O ex-discípulo de Gamaliel, que, faz dois anos, te apresentei em nossa viagem à Síria.

    Claro que sim. Tão radical em suas convicções, acho que bem por isso ele não me saiu da memória.

    Tu confundes facilmente nossa fé com ‘convicções’, Octavius. O

    olhar do tio, mais do que de reprovação, era desiludido e triste, o que não fugiu à percepção do sobrinho.

    Perdão, não me fiz compreender bem. Quis dizer que este Saulo me pareceu extremista no que pensa sobre a situação dos judeus.

    E daí? Porventura tu não te importas com o nosso povo sob o jugo romano?

    Claro que sim, não queiras insinuar que não sinto. Refiro-me à maneira como ele se coloca diante das diversas seitas de nossa religião. Suas atitudes mais nos dividem do que nos fortalecem diante de outros povos.

    E crês porventura que sejamos coadunáveis com os cristãos?

    Cristãos? De que falas? Já apareceu mais uma seita?

    Malaquias sentiu o sangue subir-lhe à cabeça e Octavius imediatamente perdeu o irritante sorriso cínico que esboçara.

    Octavius! Não se trata de uma seita, é uma completa blasfêmia à nossa fé!

    Não estamos mesmo nos entendendo, tio – disse Octavius com um sorriso agora conciliador. A posição de Saulo me parecia muito belicosa, apenas isso. Mas destes ‘cristãos’ eu nunca ouvi falar.

    "Talvez porque têm vários outros apelidos, mas nenhum de consenso.

    Embora continuem a se denominar judeus, não os aceitamos como tal, pois pregam uma aberração que os elimina de nosso meio. ‘Ebionitas’, ‘filhos da

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    Luz’, ‘galileus’, e outros nomes ainda, é como também têm sido chamados.

    Pois bem, esses tais cristãos são uma ameaça muito maior que nossas dissensões internas. Trata-se de uma perversão de nossa fé, que ameaça corromper todo o povo judeu e se alastra como uma peste por todo o Império Romano, como se se aproveitasse do conquistador para conquistar."

    E disso trata a carta de Saulo.

    "Exatamente. Escreveu-nos há mais de um ano para prevenir-nos desse flagelo. A carta só nos chegou há poucos dias, e nela ele nos comunica a sua preocupação. Diz que os cristãos se alastram pelo mundo considerando-se no dever de anunciar sua crença. Tem notícia de que já contaminaram as mais distantes colônias judaicas com suas distorções, e por isso mesmo crê que mesmo Roma já deve estar sendo infestada. Recomenda-nos completa intolerância com tais indivíduos e termina a carta admoestando-nos a seguir seu próprio exemplo. Com efeito, diz que a seguir partiria para Damasco, onde um número crescente desses fanáticos vem perturbando a ordem. Causa-me surpresa que não tinhas ainda ouvido falar desses pervertidos."

    Octavius sorriu em seu âmago, explicando a si mesmo que, se não ouvira falar no tema, era porque a ele a religião não interessava mais que em seus aspectos superficiais, o suficiente para que parecesse ser um judeu respeitável, no que por sinal sabia não estar tendo o devido êxito. Evitando todas as discussões religiosas pelo sono que lhe provocavam, como poderia saber de uma facção que acabara de surgir?

    "Então dize-me no que creem esses outros pervertidos."

    Tu brincas muito, Octavius, disse Malaquias com um suspiro de impaciência. Às vezes me fazes crer que a ti nada das coisas do alto te importam.

    Acabrunhado pela reprimenda, o jovem preferiu não se manifestar.

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    Creem que o Cristo já veio ao mundo. Como acreditam nisso, o pejorativo ‘cristãos’ parece denunciar melhor sua insanidade.

    Apesar de toda a sua jocosidade, o sobrinho foi surpreendido. Chegou mesmo a entreabrir os lábios com o seu espanto.

    E onde ele estaria, o Messias?

    Estaria morto. Já morreu.

    Graaande messias, gargalhou Octavius, graande messias, que vem e morre antes de nos libertar. E perdendo o fôlego, penou para retomar a fala.

    Então, por que Saulo teme esses malucos?, continuou entre risos. "Tio, é este Saulo que é um pervertido. Pervertido da inteligência. Por que temer a um

    ‘messias’ que já morreu?"

    Malaquias esperou até o sobrinho recobrar a compostura. Sua face sisuda facilitou a intenção.

    O problema é que eles não creem que esteja morto. Creem que tenha ressuscitado dos mortos.

    O semblante grave de seu tio demoveu Octavius de zombar.

    Mortos não ressuscitam, disse bruscamente por fim, simultâneo a um arrepio, uma cena de um segundo que tratou de dissipar, como cabe fazer aos pesadelos da infância.

    Ao contrário, sobrinho. Bem sabes que o Altíssimo já ressuscitou mortos... Mas é óbvio que neste caso isso não ocorreu.

    Concordo contigo. Pura fantasia, retomou Octavius, tomado por um medo inexplicável, como se algo indesejado lhe quisesse entrar na mente à revelia. E continuou, agora tão soturno quanto o próprio tio. "Coisa das classes mais pobres, perdidas e sem esperança, que a qualquer boato se entregam, se lhes parecer menos horrendo que a realidade em que vivem. E como boato logo morrerá, porque verão que seu messias já morreu e não está mais neste mundo.

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    Cedo ou tarde hão de percebê-lo, e espontaneamente essa seita se extinguirá, como a chama que consumiu seu óleo. Não vejo porque persegui-los, como deseja Saulo. Deixa-os convencerem-se por si próprios, que em breve cansarão. Em todo caso, se chegarem, ou se já chegaram a Roma, deveis denunciá-los aos romanos antes que nos ataquem. Não que não possamos nos defender, mas os romanos já não guardam simpatia para conosco e poderiam astutamente aproveitar arruaças dos cristãos para se voltarem contra nós."

    Quanto a ‘chegarem’ a Roma..., na verdade já chegaram, e se infiltram facilmente, desviando da estrada virtuosa muitos dos nossos. Não usam franjas nas suas túnicas, muitos não exigem que as mulheres usem véus fora da sinagoga. Comem carnes impuras... injúrias sobre injúrias!

    Octavius recordou-se de que havia anos não usava as franjas nos cantos de suas vestes, vestindo-se absolutamente como qualquer pagão.

    Involuntariamente, desviou o olhar para a própria túnica.

    Como se eu já não te houvesse reprovado tantas vezes! O que tentas esconder que eu já não conheça, Octavius?

    Malaquias não olhava para o jovem, ao contrário, olhava impaciente para a janela, como se seu pensamento não se achasse em Roma.

    Bem, em meu caso, ao menos sabes que...

    "Que não te sentirias bem em comportar-te como um judeu no palácio de césar! Ouço tais desculpas também quando te encontro nas ruas. Ou quando no inverno misturas linho e lã, Caim e Abel! Mas o que tenho a contar nem mesmo tu, helenizado ao extremo, ousarias fazer. Nem mesmo tu, em teu isolamento, haverias de provocar o que esses ensandecidos estão provocando...

    certamente te recordas de Áquila e Prisca, a jovem que ele lamentavelmente desposou... e que a duras penas cobria o rosto na própria sinagoga, que dizer então de como o expunha nas ruas..."

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    Octavius involuntariamente escancarou os olhos, e ao fixá-los no tio sentiu-se traído por sua reação, pois a ninguém na colônia era desconhecida a história de seu amor malogrado, cujas chagas o rapaz penava para dissimular.

    Novamente aquele nome soava em seus ouvidos. Três anos antes ele a conhecera e pela primeira vez seu coração palpitara verdadeiramente por alguém. Mas enquanto Octavius nada mais era que um adolescente arrogante, Priscila já completara seus dezoito anos e demonstrava muito mais sensatez do que sua idade faria supor. Sua extrema polidez permitiu a Octavius aproximar-se e nutrir a ilusão que mais tarde o atormentaria. Cegado pela inexperiência e paixão, demorou a entender que a jovem, desde que fora introduzida na sinagoga, já pertencia a Áquila, o comerciante pontino que a converteu com toda a sua família. O jovem casal se tornara um exemplo para todos na comunidade, e mesmo os mais velhos acabaram por acreditar na conversão de Priscila e admiti-la nas assembleias. Ao oposto do que originalmente temiam, a bela romana acabou se tornando uma rara fonte de divulgação do lado terno das Escrituras, da doçura das palavras do Altíssimo, como costumava dizer.

    Logo Priscila virou Prisca, demonstração do carinho dos demais pela moça, pungindo ainda mais o coração já enciumado de Octavius, que em poucos dias se desentenderia com quase toda a assembleia, e se afastaria, ferido no orgulho e no coração, para doravante desprezar seu povo e seus valores.

    Claro que me recordo, respondeu contemplativo, o que houve com eles?

    Vê-se que de fato precisas te atualizar sobre nós, meu filho... Teu rival e tua romana foram expulsos do nosso meio há um mês.

    Octavius não pôde disfarçar, seu tio lia a estupefação em cada linha de seu rosto, mas ao contrário do jovem sentia um alívio e não dor, por não ter sido o seu sobrinho a desposar Priscila.

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    Imagina que para surpresa de todos assumiram em plena sinagoga que simpatizam com esta blasfêmia! Prisca ousou se pronunciar no meio da assembleia e outras jovens, em vez de se envergonharem, atreveram-se a falar no meio do templo! Desde sabe-se lá quanto tempo já pervertiam outros – a maioria jovens, estúpidos demais para conhecerem as Escrituras! – e naquele sábado muitos desses se levantaram ingenuamente na sinagoga, querendo achar argumentos para apoiar as palavras do casal.

    Malaquias falava com os punhos fechados e juntos ao peito, como que para dominar uma dor atroz, enquanto repousava o olhar atrás do portão, onde a multidão ainda se comprimia para ver seu imperador. Subitamente o ancião se interrompeu, dado que um ensurdecedor urro de júbilo dominou todas as cercanias da colina. Abaixo deles, na entrada do palácio, Calígula montara no púlpito arrebatando vivas e gritos do povo.

    Mas, para Octavius, o momento que esperara com ansiedade agora já não valia mais nada, diminuído ao infinito pelas novas que seu tio trazia, e que, absorto, desejava ardentemente ouvir. Mas teve de aguardar ainda alguns minutos para que a algazarra cessasse, e quando finalmente Calígula iniciou seu discurso, a voz de seu tio pôde novamente fazer face aos sons de lá de fora.

    Muitos dos anciãos se levantaram por fim e suas vozes acabaram dominando a cena. Priscila e Áquila foram expulsos da comunidade e aos demais jovens mandaram que se calassem e ordenamos a seus pais que os levassem imediatamente para casa. Para minha surpresa, o próprio Sofonias tentara, antes de se tornar voto vencido, apaziguar a situação e ‘ouvir’ o que aqueles dois mentecaptos tinham a dizer. Deveriam é tê-los apedrejado, isso sim! Nosso sacerdote se torna mais e mais caduco à medida que envelhece.

    Pensar em Priscila apedrejada revoltou o estômago de Octavius. Mas como em um segundo a mente consegue desenhar uma história inteira, logo a

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    seguir fantasiou-se de herói salvando seu doce amor das garras dos carrascos, mas sendo incapaz de salvar Áquila, que já jazia morto ao seu lado.

    Ah! Se a realidade se moldasse nos sonhos, especialmente naquele lampejo cínico que por um instante inundou sua imaginação... Mas infelizmente estavam em Roma, não em Jerusalém, e as leis de Roma impediriam que Áquila tivesse o fim que seu sonho lhe dera. Uma trombeta soou agitando a multidão lá fora e acordando-o de seu brevíssimo devaneio.

    Uma pena. Tuas notícias me entristecem, tio. Espero que ao menos não venha a ocorrer derramamento de sangue.

    Oh, não, quanto a isso não te preocupes. São pacíficos. Burros como portas, mas tão pacíficos quanto nós.

    Uma razão a mais para não temê-los.

    Gostaria que tivesses razão. Espero que Saulo esteja mesmo exagerando.

    Repito, Saulo de Tarso é um radical. Um bom homem, um bom judeu, mas seu radicalismo lhe embota o raciocínio. E radicalismos não duram muito: são fugazes como um vapor, vêm e logo se vão, esquecidos pelo tempo e pela História. Em breve, de Saulo e desses cristãos – é assim que os chamas? – não se ouvirá mais falar.

    Uma enorme ovação e o ressoar de mais trombetas arrastaram os dois à realidade de Roma. Lá embaixo Calígula se despedia do povo e entrava no palácio, cercado de pretorianos. Malaquias apressou-se em se despedir para deixar o sobrinho entregar-se a seus afazeres.

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    Capítulo III

    A Banalidade do Mal5

    Calígula, cujo ódio por Tibério não conhecia fronteiras, não admitiu habitar na morada do falecido, e logo se mudou para um luxuoso palácio na colina Palatina, quase vizinho ao do antecessor. No início de seu reinado esta foi uma excentricidade bem assimilada por todos, mas após alguns meses de popularidade e excelentes relações com seus súditos Calígula passou a manifestar sintomas de uma incontrolável insanidade. Para desilusão de todos, logo se mostrou uma aberração sedenta por sangue, e breve tornou-se pública a opinião de Tibério, que, ao conhecê-lo ainda adolescente, e percebendo em Calígula um indisfarçável sadismo, teria dito ser preferível matá-lo enquanto era tempo.

    Mas Tibério não o fez, Calígula assumiu o trono e o tempo passou. No terceiro ano de seu império, o povo romano assistia estarrecido a uma incessante série de crimes que o monstro insaciável, dentre as mais inumanas das coisas, se deleitava em cometer. E se este césar mal dormia por ser invariavelmente atormentado por pesadelos, alguns acreditaram que neles se inspirava, para em seu próprio povo transformar seus tenebrosos sonhos em realidade. Octavius nunca se sentira ao mesmo tempo tão seguro e tão desconfortável em seu cargo. Em algum dia do início de seu reinado, enquanto a suposta loucura ainda não se manifestara, influenciado por Sêneca, Calígula o elogiou e designou-o seu servo perene. A partir de então Octavius sabia o quão ofensivo seria abandonar o palácio para abraçar a liberdade que tanto desejava. Quando o comportamento sádico do imperador começou a se

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    manifestar, a maioria daqueles que tinham algum interesse em desbancar Octavius desapareceu. Com um tal imperador a vida no palácio se tornava perigosa, e Octavius bem o sabia. Dia a dia as atrocidades do césar ensandecido se acumulavam, e a instabilidade de seus atos alarmava Octavius, preocupado em garantir a integridade e a vida dos escravos que comandava sem expor a si próprio ao imperador louco. Mais do que Calígula, preocupava-o a presença cada vez mais intensa dos pretorianos no palácio. Alguns deles jamais o tinham perdoado pelo que fizera, e embora outros o admirassem pela coragem, Octavius sabia que diante de um césar insano sua segurança em um palácio pleno de intrigas e desafetos era cada vez menor. Para seu alívio ele ainda tinha Sêneca, pois sabia perfeitamente que o apoio do imperador era tão frágil quanto um castelo de areia, e se movido habilmente poderia se transformar de um instante ao outro em perseguição. Mas se o filósofo se orientava pela lógica, o soberano se movia pela imprevisibilidade de sua loucura, o que cancelava quaisquer tentativas de entendimento. Era prudente, então, não se valer ostensivamente de Sêneca para não expor o próprio amigo a risco algum, mas prudente também era manter evidentes aos pretorianos aqueles laços a fim de dar aos inimigos uma ilusão de poder. Por isso tudo o jovem se tornava, dia após dia, mais e mais recluso, evitando quaisquer aparições desnecessárias nas áreas nobres do palácio e mesmo fora dele.

    O povo de Roma não agia diferente. Quando as excentricidades de Calígula saíram do ridículo para o monstruoso, a população se deu conta do que tinha no trono, mas era tarde demais para se revoltar. O poder da fera já fincara raízes e os pretorianos agiam tal qual tentáculos a levar a todos os cantos da cidade o terror que irrompia do palácio. As provas de loucura e sadismo de Calígula se amontoaram de tal forma que o pânico se estabeleceu,

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    e mesmo os mais intrépidos senadores resolveram se calar. O próprio Sêneca se viu intimidado, e o povo de Roma se viu sem ninguém.

    Quando surgiram os boatos de que o imperador desposara a própria irmã, a pequena comunidade cristã que se formava em Roma escandalizou-se ao extremo.

    Um jovem cristão, nos seus catorze ou quinze anos, franzino e coxo, ousou gritar do alto do Altar da Paz, que o Altíssimo puniria a césar Calígula com o calor do inferno. A manifestação naturalmente agradou aos romanos, que em poucos minutos reuniram-se em uma grande multidão para ouvir o rapaz. Este, inocentemente, continuou a criticar o imperador por seus atos, falando com a destreza de um experiente orador e o coração de um cordeiro.

    Nenhum espectador, porém, ousava demonstrar que, no íntimo, concordava com o jovem. Ademais, a eles não interessava o que o rapaz, que consideravam judeu, falava daquele seu Deus e daquele seu Messias, antes lhes tocavam o ouvido suas palavras contra o odiado soberano. Mas evitavam expressar apoio, cientes de que o discurso já chamara também a atenção de um quarteto de cavaleiros pretorianos ali reunidos. Estes, sendo poucos e ainda desconhecendo se a multidão mais odiava ou mais temia a Calígula, nada fizeram para calar o infeliz, e em silêncio preferiram estudar a situação.

    Um romano enorme portando a toga senatorial e de voz forte como um trovão, movido de compaixão para com o garoto, percebendo o perigo, interrompeu-o admoestando-o como se fosse um pai: Vai para casa, filho. A ti, que te importa uma questão de romanos?

    Importa a nós judeus e a vós romanos que a salvação a todos se estenda! E esta cobra que vos governa diverge dos desígnios do Criador!

    Não jogues ao chão o nome judeu, pirralho ebionita, traidor de teu povo, gritou um judeu que se juntara à multidão.

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    Sou mais judeu que tu, cego, que ignoraste a Luz quando brilhou nas nossas trevas.

    O romano da voz de trovão já estava satisfeito; a intromissão do judeu tiraria o interesse da multidão e, por conseguinte, dos pretorianos. Enquanto a dupla discutia acaloradamente suas questões internas, observou que dois dos cavaleiros já se tinham retirado desinteressados, e imaginou que os demais não tardariam em fazer o mesmo se pudesse garantir o desvio do assunto. E nesse intuito entrou jocoso para arrancar da multidão diversas gargalhadas.

    Vós, judeus, sois uns malucos. Os romanos têm vários deuses e são um só povo. Vós tendes um só deus e vos dividis em tantas seitas belicosas, que mais pareceis vários povos querendo se comer uns aos outros. Vosso deus deve ter muita paciência...

    Enquanto a multidão ria do ridículo silêncio em que os dois antagonistas mergulharam, o grandalhão foi se retirando satisfeito. Ao chegar ao extremo da praça, tomou a via principal, que nela desembocava, e viu à sua frente os dois cavaleiros que imaginara terem abandonado a cena. Traziam consigo ao menos quarenta outros soldados montados, à frente dos quais distinguiu uma figura arrogante e sombria, ostentando uma cicatriz que de alto a baixo lhe deformava a hemiface esquerda. Só então percebeu o quanto na verdade se enganara. Enquanto a patrulha passava por ele, olhou uma vez mais para trás lançando um derradeiro olhar à cena; ao longe, o garoto dos olhos brilhantes e do rosto sereno agitava os braços e gritava palavras que o estranho já não podia distinguir. Imerso em sua inocência, absorto em sua dedicação, o jovem não se dera conta de que seu destino chegara. Aos poucos o lento cortejo dos cavalos tirou a visão do ilustre observador. Por um segundo, imaginou, talvez tivesse sido mais útil se voltasse à praça. Mas ao considerar quem liderava o grupo, contemplou a inutilidade e o risco do gesto. Como se lesse

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    os pensamentos alheios, naquele instante o comandante pretoriano virou-se para trás e, percebendo que o homenzarrão trajava as indumentárias de um senador, fez-lhe, a contragosto, uma reverência que mais pareceu um insulto.

    O senador pensou em pedir-lhe contenção, chegou mesmo a pensar em pedir-lhe misericórdia para o garoto, mas, sentindo que tal ato seria um atestado da culpa e aquele uma intromissão mal recebida, virou-se confuso e se afastou, deixando para trás a mais negra das sombras de Calígula.

    Ao perceber o cerco, a multidão rapidamente começou a se dissipar, pois dos pretorianos nunca se podia prever a reação. Imperador louco, pretorianos loucos, dizia-se. E quando se percebeu que o comandante daqueles soldados era Maximus, o sanguinário, semblantes de pânico passaram a substituir as faces de prazer e revolta que até pouco imperavam. Mas alguns, querendo extrair da situação exatamente o contrário do que a maioria, piedosa com o pobre rapaz, queria, tentavam incitá-lo, com gritos anônimos, a ofender o imperador. Não fala de Calígula, judeu! Calígula é um deus! E o menino, absorto da armadilha e dos cavalos, continuou, entusiasmado. É um deus apenas nas vossas leis, que o decretam como tal! Mas o único Deus, o Altíssimo, este já existia antes de qualquer lei. E não precisou delas para ser o Deus único.

    Então não crês que o imperador possa ser um deus?

    Crês tu que Incitatus possa ser um cônsul?, respondeu o garoto, inflamado.

    Aqueles ainda alheios ao cerco que se formava irromperam em gargalhadas. Os pretorianos sorriram prazerosamente, mas continuaram apenas observando de longe, enquanto fechavam as últimas saídas da praça.

    Alguns soldados da milícia ordinária chegaram ao local, mas, prevendo as intenções da guarda de césar, retiraram seus elmos e saíram rapidamente com

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    eles sob os braços. A reação dos soldados chamou a atenção até dos mais distraídos, e rapidamente, à exceção do jovem orador, todos os demais perceberam o seu isolamento. Ninguém mais parecia interessado em provocar o rapaz, e os sádicos de poucos momentos antes agora fitavam com respeito e medo os cavaleiros que havia alguns minutos os vigiavam pelas costas. Alguns correram para as estreitas passarelas, onde ainda se podia ver gente fugindo, mas, antes que pudessem chegar a elas, os cavaleiros se posicionavam à sua frente com trotes rápidos. Da multidão não se ouviam mais palavras, apenas gritos que rivalizavam com os sons de cascos e sandálias contra o chão, e finalmente o adolescente se deu conta da gravidade da situação. Os sons dos cascos subitamente pararam, ouviam-se apenas gritos de ordem, lamúrias e súplicas enquanto o que restara da multidão se concentrou espontaneamente no centro da praça. Aos poucos os gritos cederam, ouviu-se novamente o ruído compassado e lento dos cascos, e quando finalmente estes se tornaram frenéticos os gritos voltaram, intensos, como se todos os instrumentos daquela macabra sinfonia devessem chegar ao auge no seu final. Os que tinham tido tempo de fugir e ouviam a salvo os sons daquele inferno foram contorcidos por ondas antagônicas de alívio e angústia, que agitaram seus corpos entre o horror da morte, evitada, e a vida, que por um triz não desperdiçaram.

    Os sons que ouviam agora eram de imprecações entre os soldados, que se disputavam ferrenhamente pela divisão dos despojos, como se aqueles caídos fossem de fato inimigos da pátria. Fora da praça, o medo dos sobreviventes ia muito além de seu orgulho e de seus direitos, pois eram os idos de Calígula, e naqueles tempos em que a Lex Romana não era nada além de um conceito diáfano, a lei das trevas dominara a Cidade Eterna e seus cidadãos.

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    A multidão dos fugitivos se afastou, e então, um cavalgar estrepitoso e amedrontador se seguiu, acompanhado de gritos pavorosos dos assassinos, ora louvando a guarda, ora o imperador, e sem se importar com quem lhes estivesse no caminho cavalgaram como se estivessem na pradaria e não em Roma, como se Roma fosse deles e não do povo, e como se o próprio Plutão os liderasse.

    ***

    As crianças foram as primeiras a perceber a aproximação dos romanos e correram pela colônia para advertir toda a comunidade. Quando a guarda pretoriana, acompanhada por duas decúrias ordinárias, marchou sobre a rua central, só se ouvia o ruído das cáligas e do cavalgar. A multidão dos judeus mantinha-se no mais respeitoso silêncio, observando os intrusos com o cuidado de não fitá-los diretamente. Ao final da rua encontrava-se Malaquias, em pé, esperando pelos altivos visitantes. Maximus estava montado ao lado de outro cavalo, em cujo dorso jazia um corpo inerte. Dois soldados desataram o morto e o jogaram diante de Malaquias, que com muito custo disfarçou o espanto.

    Este, judeu, foi o primeiro e o último protesto de um teu contra a divindade de césar.

    Malaquias, trêmulo pela confusão, logo reconheceu no corpo que jazia a seus pés o rosto de Aron, o jovem manco que pouco antes desafiara Calígula.

    Levantou seus olhos a Maximus e tentou disfarçar na voz os tons de repulsa e raiva que sentia, enquanto um casal apressava-se desesperado de encontro ao corpo.

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    Ouve, ó pretoriano, este jovem não era judeu, ou ao menos não o era mais. Havia algum tempo abandonara nossos ensinamentos e já não nos ouvia.

    "Se assim é, porque tantos nesta colônia choram agora sobre o morto?

    E quem são estes que abraçam o seu corpo já sem vida, que não seus próprios pais?"

    Malaquias trocou um longo olhar com o casal em prantos antes de responder.

    Ele foi um de nós, mas há meses deixou-se seduzir por uma crença perversa, cujo destino é precisamente o que recebeu. E se ainda habitava conosco, isto se devia ao amor de seus pais e às nossas esperanças de reconduzi-lo ao caminho que nos glorifica e que não desagrada a césar. Poupa, pois, estes teus servos já sofridos de uma nova humilhação.

    Vossas dissensões, judeu, não nos interessam. Vossa crença está sendo nociva ao imperador.

    Mas, senhor, nada temos contra o imperador e em tempo algum o atraiçoamos.

    Este rapaz negou a divindade dele...

    Malaquias percebeu a armadilha e rapidamente tentou dissimular para fugir da pergunta-chave.

    Este rapaz, repito, não é um dos nossos.

    E se fosse, teria aceitado que Calígula é deus?

    O cerco se fechava. Malaquias pedia ao Altíssimo luz para todas as respostas.

    Não o sei, senhor, respondeu, esperando em seu íntimo que as torturantes perguntas parassem ali. Mas o pretoriano queria continuar a jogar.

    E tu?

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    Eu...?

    Tu crês que Calígula é deus?

    Bem sabes, romano, que nos é permitido, ao invés de cultuar teu imperador, oferecer por ele um sacrifício diário em nossos templos...

    Não foi o que te perguntei, judeu.

    O ancião sabia que sua jornada neste mundo chegara ao fim. O

    Altíssimo não ouviria de seus lábios uma blasfêmia, e embora parecesse que Malaquias hesitasse em busca de uma resposta, ele se calara na verdade para fazer a derradeira prece pelos que liderara. Recomendou ao Senhor aqueles que deixava, na certeza de reencontrá-los na vida futura e inacabável, e então tirou seu olhar do chão e o dirigiu, acompanhado por um tênue e sereno sorriso, a Maximus.

    Então, judeu? Responde.

    Malaquias não sentia medo algum. E nada em sua reação poderia dar aos romanos qualquer razão para escárnio. Olhou para Maximus com feições calmas e limpas, sem mostrar nem ódio nem revolta. Apenas decência. E como um exemplo a fortificar seu povo, deu a resposta pedida sem vacilar.

    Não, centurião. Só há um Deus, que está tão acima de nós, de vós e de Calígula quanto os céus estão acima da terra.

    Preparaste tua execução. Servirás de exemplo ao teu povo.

    Que o Deus altíssimo confirme tuas palavras. Age, romano, respondeu o ancião, antes que a espada de Maximus lhe tolhesse a vida.

    A hombridade de Malaquias e o silêncio sereno do povo que cercava o seu corpo já inerte no chão tiraram dos pretorianos qualquer prazer que esperavam encontrar. Decepcionados pela diversão malograda, voltaram-se carrancudos para o portal da entrada e retiraram-se. Atrás deles cumpria-se o último desejo do líder morto, pois no seu ato a multidão encontrou a vontade irresistível de imitá-lo quando seu tempo chegasse, e preservar sua fé acima de qualquer opressão. Coesa e forte, a comunidade, entristecida, cercou os caídos.

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    Capítulo IV

    E avanti a lui, tremava tutta Roma6

    Mesmo antes do seu ingresso na guarda pretoriana, Maximus já mostrava os traços inconfundíveis da personalidade sombria e sádica que o caracterizariam por toda a vida. Como soldado, porém, era brilhante, bravo, altivo. Nunca conhecera, enquanto na milícia ordinária, adversário algum à sua altura. Após sete anos como soldado, foi recomendado aos pretorianos pelo seu centurião, que mais o detestava do que admirava, e que com tal ato, sob a pretensa égide de agradar aos pretorianos, na verdade se livrava de um fardo.

    Nos anos seguintes, na nata da milícia romana, Maximus não parou de se destacar, sobressaindo-se menos por sua intrepidez que por sua astúcia e crueldade. Quando Calígula ascendeu ao trono, tais defeitos foram elevados ao patamar de virtudes tão logo chegou aos ouvidos do imperador a existência daquele insano entre suas tropas. Para escândalo dos demais, fez de Maximus um centurião, não se importando que o soldado mal tivesse completado dez anos de carreira. A promoção não arrefeceu o apetite por sangue do jovem soldado. Antes, subiu-lhe à cabeça e serviu-lhe como um estímulo a mais para seguir como um arauto de dores e sofrimentos aos que se interpunham ao seu caminho. Tendo mais poder, ampliou a dimensão de suas covardias e logo seu nome passou a ser falado com o mesmo temor que o do próprio Calígula. Nada lhe faltava, e enquanto vivesse o imperador sabia poder dar vazão à sua desmesurada ambição, na certeza de que um dia se tornaria tribuno, quiçá mesmo prefeito da guarda. Calígula podia tudo, e se Maximus não era proveniente das castas reais, se continuasse a garantir a estima do imperador, sabia que aquele inconveniente não lhe seria obstáculo. Adoções entre os

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    césares eram comuns; e que outra criatura poderia ser melhor filho para Calígula do que ele, verdadeiro espelho do imperador? Se Incitatus fora tão longe, pensava sarcasticamente, o que o impediria de ir muito além?

    Em seus devaneios de grandeza, apenas sua cicatriz lhe trazia alguma pequenez. O nome de Octavius o fazia entrar em um frenesi de ódio, e quaisquer lembranças mais que àquele nome se associassem faziam-no sofrer sempre mais e mais. Causava-lhe revolta que seu inimigo lhe fosse inalcançável. Octavius era mestre de escravos; Maximus, centurião pretoriano, dileto de Calígula. Por aquele ponto de vista poderia dizer que seu inimigo estava em suas mãos, mas sabia não ser verdade. Pois no próprio dia em que seus atos sórdidos o conduziram para ser apresentado ao imperador a pergunta mais marcante fora justamente a origem daquela tão horrenda cicatriz.

    Maximus tremia de raiva ao lembrar das gargalhadas do imperador e de toda a corte. Gargalhadas que se intensificaram ao saberem que o autor da humilhante façanha era agora um reles mestre de escravos, que vivia no próprio palácio imperial. Então estou de fato muito bem protegido!, gritou Calígula, para deleite de seus convivas, enquanto Maximus fervia por dentro e se obrigava a um humilhante sorriso em meio ao rubor e à fúria. Pensou naquele mesmo instante em pedir a Calígula a graça de lhe propiciar um novo duelo, mas um fiapo de razão elevou seu medo para além da vergonha e o impediu de fazer a proposta. E quando pensava na questão e na maldade de Calígula, que esporadicamente escarnecia com perguntas sobre o mestre de escravos, espantava-se que entre as tantas loucuras do imperador nunca lhe tivesse passado pela cabeça ordenar por si mesmo o temido encontro. Por isso tudo sentia que de certa forma Octavius era também protegido, o que lhe reforçava a certeza de que, se o mestre de escravos aparecesse morto por emboscada, o imperador não aprovaria o fato e imputaria o crime imediatamente a Maximus.

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    Não, para Octavius Maximus esperava algo mais. O horizonte que vislumbrava para si era muito mais extenso, e um dia, tinha certeza, teria a oportunidade de se vingar. Ademais, Octavius não era nem de longe sua prioridade, pois sabia estar correndo um risco verdadeiro e constante nas pessoas dos demais centuriões e dos tribunos pretorianos. Eles sim lhe eram a grande ameaça, pois, ao contrário de Octavius, podiam e queriam atacar.

    Sentindo que Maximus logo lhes escaparia ao controle, e quiçá ameaçaria a própria hierarquia, seus pares e superiores secretamente passaram a conspirar contra o centurião. Mesmo o envenenamento não estava fora de seus planos, mas temiam Calígula. Por tal razão a preferência era por um deslize do comandado, uma falha clamorosa que não permitisse punição menor que a prisão e o rebaixamento. Quem sabe a própria expulsão, ou, de preferência, a morte.

    Demos-lhe a corda e ele mesmo se enforcará, resumiu o tribuno Cássio Quereia.

    ***

    Não demorou mais do que alguns meses e o tribuno comprovou quão certo estava o seu raciocínio: veio, então, o massacre de cidadãos romanos nas imediações do Ara Pacis, seguido pelo assassinato a sangue frio de um líder judeu. Nas horas seguintes Roma entrou em polvorosa, como se de um segundo ao outro a Capital do Mundo convulsionasse. A guarda pretoriana assassinara, sem provocação, dezenas de compatriotas desarmados e inofensivos. Portas e janelas iam se fechando à medida que a notícia da matança se expandia, as crianças eram chamadas para dentro das casas e mesmo as casas de comércio suspendiam seus serviços. As ruas ficaram vazias, e algumas horas após a

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    carnificina Roma parecia uma cidade fantasma, com seus cidadãos retirados à intimidade dos lares, perguntando-se onde seria o ataque seguinte.

    Ao retornar ao quartel, Maximus e todos os seus comandados receberam ordem de prisão. Trancafiado, vociferava como um possesso, e do interior do cárcere viu alguns centuriões e seu tribuno partirem para o palácio imperial. Calígula tinha solicitado informações mais precisas sobre os distúrbios e o silêncio que se seguiu na cidade.

    Ave, césar!

    As palavras do comandante da guarda, gritadas a plenos pulmões, ecoaram pela suntuosa sala do trono acompanhadas do barulho surdo de suas cáligas. Calígula, vários côvados à sua frente, os pés sobre um tigre acorrentado ao trono, fitou

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