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Girassóis, Ipês E Junquilhos Amarelos
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Girassóis, Ipês E Junquilhos Amarelos
E-book448 páginas6 horas

Girassóis, Ipês E Junquilhos Amarelos

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Sobre este e-book

A trajetória de vida de Cesar Astu Ninan que sucumbiu à loucura na busca pela ressignificação da própria vida, criou uma realidade alternativa e atravessou corajosamente o véu entre dois mundos. Acessou a vida de uma civilização de homens pássaros que existiu nas alturas da Cordilheira dos Andes num passado muito distante, anterior a existência dos seres humanos. Seguido por Maahoo, o puma e Loop, a raposa, Cesar segue as trilhas até os mais altos planaltos das montanhas andinas e enfrenta corajosamente suas questões existenciais para, com essa compreensão, entender melhor os motivos e as opções da vida.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de fev. de 2021
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    Girassóis, Ipês E Junquilhos Amarelos - Clarissa Lagarrigue

    Capítulo 1  ...e eram asas enormes!

    A chegada da morte assombrou Cesar Astu Ninan com o fantasma de si mesmo em um passado muito distante, quando ele soube que ficaria louco.

    Era o outono dos seus cem anos e Cesar se convencera de que a morte o havia esquecido. Resumia seus dias aos passeios em clima ameno e perfumado pelas flores da mimosa, sob o sol filtrado pelas folhas das árvores se revestindo de ferrugem e ocre.

    Mas, finalmente a morte chegou e Cesar reviveu, com requintes de detalhes, o momento há trinta anos quando um inesperado farfalhar de asas agitadas num voo misterioso provocou seu poder clarividente e ele soube que a descida da enorme escadaria de pedra que se lhe impunha logo à frente, passo a passo, degrau a degrau, marcaria o perder-se da sua consciência e da sua alma para a loucura em um ritmo idêntico ao do seu corpo na descida. Até que ao descer o último degrau ele estaria completa e irremediavelmente louco.

    As lembranças o envolveram como a mortalha do seu fantasma triste.

    Era o meio da tarde e Cesar fora levado, como todos os dias, até o alto da colina, atado à sua cadeira de rodas para ser deixado num local de descanso de onde a vista do mar era especialmente bela. Dormitava sonhos desfeitos como trapos esfiapados produzidos pela claudicante cadeira de rodas sobre as pedrinhas soltas do caminho.

    E foi então que um estalido metálico, inaudível, senão no milionésimo de segundo em que se imobilizou o alvoroço da vida despertou-o, anunciando o romper-se da trava da cadeira de rodas que começou uma aceleração incontrolável colina abaixo. E Cesar mergulhou nas lembranças do momento exato no passado em que se perdeu na loucura, ao mesmo tempo em que compreendeu que estaria morto antes mesmo de chegar ao fim do caminho e despencar, os cento e setenta metros do precipício, até as águas azuis e geladas do Egeu.

    Ele fez um murmúrio que pareceu aos que o acompanhavam e que ficaram imobilizados, estarrecidos pela extravagância com que ele se retirava da vida, uma tímida tentativa de pedido de socorro, mas que na verdade foi apenas um sussurro de profundo espanto pelo assombro de julgar a morte tão espetacular quanto tardia e desejada.

    E assim Cesar viveu seus dois momentos supremos, simultâneos, plenos de saberes sobre a loucura e sobre a morte com o chacoalhar do seu velho corpo preso à corrida alucinada da cadeira de rodas em direção ao abismo. Resgatado do tormento que havia sido sua consciente rendição à loucura e convencido de que tudo o que valia a pena ser lembrado da sua longa vida, houvera tão somente entre estes dois momentos.

    E julgou a morte infinitamente mais aceitável do que a loucura.

    Revoltara-se.

    O desvario da loucura que o acometera naquele outono dos seus setenta anos, em que ele almejara a consequente libertação total dos sentidos, deveria ter acontecido já nos primeiros passos a descerem os degraus da enorme escadaria de pedra como parte do acordo subconsciente e secreto para desapegar-se do peso da sua sanidade e bom senso.

    Quisera libertar-se das amarras das convenções sociais, quisera o direito de estar além do certo e do errado, oportuno e inoportuno, lógico e ilógico. Quisera esquecer-se do que se esperava dele. Quisera o direito de se embriagar no ser sem limites.

    E alguém completamente liberto como ele quisera vir a ser deveria estar acima e absolutamente inalcançável aos raciocínios comuns, rasteiros e reles ou aos argumentos e considerações minimamente convencionais. 

    Acreditou que iria mergulhar de imediato na incoerência dos pensamentos e desfrutar da liberdade de uma mente sem compromissos que se entregara docilmente às imagens tresloucadas, absurdas e divertidamente coloridas. Mas a consciência da loucura enganou-o e a prova era aquele debate íntimo já tão conhecido. A sequência de ideias irritantemente coerentes e normais que insistiram em importuná-lo.

    Nada lhe foi poupado. Ao descer cada degrau sentiu o romper-se de uma a uma as amarras que mantinham a fragilidade da sua condição humana e sem forças para incorporar a justa revolta, continuou descendo.

    Ele soube, percebeu e perseguiu o encadeamento impecável dos argumentos a favor e contra o seu desejo de libertação, que àquela altura da descida já deveriam estar subjugados ao absurdo e a completa irresponsabilidade.

    Talvez a suprema leveza da inconsequência que deveria ser o estado natural da loucura pudesse salvá-lo, mas teria sido imprescindível que se tivesse instalado de imediato, já, nos próximos segundos, para ele ter sido poupado de reconhecer o engano e a revolta justificar-se como uma atitude plenamente compreensível em uma consciência perfeitamente lúcida. Mas inaceitável naquela posição em que ele se encontrara, há poucos, pouquíssimos passos para o último degrau.

    Então?  De que adiantaria estar completamente louco sabendo-se louco?

    Convencera-se da vantagem da barganha, sua sanidade pelo libertar-se das amarras e limitações impostas pela, mortalmente chata, sociedade que o havia enganado, roubando-o das vastas estepes e planícies escarpadas onde ele poderia voar durante horas e eras se não o houvessem sequestrado e arrancado suas asas.

    ... e eram asas enormes!

    Ainda podia senti-las. Mesmo após todos aqueles anos sem elas, preso a terra. Tal como acontecia aos amputados de vulgares membros humanos que continuavam com a sensação das partes arrancadas.  Sim...! Ele Podia senti-las. Seu peso, sua maciez, o leve farfalhar que faziam ao chocar-se contra o vento quando ele as abria em toda sua gloriosa enormidade ao se preparar para a experiência sublime do voo. 

    Lembrou-se da própria figura. De como deveria parecer infeliz em toda sua altura magrela, com a penugem eternamente desalinhada na cabeça e com o fator principal a lhe arruinar a aparência, ...Sem Asas...

    Deplorável!

    Ele que adorava resumir ideias e sentimentos em apenas uma palavra, só tinha a dizer isso,...deplorável!

    Chegou ao último degrau e se imobilizou uma segunda vez agarrando-se àquele momento ínfimo como a um milésimo de segundo da salvação improvável, pois mesmo no instante final, decisivo e fugaz, um resquício de inteligência e raciocínio lógico lutou por sua integridade. 

    Olhou para a bela jovem que o acompanhava. Reconheceu-a, não como a uma igual, porque estava claro que ela era e sempre fora totalmente humana, jamais tivera asas, nem mesmo asas pequeninas. Mas olhou-a como a alguém em quem alguma vez havia confiado.

    Tentou falar, não conseguiu.

    Isabeau, por sua vez, sentindo a parada brusca e a insistência do olhar do tio avô imobilizou-se também e lhe retribuiu o olhar. Sem jamais conseguir entender o que realmente estava acontecendo, deu-se conta, no entanto, que estava assistindo a definitiva transformação de Cesar. Reconheceu toda sua profunda agonia e sentiu-se gelar.

    Como em uma filmagem em câmera lenta, Isabeau viu a expressão dos olhos negros, sempre meiga e acolhedora, apagar-se para em seu lugar se instalar o brilho ofuscante da loucura.

    Então Cesar desviou os olhos dos olhos dela e se movimentou para o próximo passo, para descer, finalmente, o último degrau.

    Capítulo2                  Isabeau

    Para Isabeau que haveria de recordar por muitos anos o momento em que vira a loucura se apossar da consciência do seu tio avô Cesar Astu Ninan, aquele foi um instante de definição de quem ela seria.

    Deparou-se face a face com a loucura na sua forma mais absoluta. Viu-a na luz sinistra que se desprendeu dos olhos que ela antes percebia meigos e reconheceu-a na prostração implacável que se abateu sobre Cesar.

    Percebeu que Cesar foi atiradonuma inconsciência tão profunda e inalcançável que os médicos diagnosticaram um coma severíssimo com apenas olhá-lo, estarrecidos pela máscara da morte que não era morte, mas um estado infinitamente mais cruel por significar a fuga voluntária aos desígnios da vida.

    Nos primeiros instantes aterradores, Isabeau teria sucumbido ao desespero e às lágrimas, mas foi salva de se perder pelas necessidades urgentes que contavam apenas com ela para serem atendidas. Via o corpo desfalecido de César, tão completamente vulnerável e abandonado pela consciência que ela sempre reconhecera vibrantemente lúcida e se superou exigindo de si mesma capacidade de controle.

    Percebeu-se completamente alerta, ciente de todo e qualquer movimento, tão atenta que quase conseguia adivinhar o que aconteceria na sequência inevitável dos diminutos milésimos dos segundos seguintes e seguintes e seguintes, no encadeamento sem fim que só teria termo quando ela assim o determinasse.

    Era ela também, como César, uma consciência fora do corpo, mas ao contrário do seu tio avô, Isabeau estava consciente da própria consciência. Observando-se, definindo-se e dominando-se, a si e a sucessão das providências que precisava tomar.

    Assumiu as decisões como se estivesse apartada dos acontecimentos, assistindo a si mesma, conseguindo uma lucidez extraordinária e mantendo uma calma muito necessária.

    Ao comandar as ações do pelotão de seguranças que os acompanhavam a Cesar e a ela própria, e que se imobilizou naquele instante de perplexidade, ao responder as inúmeras perguntas dos paramédicos que corriam com o corpo desfalecido de Cesar para a ambulância, ao resolver toda a burocracia do internamento e principalmente saber o que dizer ou não dizer para a legião de repórteres e fãs que se materializaram como num passe de mágica, Isabeau assumiu uma definitiva transformação de ser.

    Ao enfrentar amultidão desde o caminho de curvas e desníveis até os infindáveis labirintos dos corredores do hospital, Isabeau assumiu uma força que haveria de acompanhá-la dali em diante até o final de seus dias. Com César Astu Ninan era muito diferente.

    Ele perdera-se da consciência.   

    Nesta época do seu desvario, Cesar era um homem muito famoso. Fato, como tantos outros relacionados a ele, inexplicável.

    É preciso reconhecer que nunca houve uma razão legítima para a imensa notoriedade que cercava Cesar. Para a fama que o envolvia e afligia. Desde sempre apontado e reconhecido como um gênio, Cesar se desviou muito cedo do que se esperava dele.

    Inventor, músico, escritor, cientista e pensador. Tudo isso se dizia e se atribuía a Cesar Astu Ninan. Mas uma análise sincera sobre a qualidade de sua obra revelou uma verdade assombrosa.

    A verdade é que nunca houve nenhum grande invento ou criação e nem mesmo nenhuma proposição inédita ou revolucionaria para avalizar a suposta genialidade como inventor, apesar do inegável brilhantismo da inteligência que se impunha a quantos o conhecessem.

    Foi forçoso reconhecer que Cesar nunca inventara nada verdadeiramente extraordinário, sequer importante ou prático, apenas quinquilharias e ideias excêntricas, com alguma originalidade e até alguma graça, mas sem nenhum proveito importante para si próprio ou para seus semelhantes.

    E as pretensas descobertas científicas que por algum tempo chegaram a merecer a atenção de renomados cientistas, temerosos de ignorarem alguma grande descoberta, se revelaram, ao final, de pouca ou nenhuma relevância. E o mesmo com todos os demais interesses da sua personalidade inquieta.

    Foi um instrumentista realmente extraordinário, mas nunca se tornou o grande compositor que se esperou e que se anunciou ao mundo que ele seria desde a sua mais tenra idade, quando foi declarado gênio e um prodígio.

    Após mais de uma década de tentativas para sublimar a música que trazia aprisionada em seu âmago, incapaz de materializar em notas e sequências melodiosas toda sua beleza indescritível, César se conformou à negação cruel do seu próprio espírito traduzida pela incapacidade da criação.

    Frustrado, ainda não completara dezoito anos quando fechou o piano, guardou o violino na caixa e abandonou a música.

    Como escritor o tempo provou que fora apenas aceitável.

    Os seus livros de contos ou histórias recebidos com alarde e festejados pela esmagadora maioria dos críticos a época de suas publicações como verdadeiras obras primas, apresentavam argumentos de fina ironia, feitos para diversão inocente e leve entretenimento, mas que se revelaram pouco significativos quando analisados sob a expectativa de ideias inovadoras, revolucionárias ou vanguardistas ou ao menos como análises aprofundadas do assunto tratado.

    O fato é que na totalidade da obra de Cesar pela vida, o que se encontrava eram as mesmas buscas incessantes de qualquer um para significar a vida e houve até quem o acusasse de um estilo perigosamente superficial.

    De maneira que acabou por se impor a conclusão de que o fato verdadeiramente surpreendente sobre Cesar foi ter sido ele, pela maior parte de sua longa vida, um personagem revestido por misteriosa aura de interesse e persistente especulação a ocupar o centro das atenções do mundo.

    Aqueles que lhe eram íntimos e lhe tinham amor se espantaram quando, passados anos do seu desaparecimento nas águas profundas do Mar Egeu, se flagraram pensando nele com a mesma leveza com que se pensa num personagem favorito de alguma história extraordinária para os momentos de lazer.

    Era como se aquele espírito livre e fluido escapasse a vida real através da sua maneira de ser inesperada e em muitos aspectos inacreditável.

    Era imensamente rico. Mas sua fortuna incalculável era muito mais devida aos méritos ou deméritos da família já praticamente toda ela extinta, do que aos seus próprios feitos, desfeitos ou malfeitos.

    Um homem perseguido por seus delírios e pelos dos seus semelhantes que não se cansavam de escutar e recontar as histórias das suas esquisitices. Uma fonte inesgotável de atenção e notícia.

    Sempre mencionado e lembrado até a exaustão, estando ou não, sua figura excêntrica, relacionada aos assuntos das conversas atiradas fora ou aos encontros casuais ou marcados para os finais das tardes e das noites que invadiam as madrugadas. Sob este ponto de vista Cesar Astu Ninan foi um autêntico fenômeno.

    Após sua morte, alguns filósofos seus contemporâneos, convenceram-se que tal fama se devia muito mais às carências de sucessivas gerações sedentas por mitos e heróis do que aos atributos reais da personalidade que tinham como alvo.

    Mas ao tempo da nossa história essa conclusão estava longe de se formar.

    Por isso não foi surpresa quando a notícia do seu colapso inundou os noticiários, alimentou os tabloides e estimulou as especulações sobre o que teria provocado um coma tão severo fazendo surgirem apostas sobre o tempo em que Cesar continuaria mergulhado no mais profundo de si mesmo.

    E Isabeau, que o acompanhava, assumiu a responsabilidade dos cuidados para com César Astu Ninan com a seriedade e a completude de alguém mais decidida e forte do que ela se reconhecia até aquele momento.

    Naquele triste dia do colapso de Cesar, muito mais tarde após a burocracia do internamento e a entrevista com uma infinidade de médicos especialistas, Isabeau estava instalada em um hotel exatamente em frente ao hospital onde Cesar Astu Ninan era mantido em isolamento e constante observação.

    E finalmente pode pensar em outro velho senhor.

    Consultou o relógio para se situar no tempo de Terra Alta, sua cidade natal. Foi capaz de imaginar a movimentação que deveria estar acontecendo no casarão familiar com os preparativos para a costumeira cerimônia de degustação de charutos e para o jantar de todos os sábados, oferecido por seu avô, Victor Gatopardo, à Confraria do Tabaco.

    Anos após aquele dia, em suas memórias, Isabeau reconheceria ter vivido os minutos infindáveis em que pensava na melhor maneira de contar para o seu avô sobre o ocorrido com César, numa condição emocional muito diferente do seu estado normal.

    Foi só quando se isolou do mundo num quarto impessoal, que Isabeau enfrentou o medo da crua incerteza. Incorporada com a preocupação atordoante pelo que havia acontecido com César sem entender o que era aquele retirar-se espontâneo da vida, Isabeau se sentiu subitamente esvaziada de força, murcha por dentro, pobre de energia.

    Ela foi atirada num redemoinho de emoções confusas e pensamentos sorrateiros envolveram-na atraindo sentimentos que até então, aos vinte e nove anos, ela acreditava totalmente superados, mas que se renovaram idênticos aos que conhecera anos atrás e que dominaram toda sua infância.

    Uma infância mergulhada em insegurança e solidão aterradoras.

    Por todo aquele tempo da meninice que deveria ser uma coleção de experiências felizes para qualquer criança, Isabeau fora profundamente infeliz por anos que lhe pareceram séculos.

    Fora deixada esquecida e perdida entre os salões e os corredores do casarão da família em infindáveis dias e horas de absoluta solidão, envolvidos por um medo difuso sem forma e sem nome, até finalmente ser resgatada para uma vida totalmente diferente da vida de qualquer outra menina.

    Havia recém completado quatro anos quando o destino a transformou na única herdeira das duas mais famosas e importantes famílias da tradição terraaltina e a mergulhou no completo esquecimento que se perpetuou pelos sete anos seguintes.

    Num final de outono, nos primeiros dias cheios com o ar gelado das geadas do inverno que chegava rapidamente, um misterioso surto de gripe espanhola assolou o extenso primeiro planalto do vasto continente que abrigava a cidade de Terra Alta.

    A população sofreu com uma das mais virulentas variações da doença.

    Os índices de contaminação e mortes foram alarmantes. Em poucos dias a maior parte dos moradores da pequena cidade e de todos os vilarejos dos arredores caiu doente.

    Nas famílias Ninan e Gatopardo, por alguma razão tão misteriosa quanto o próprio aparecimento do mal, a violência da gripe foi muito maior do que em qualquer outro núcleo familiar.

    Em pouco menos de dois meses seis pessoas das duas famílias adoeceram e morreram sem que qualquer dos esforços dos médicos, dos remédios ou das orações pudessem ajudá-las.

    Houve até quem duvidasse que os Ninan e os Gatopardo estivessem contaminados com a mesma doença que se disseminara pelo resto da população.

    A desconfiança era de alguma doença muito mais perigosa e fatal, mas nunca definitivamente reconhecida ou diagnosticada.

    Circunstância que fortaleceu as crenças num mistério sinistro e ganhou fama como uma maldição tão antiga quanto à história da fundação da própria cidade.

    Uma história entrelaçada às origens das duas famílias, que se sabia ter surgido e prosperado num lugar em que se tocaiavam caravanas de mercadores perdidas entre as perigosas trilhas serpenteantes entre árvores e camufladas pelas armadilhas das brumas.

    Os rumores se transformaram em certeza e preencheram os relatórios oficiais do lugar, quando passado o surto mais violento da gripe,

    constatou-se que entre os membros Ninan e Gatopardo se contavam o maior número de mortes entre consanguíneos.

    Naqueles dias de pesadelo, Cesar Ninan e Victor Gatopardo compartilharam as perdas, o sofrimento e um desespero tão profundos que o antigo e amplamente reconhecido relacionamento de amizade estreita entre eles adquiriu contornos de uma relação simbiótica permeada e envolvida pelos laços da tragédia incompreensível.

    Tantas vezes foram os nomes Astu Ninan e Gatopardo citados juntos e sempre se referindo aos mesmos acontecimentos que acabaram por se confundirem e passaram a ser atribuídos à designação de uma única e mesma linhagem.

    Principalmente entre os mais jovens e menos versados sobre as origens e descendências dos primeiros habitantes da vasta extensão de terras férteis e rios caudalosos que fez nascer a cidade de Terra Alta.

    Os dois homens, Cesar Astu Ninan e Victor Gatopardo passaram a ser reconhecidos como irmãos ao invés do seu verdadeiro grau de parentesco de apenas cunhados.

    E quase como uma premonição à tragédia que se abateria sobre eles numa espécie de confirmação macabra dos laços que os uniam para o bem e para o mal, a primeira morte oficialmente atribuída à epidemia que devastava a cidade foi a da mulher de Victor, que era também a irmã de Cesar Ninan.

    A sucessão das centenas de imagens que reproduziram ambos os homens, ombreados e curvados pela dor e pelo inconformismo diante da perda da mesma mulher, foram veiculadas como manchetes de jornais e noticiários das televisões pelo continente à fora e ganharam notoriedade no mundo.

    Imagens replicadas infinitamente e sustentadas pela figura de César cuja fama, àquela época, há muito já ultrapassava fronteiras.

    Por todo o vasto planalto onde se situava a cidade de Terra Alta e sua população assustada, um contingente extra de médicos, enfermeiros e cientistas, se organizou como um exército para combater a doença e  ajudar o povo a resignar-se àquela tragédia que se alastrava  com a rapidez dos suspiros de medo e desespero.

    No entanto nada poderia ter preparado a Victor e a Cesar para as mortes dos seus familiares que começaram a se suceder dramaticamente e com curtos intervalos entre uma e outra.

    Apenas três dias após o enterro da mulher de Victor, morreram o casal de velhos Ninan sogros de Victor e pais de Cesar Astu Ninan.

    No mesmo dia e com diferença de poucas horas entre um e outro. Seguiram-se as mortes dos filhos de Victor, primeiro sua filha e mãe da pequena Isabeau e poucos dias depois seu primogênito com apenas vinte e um anos. E finalmente foi a vez do irmão mais velho de Cesar.

    Essa sequência aterradora de mortes, que permaneceram envoltas em mistério no imaginário da população, foi o acontecimento que transformou a pequena Isabeau numa triste órfã abandonada entre as velhas paredes do casarão Gatopardo.

    A última representante das duas famílias e a depositária das heranças genéticas, físicas e materiais dos dois senhores.

    Neta de Victor Gatopardo e sobrinha neta de César Astu Ninan, Isabeau foi envolvida e esquecida na dor dos dois homens decididos a abandonar suas origens e suas raízes como uma marca de revolta contra o destino impiedoso que lhes roubou as famílias, perdendo-se em viagens infindáveis para todos os cantos do planeta, cada qual mais longa e distante e encarada com idênticas atitudes desiludidas.

    Durante os sete anos seguintes à devastação da epidemia em Terra Alta, Isabeau viveu sob a tutela legal de Victor como uma sombra mal percebida e ainda menos considerada. Era sua dependente legal e tão somente, mas Victor a esqueceu e separou-se completamente dela.

    Convencido que a distância física conseguiria aliviá-lo da sua angustiosa frustração pelo que ele julgava ser o fracasso da sua vida familiar e da raiva profunda que dominava seu espírito, Victor usou a considerável influência do nome de família para conseguir sua nomeação e se transformar no Embaixador Gatopardo, para representar o país nos mais distantes destinos do planeta.

    Cesar Astu Ninan não hesitou em segui-lo.

    Amparado por sua enorme fortuna acompanhou o cunhado e amigo em cada viagem, carregando consigo de cada vez o que quer que fosse seu interesse no momento. Seus trabalhos pretensamente científicos, suas incursões em literatura ou seus inventos e experimentos inusitados.

    E assim os dois homens começaram uma rotina de partidas e chegadas em viagens que se perpetuou pelos anos em que Isabeau ficou abandonada aos cuidados apenas indispensáveis.

    Antigos serviçais fiéis às famílias viviam no casarão Gatopardo e velhos professores vinham todos os dias para algumas poucas horas de aulas monótonas.

    Foi organizada uma engrenagem eficiente e funcional, mas completamente impessoal.

    Rostos apenas levemente familiares observavam-na nas pequenas atividades e necessidades do dia a dia e vozes indiferentes, distantes e com entonações frequentemente impacientes repetiam ordens curtas para o cumprimento da maçante tarefa de cuidar da órfã que ninguém queria e com a qual ninguém realmente se importava.

    As pessoas se revezavam e eram substituídas sob a responsabilidade e as decisões dos advogados de Cesar e de Victor através de frias comunicações telefônicas secundadas e confirmadas por ordens escritas. Era mantida uma rotina de constante renovação das pessoas, que nunca permaneciam encarregadas dos cuidados com Isabeau por tempo suficiente para nada parecido com uma relação afetiva.

    Com frequência regular e com fria precisão, eram trocadas as vozes e os rostos, mas persistiam as mesmas eternas atitudes impessoais e desinteressadas, com a eficácia exata para o cumprimento da tarefa encomendada e regiamente paga.

    Sob tal condição a menina vivia como uma autômata. Alimenta-se, banhava-se, vestia-se, estudava suas lições, distraia-se com os muitos jogos e brinquedos espalhados pelo casarão e permanecia completamente solitária e infeliz e ignorante da própria solidão e infelicidade.

    Desses anos sombrios a mais amarga das lembranças de Isabeau e a única capaz de levá-la a incontroláveis lágrimas era também a mais importante porque marcava uma mudança completa em sua vida.

    O fato acontecera em um anoitecer no casarão Gatopardo, num intervalo entre as infindáveis viagens e uma das raríssimas ocasiões em que seu avô e seu tio avô decidiram permanecer em Terra Alta por pouco mais de um dia. Nessa ocasião especial a menina decidira esclarecer uma dúvida que a estava consumindo desde uma conversa perturbadora com Consuelo, a cozinheira de pele trigueira e sorriso fácil, recentemente contratada.

    Vinda há poucas semanas, através de uma agência de empregos utilizada pelos advogados de Victor, Consuelo encontrara no casarão envolto em brumas tristes, aquela menina calada. Nessa época Isabeau era meio arisca, enfiada em velhas roupas desgastadas, desajeitadas, impróprias e grandes demais para ela e com a necessidade dolorosa de ser vista. Com o coração esmagado sob o peso da dor da criança, Consuelo derreteu-se para com ela em atenções e amabilidades. 

    A boa e simples mulher não imaginava que estava destinada a provocar uma mudança crucial na vida da infeliz criatura presa entre as paredes do casarão.

    Em retrospectiva dos acontecimentos, Consuelo seria forçada a reconhecer que nunca fez realmente nenhum grande esforço para ser aceita no mundo melancólico da pequena Isabeau.

    Ela era tão terrivelmente carente, ingênua e solitária, que teria correspondido imediatamente ao menor sinal de interesse por sua frágil e desolada figura, por parte de quem quer que fosse. E assim, Isabeau foi atraída para o convívio com a cozinheira com a mesma certeza e facilidade com que uma borboleta é atraída para a luz e logo a aconchegante cozinha se tornou o centro da vida da menina.

    Ali, naquela cozinha, Isabeau começou a passar longas horas em conversas intermináveis com a bondosa mulher.

    Um dia, sem desconfiar do quanto a magoaria, Consuelo perguntou à menina quando iriam fazer bolos e doces para festejar seu aniversário. A surpresa da pergunta deixou Isabeau abalada porque ela simplesmente não conseguia atinar com a resposta.

    Mesmo seus mais enérgicos esforços foram inúteis para fazê-la se lembrar de uma única vez em que seu avô, Victor, ou seu tio avô, César, houvessem apenas mencionado ou feito a mais leve referência à data.

    Os dois homens traziam-lhe uma montoeira de presentes a cada chegada.

    Na totalidade, badulaques comprados por assistentes e secretarias que não tinham nenhum conhecimento ou interesse pela menina. Eram quinquilharias, uma coleção de coisas completamente inadequadas que sequer Isabeau saberia como usar, mas que a enchiam com seu prazer infantil. Tantos pacotes coloridos serviam admiravelmente à manobra dos dois homens decididos a mantê-la à uma distância confortável.

    Vendo-a distraída com os pacotes e seus conteúdos surpreendentes e, depois de analisados, apenas com relativa atenção, os relatórios sobre suas atividades seu desenvolvimento e o seu cotidiano, Victor e Cesar podiam se convencer de que a atendiam convenientemente, e que podiam esquecê-la.

    Voltavam para as profundezas do seu mundo afastado das lembranças da família destruída, deixando-a novamente envolta em sombras. Até a próxima partida sempre iminente para um destino qualquer e sem data de regresso.

    Naquele dia da conversa na cozinha, Isabeau ainda era suficientemente pequena, inocente e tola para acreditar que receber presentes poderia ser uma indicação segura para a data do aniversário e então respondeu para a cozinheira que aniversariava sempre que o avô e o tio chegavam das suas infinitas viagens.

    E tal foi o esforço da menina em parecer convicta do absurdo que dizia que o coração da boa Consuelo confrangeu-se com pena da criança e ela fingiu aceitar aquela resposta como bastante razoável. Mas Isabeau percebeu a verdade por traz da expressão cheia de pena da mulher e decidiu, naquele exato momento, que a próxima chegada de Victor e Cesar seria diferente e que ela teria alguma coisa a lhes dizer.

    E assim, em um entardecer em que estavam os dois no casarão, recém- chegados de algum dos seus muitos destinos extraordinários, a pequena Isabeau venceu sua quase insuportável timidez e entrou na biblioteca, avançando até inacreditáveis dois metros das poltronas em que Victor e César se acomodavam com seus charutos e seus conhaques.

    Ereta e resoluta, Isabeau se forçou a perguntar em que dia deveria festejar seu aniversário.

    A voz da pequena soou levemente esganiçada pelo nervosismo e invadiu o silêncio sagrado das mentes dos dois homens perturbando-os num rincão da consciência que eles teriam preferido ignorar para sempre. Surpreenderam-se com a aparição da menina até o espanto.

    Estavam completamente esquecidos dela, pois tinham a certeza de tê-la deixado com a infinidade de pacotes das compras ao acaso naquele pedacinho das suas vidas com as mágoas e raivas e sentimentos de ultraje à traição do destino.

    E, repentinamente, eis que ela, violando o acordo secreto e vergonhoso ousou voltar das sombras das dores passadas, porque precisava saber o dia em que nasceu e que deveria contar a passagem dos seus anos no percurso da vida.

    Os dois homens se voltaram com enorme desagrado para olhá-la durante um silêncio de qualidade dolorosa só comparável a dor profunda no olhar da menina.

    E ela, apesar de tão pequena e frágil e assustada não retrocedeu sequer um centímetro de sua resolução, nem mesmo quando ambos os homens, praticamente desconhecidos para ela e com ares enfezados se soergueram fulminando-a com reprovação pela impertinência. Mas então aconteceu um daqueles momentos sobre os quais certamente os anjos fazem registros nos céus e Victor olhou para a neta e a viu verdadeiramente pela primeira vez em anos.

    Viu a solidão e a tristeza incalculáveis emolduradas pelas roupas que eram grandes demais para ela. Que deveriam ter pertencido à mãe ou até mesmo à avó da menina e os sapatos de saltos enormes nos pés infantis e o rostinho coberto por antigas maquiagens que ela utilizara de forma desastrosa, certamente para parecer mais adulta e se dar a coragem de enfrentar os dois únicos parentes que tinha no mundo e que deveriam cuidar dela sem jamais ignorá-la.

    Victor Gatopardo viu Isabeau reconheceu o cruel abandono da menina e sentiu a maior vergonha de toda sua vida. 

    Cesar já começara um discurso sobre a inutilidade de saberem-se a exatidão dos dias dos aniversários que ameaçava acabar com uma preleção sobre as possibilidades das mortes traiçoeiras que levavam os seres com os quais muitos bolos festivos tinham sido cortados e velinhas comemorativas assopradas.

    Mas Victor calou-o com um gesto de tamanha autoridade que não admitiu questionamentos.

    Então prometeu à menina que iria procurá-la na sala de estudos ao final da tarde para conversarem. Buscava garantir assim, a si mesmo e ao cunhado, o necessário equilíbrio para lidarem com a situação e o tempo para descobrirem a resposta à pergunta, certamente através do registro de nascimento da criança que deveria estar esquecido entre papéis em alguma gaveta ou cofre.

    Mais tarde Victor foi à sala de estudos e encontrou Isabeau ocupada com um quebra cabeças indicado para pessoas muitíssimo mais velhas do que ela, composto de infinitas peças minúsculas e dificílimas de diferenciar entre si e que ela examinava demoradamente antes de tentar cada encaixe.

    Ela ainda vestia as velhas roupas que não eram dela e no rosto o tom de um batom vermelho demais a envelhecia até fazê-la parecer uma anã com olhos de criança.

    Victor se aproximou cauteloso, ciente de ser praticamente um estranho e de não ter o direito de esperar nada além de uma fria tolerância.

    Após um longo debate com Cesar, ele havia decidido por uma solução muito peculiar ao seu caráter criativo, original e amante da justiça, que pretendia reparar o mal incalculável que seu egocentrismo havia causado à neta e, ao mesmo tempo se possível, ajudá-la a sorrir. Entregou para Isabeau um pequeno envelope e disse-lhe que ela contava então, até aquele dia, dez anos completos, faltando poucas semanas para os onze.

    Disse que dentro do envelope havia uma anotação com a data em que ela havia

    nascido e que ela poderia abri-lo imediatamente se quisesse, mas que ele propunha uma solução mais divertida. Prometia nunca mais deixá-la, nunca mais se ausentar da presença dela.

    Disse que eles celebrariam seu aniversário com todas as tradições conhecidas, bolos, doces, presentes, programações especiais, sempre que ela desejasse, sempre que ela decidisse ser dia de seu aniversário, até mesmo mais de uma vez por ano.

    Disse ainda, que isso seria assim até o dia que ela decidisse abrir o envelope para saber a data verdadeira, ou elegesse outra data a seu gosto, que então passaria a ser o dia de festejarem oficialmente seu nascimento.

    E que essa decisão era e seria sempre, apenas dela.

    Observou-a segurar o envelope como a um pequeno tesouro, viu-a arfar o peito magro de criança mal nutrida de amor e mal cuidada de atenção sob uma emoção que ela não conseguiria entender e viu os olhos tristes brilharem com uma luz nova de interesse e com a indecisão entre descobrir imediatamente a informação tão desejada ou aceitar aquela outra proposta, muito tentadora para uma criança.

    Quando finalmente ela se decidiu e sem abrir o envelope foi guardá-lo com cuidado infinito entre as páginas de um velho livro de histórias numa das estantes mais afastadas

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