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Teoria funcionalista dos valores humanos: Áreas de estudo e aplicações
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Teoria funcionalista dos valores humanos: Áreas de estudo e aplicações
E-book395 páginas5 horas

Teoria funcionalista dos valores humanos: Áreas de estudo e aplicações

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Sobre este e-book

Trata-se de obra que, considerando um tema central das ciências humanas e sociais e da educação, não se limita à conceituação, na medida em que busca, também, mostrar sua aplicabilidade em diversos contextos e áreas, revelando o potencial dos valores humanos em práticas cotidianas.

Procura, ainda, reunir profissionais e pesquisadores de diferentes áreas (p. ex., educação, Direito, psicologia) e instituições, oferecendo diversas perspectivas sobre o tema, mas assegurando coerência ao terem em conta uma teórica única dos valores humanos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de ago. de 2023
ISBN9786553740549
Teoria funcionalista dos valores humanos: Áreas de estudo e aplicações

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    Teoria funcionalista dos valores humanos - Valdiney Veloso Gouveia

    Prefácio

    É uma honra ter a oportunidade de introduzir o livro de Valdiney Veloso Gouveia sobre sua teoria funcionalista dos valores. Conheço o prof. Gouveia por vários anos e tem sido um prazer ter a chance de trabalharmos juntos. Ele tem contribuído decisivamente para nosso entendimento da ciência dos valores humanos; seu pensamento é profundo e amplo, e é apreciável seu entusiasmo para testar rigorosamente essa teoria.

    Coerente com sua trajetória, este livro tem lugar após ele ter escrito diversos livros, capítulos e mais de 180 artigos científicos, reunindo estudos de diferentes países (e.g., Brasil, Argentina, Espanha, México, Portugal, Venezuela). A maioria de suas publicações tem sido sobre valores humanos, individualismo-coletivismo, identidade social, preocupação ambiental e bem-estar subjetivo. Seus trabalhos cobrem amplamente seus interesses em psicologia social e avaliação psicológica. Por exemplo, ele tem desenvolvido ou adaptado um número de instrumentos de avaliação psicológica, alguns amplamente usados, como o Inventário de Depressão Infantil e o Questionário de Saúde Geral.

    Este livro foca na Teoria Funcionalista dos Valores Humanos, mas facilmente se percebe as formas beneficiadas por suas experiências em outros domínios de estudo. Seu grupo de pesquisa em valores tem se configurado a partir de sua tese de doutorado na Universidade Complutense de Madri, intitulada Individualismo y colectivismo en Brasil y España. A tese apresenta os fundamentos básicos para sua teoria funcionalista dos valores e foi agraciada com o Prêmio de Pesquisa Concepción Arenal de Humanidades (Universidad de La Coruña y Ayuntamiento de Ferrol, Espanha).

    As pesquisas sobre sua teoria já percorreram um longo caminho desde sua proposição. Ela representa uma abordagem nova e provocativa. O ponto de partida do prof. Gouveia é a suposição de que os valores podem ser organizados de acordo com as funções psicológicas a que servem, admitindo duas funções principais: guia de comportamentos e expressão de necessidades.

    A concepção dos valores como guia da conduta humana tem sido elaborada com base nos modelos propostos por Milton Rokeach e Shalom Schwartz. Sua teoria funcionalista sugere que a subfunção guia do comportamento expressa que as pessoas sejam orientadas a ter metas que variam de pessoais, em favor do eu, a sociais, enfocando o grupo mais amplo e a comunidade; entre tais metas têm lugar os valores centrais, que servem ao propósito geral da vida e podem satisfazer simultaneamente a interesses de indivíduos e grupos (contemplam metas pessoais e sociais). A função dos valores como expressão das necessidades reúne dois níveis que ecoam o modelo apresentado por Ronald Inglehart: materialista/sobrevivência e humanitário/crescimento. Os valores materialistas focam em regras normativas e práticas, enquanto os valores humanitários acentuam ideias e princípios abstratos.

    Como apresentada neste livro, a teoria funcionalista combina as funções postuladas em um modelo 2 x 3, que dá origem a seis tipos básicos de valores ou subfunções: experimentação, realização, existência, suprapessoal, interativa e normativa. Este livro não apenas descreve evidências de que esses valores básicos são distintos, mas também apresenta achados de sua relação com processos e produtos importantes. Essas associações contemplam, entre outras variáveis, comportamento antissocial, relações familiares, uso de drogas, desempenho escolar, comportamento ambiental, clima e conduta organizacional.

    Todas essas associações são muito importantes, porém o que eu mais apreciei foi ler o capítulo que mostra o papel dos valores no âmbito da psicologia positiva. Há um apelo à possibilidade de empregar valores que cobrem a dimensão humanitária / crescimento (e.g., emoção, conhecimento, convivência) como guias de autorregulação ou lembretes de coisas que importam, uma vez satisfeitas as necessidades básicas. A simplicidade da teoria pode torná-la uma das mais facilmente usadas pelas pessoas para pensar sobre nossas condutas cotidianas e seu ajuste ou não ajuste aos nossos valores. Em um mundo cada vez mais complexo, às vezes é fácil nos sentirmos afastados de nossos valores, porém um modelo simples e elegante pode nos levar a pensar sobre eles e nos ajudar a reconectar com suas implicações.

    É essa simplicidade que me faz pensar sobre a teoria funcionalista em minha própria pesquisa. Meus colaboradores e eu temos focado mais em como as pessoas usam seus valores do que em que tipos de valor humano se relacionam com o comportamento. Consequentemente, não temos estado fortemente atrelados a alguma conceituação específica sobre as motivações subjacentes aos valores. Muitos de nossos estudos têm obtido evidências em favor do modelo de Shalom Schwartz, mas estamos considerando se as formas em que os valores operam são similares quando usamos a teoria funcionalista. Espero que os processos básicos sejam os mesmos, contudo, como visto neste livro, os princípios da teoria funcionalista para explicar as associações dos valores com variáveis externas são diferentes daqueles dos modelos de Schwartz e de outros autores.

    Uma ciência saudável requer a existência de visões convincentes e divergentes sobre os mesmos processos. É isso que ocorre no estudo dos valores humanos, em razão de suas relações com uma gama de processos e comportamentos importantes. Enquanto lê este livro, você descobrirá que a teoria funcionalista dos valores oferece uma perspectiva importante e estimulante para pensar sobre esse tema relevante.

    Gregory R. Maio

    Full Professor, Cardiff University, Wales

    1. Introdução à teoria funcionalista dos valores

    Valdiney V. Gouveia

    Propor uma teoria não é, desde logo, tarefa fácil. A maior dificuldade não é pensar algo novo, pois todos os dias centenas de jovens, cada dia mais capacitados e preparados, propõem ideias maravilhosas, embora nem sempre lembradas ou, melhor dizendo, a maioria das vezes desacreditadas. Afinal, o novo, principalmente quando rompe com padrões estabelecidos, é sempre desafiador e se espera de alguém mais maduro, de alguma instituição renomada, situada em país ou região igualmente reconhecido por sua influência social e política. Portanto, o maior desafio é perseverar e acreditar nas próprias ideias quando todos parecem achar impossíveis; insistir, ainda quando se tente obviar a novidade e tornar as evidências acomodadas a modelos prévios, forçando um ajuste para não se deparar com o desconforto do novo. Desses momentos não ouvimos falar, mas os enfrentamos, sentindo-os na pele. Seguramente, visto por esse prisma, a Teoria Funcionalista dos Valores Humanos tinha tudo para dar errado. Entretanto, passadas quase duas décadas desde as primeiras ideias, parece ter encontrado seu momento de maturação, sendo ainda uma jovem teoria, cuja potencialidade apenas se está conhecendo, gerando expectativas que vão além do mundo estritamente acadêmico.

    Este capítulo pretende apresentar essa teoria focando no produto que tem resultado de anos de pesquisas, contando com a colaboração de muitos colegas, no Brasil e em mais de 50 países, gerando artigos, capítulos de livro, livros, além de dissertações e teses em diversas universidades brasileiras (e.g., Universidade Federal da Paraíba, Universidade de Fortaleza, Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e estrangeiras (e.g., Universidade do Porto, University of Kent, Victoria University of Wellington). O propósito é mostrar elementos históricos e contextos em que essa teoria foi sendo forjada, destacando eventos centrais, êxitos e fracassos; pretende-se, ainda, descrever e reunir evidências sobre suas hipóteses principais, mostrando sua comprovação no Brasil e em outros países, ademais de apontar para suas aplicações potenciais, cujos capítulos que seguem vão ser mais enfáticos.

    1.1. História e conceituação

    Não se pretende nesta oportunidade contar a história dos estudos acerca dos valores humanos, que já tem sido retratada em outras publicações (ROKEACH, 1973; ROS; GOUVEIA, 2001). Pretende-se, concretamente, traçar as linhas gerais que possibilitaram chegar à Teoria Funcionalista dos Valores Humanos, dando destaque especial às publicações a partir dos anos 2000. Porém, introduz-se, igualmente, a conceituação dos valores de acordo com essa teoria, fazendo perceber sua singularidade como construto, mostrando o sentido da funcionalidade inerente e identificando as dimensões principais que foram derivadas.

    1.1.1. Elementos históricos

    Em outros textos previamente publicados, é possível conhecer um pouco da história sobre a teoria funcionalista dos valores (GOUVEIA et al. 2008; GOUVEIA et al., 2011); mais recentemente, introduziram-se fatos de bastidores, elementos que permitem reconhecer que, embora negada por alguns colegas, a teoria estava aí fazia algum tempo (GOUVEIA; MILFONT; GUERRA, 2014b). De fato, ela começou a surgir em 1996 quando eu estava cursando doutorado na Espanha; o impulso teve lugar, principalmente, a partir dos debates com a profa. Maria Ros Garcia, da Universidade Complutense de Madri. Ela trabalhava com base na perspectiva do S. H. Schwartz, mas não me tolhia ou repreendia meus comentários críticos acerca desse modelo; diversas foram as discussões a respeito, oportunidades em que apresentei minhas impressões sobre a falta de uma base teórica ou fundamentação epistemológica sólida que o sustentasse, assim como o evidente indeterminismo no modo como os valores eram escolhidos, derivando quase que completamente da medida de Milton Rokeach, que admitia contar com uma lista intuitiva de valores, sem qualquer estrutura teórica subjacente.

    Nos dois anos subsequentes, Maria e eu colaboramos em algumas atividades. Por exemplo, em 1997 participamos do VI Congresso Nacional de Psicologia Social, realizado em San Sebastián, tendo sido organizado pelo prof. Dario Paez um simpósio em valores. Na ocasião apresentamos uma comunicação sobre os modelos de Hofstede e Schwartz, posteriormente convertida em artigo (GOUVEIA; ROS, 2000). Como outros colegas, discutimos um outro trabalho também transformado em artigo, em que propúnhamos uma modificação da medida de Schwartz (GOUVEIA; CLEMENTE; VIDAL, 1998). Em 1998 participamos do II Congresso Ibero-americano de Psicologia, ocasião em que apresentamos comunicações livres; na oportunidade procurei resgatar a temática dos valores, apontando os avanços teóricos e aplicados, o que posteriormente resultou em livro que Maria e eu editamos (ROS; GOUVEIA, 2001), intitulado Psicología social de los valores humanos: desarrollos teóricos, metodológicos y aplicados. Esse contexto me levou a escrever minha tese de doutoramento, que propunha uma nova teoria dos valores, que foi defendida em 1998, sendo agraciada com o prêmio Concepción Arenal de Humanidades.

    De volta ao Brasil, em 1998, prontamente tomei como foco de meus estudos a referida teoria, dirigindo as dissertações de mestrado e teses de doutorado de meus orientandos para tratar diretamente dessa teoria ou de temas em que ela pudesse ser empregada. Os primeiros resultados foram evidenciados pouco tempo depois (MAIA, 2000; MILFONT, 2001), principiando um programa de pesquisa (GOUVEIA, 2013a). Em 2001, aproveitando uma visita do prof. S. H. Schwartz ao prof. Álvaro Tamayo, da Universidade de Brasília, convidei-lhe a vir à Paraíba. Estando o prof. S. H. Schwartz em meu laboratório por três dias, apresentei-lhe um texto sobre a teoria funcionalista dos valores, assim como comentei sobre as limitações do seu modelo, o que ele discordou. Lembro-me de que naquele instante ele disse que nossos dados (então negava que existisse uma teoria) confirmavam o seu modelo, mas insisti que, embora não incompatíveis, eram diferentes. Claro, ele não desejou admitir naquela ocasião (GOUVEIA et al., 2014b). Naquele mesmo ano, convidei também a ir à Paraíba o prof. Wolfgang Bilsky, que colaborou com aquele professor no desenvolvimento de sua teoria; Wolfgang esteve conosco por dois meses. Sua postura perante o que se apresentava me parecia ambígua e apenas mais recentemente compreendida (BILSKY, 2013): por um lado, ele achava muita ousadia de minha parte, mas, por outro, reconhecia mérito no que eu estava propondo.

    Os anos seguintes foram para tentar ampliar a teoria, melhorá-la e procurar que fosse conhecida nos cenários nacional e internacional. A propósito, em 2002, submetemos um manuscrito ao Journal of Personality and Social Psychology; o editor à época não o encaminhou para os revisores, indicando que, consultando uma figura de autoridade, foi-lhe aconselhado rejeitá-lo. Uma versão modificada do manuscrito foi publicada no ano seguinte no Brasil (GOUVEIA, 2003), seguindo a sugestão do Wolfgang, que indicava que eu poderia começar a difundir o modelo em meu próprio país (embora eu tenha relutado em um primeiro momento, encarei como positiva sua sugestão). Os anos seguintes foram para tentar consolidar a teoria, contando com colegas brasileiros que me estimulavam, a exemplo da profa. Maria Luiza Teixeira, da Universidade Mackenzie, que me convidou para todas as edições do Simpósio Internacional dos Valores, onde eu tinha a chance de mostrar a dita teoria e discutir o tema com pesquisadores alinhados com S. H. Schwartz, a exemplo de Álvaro Tamayo, Maria Ros e Wolfgang Bilsky, que, em algumas ocasiões, frequentaram aquele evento.

    Fruto de um dos simpósios sobre valores, tivemos a oportunidade de publicar um capítulo em que se descrevia a teoria, intitulado Teoria Funcionalista dos Valores Humanos (GOUVEIA et al., 2008). Porém, a esperança de publicar algo no âmbito internacional persistia; em 2009 elaboramos uma versão melhorada da teoria, reunindo diferentes amostras e testando suas hipóteses principais, que foi submetida ao Journal of Personality and Social Psychology. Tivemos a felicidade de o editor o ter encaminhado para os revisores, que deram pareceres importantes e sugeriram modificações, mas sem rejeitá-lo. Passamos por três rodadas de editoração, até que o editor comentou que, apesar das contribuições do manuscrito, existia uma teoria conhecida sobre os valores, não parecendo importante publicar uma nova. Apenas mais uma frustração. Porém, tomamos como estímulo; afinal, os pareceristas destacaram algum mérito no que estava sendo proposto.

    Embora não conseguíssemos emplacar uma publicação importante em âmbito internacional, os colaboradores e amigos pareciam acreditar na proposta, e duas teses de doutorado foram defendidas em que usaram a teoria (BOER, 2009; GUERRA, 2009). Pouco tempo depois, também tivemos, finalmente, um artigo publicado em revista internacional, considerando uma amostra da Espanha (GOUVEIA et al., 2010). Um capítulo de livro publicado no Brasil tratava de expandir o conhecimento acerca da teoria (GOUVEIA et al., 2011). Porém, ainda insistíamos com revistas de maior impacto. Nessa direção, submetemos outro manuscrito para o International Journal of Psychology; então, já reconhecendo a resistência de aliados e coautores de S. H. Schwartz, pedimos que não fosse designado qualquer parecerista que trabalhasse com ele. Surpreendentemente, o editor foi um de seus maiores colaboradores e, pautado em pareceres essencialmente positivos, indicou que poderia aceitar o manuscrito, sempre e quando evitássemos falar em propor uma nova teoria. Por suposto, declinamos da oferta.

    A rejeição à teoria funcionalista dos valores no âmbito internacional parecia evidente. Desse modo, conversando com dois amigos e então colaboradores (Milfont e Fischer), decidimos que deveríamos mudar a estratégia para termos um artigo da teoria publicado. Na ocasião aproveitamos que havia uma chamada para artigos sobre valores no Journal of Cross-Cultural Psychology, em homenagem aos trabalhos de S. H. Schwartz, e decidimos arriscar. Então, principiamos o texto elogiando sua teoria e, posteriormente, indicamos que trataríamos os valores desde uma abordagem recente, introduzindo assim nossa teoria (FISCHER; MILFONT; GOUVEIA, 2011). Estratégia parecida foi adotada para publicar um artigo sobre a teoria em Archives of Sexual Behavior (GUERRA; GOUVEIA; SOUSA; LIMA; FREIRES, 2012). Porém, pretendia-se mostrar a teoria como foco principal, e logramos isso em artigo considerando dados da Colômbia (ARDILA; GOUVEIA; MEDEIROS, 2012). No entanto, persistiam as dificuldades com outras revistas, a exemplo do European Journal of Social Psychology, cujo editor rejeitou prontamente nosso manuscrito; mais curiosa foi a postura do editor da revista Social Psychology, que, mesmo reconhecendo o mérito do manuscrito, ressaltou, como uma das restrições para publicá-lo, o fato de não termos antes publicado a teoria em revistas de impacto. Nesse ponto, pareceu obviar as publicações prévias, mas não desanimamos!

    Seguramente a oportunidade mais importante veio com a revista Personality and Individual Differences. O editor responsável, Paul Barret, diferente de outros que, mesmo com pareceres positivos se recusavam a publicar nossa teoria, decidiu acolher as recomendações dos pareceristas e permitir a revisão e posterior publicação do artigo, cujo foco exclusivo era nossa teoria (GOUVEIA; MILFONT; GUERRA, 2014a). Então, estranhamente, o artigo causou bastante incômodo ao prof. S. H. Schwartz, que procurou minorar nossa contribuição, pois julgava desconhecer, indicando que parte do que tratamos ele já havia falado (SCHWARTZ, 2014). A verdade é que não foi assim antes de 2001! Mas, naquela ocasião, tratamos de esclarecer os fatos e mostrar como nossa teoria poderia, mesmo sendo mais parcimoniosa, explicar dados obtidos com um de seus instrumentos (GOUVEIA et al., 2014b). A partir de então outros artigos têm sido submetidos a revistas internacionais e os pareceres parecem mudar de tom, não mais questionando a teoria em si.

    Por fim, publicou-se recentemente um livro sobre a teoria, intitulado Teoria Funcionalista dos Valores Humanos: fundamentos, aplicações e perspectivas (GOUVEIA, 2013a). Esse livro, prefaciado pelo prof. Wolfgang Bilsky, mostra o percurso da teoria, reunindo evidências sobre sua adequação e citando os principais estudos realizados, as publicações levadas a cabo e as múltiplas dissertações e teses que a tiveram em conta. Certamente, muito ainda haverá que fazer. Entretanto, já foram dados passos importantes e, de fato, hoje já existem estudos com a teoria em cerca de 60 países de todos os continentes, tendo o Questionário dos Valores Básicos sido traduzido para ao menos 24 idiomas (e.g., árabe, francês, grego, japonês, inglês, turco).

    1.1.2. Conceituação e dimensões dos valores

    Quando se fala em valores, é comum que as pessoas tenham uma ideia geral, por vezes imprecisa e romântica, imaginando qualquer coisa que seja coerente com o que acreditam, mas quase sempre desconectada do que se entende a respeito nas ciências humanas e sociais. Não obstante, há uma ideia genérica compartilhada, que os encara como qualidade de algo, uma característica positiva que define o homem do bem, noção quase similar a caráter, e uma tendência a agir coerentemente em diversas situações. Nesse contexto, ouvem-se muitas vezes as expressões fulano tem valor ou beltrano não tem valor. Pois bem, pretende-se aqui deixar claro que todas as pessoas têm valores, que são aproximadamente os mesmos, variando apenas a magnitude com que os endossam; procede-se, pois, a definir mais precisamente o que são os valores, reconhecendo suas dimensões principais.

    A primeira coisa a se ter em conta é que os valores não são propriedades inerentes a objetos ou instituições, nem são eles mesmos. Por exemplo, fala-se nos valores casa, dinheiro, família e igreja, mas eles não são, propriamente, valores; tratam-se de instituições (família, igreja) ou objetos (dinheiro, casa). Porém, a importância conferida a cada um deles pode resultar das prioridades valorativas. No caso, alguém que considera a família muito importante seguramente se pauta em valores sociais, sobretudo naqueles normativos (obediência, religiosidade e tradição), ao passo que os que conferem importância ao dinheiro são guiados por valores de realização (êxito, poder e prestígio). Por esse motivo, os valores não são os objetos em si, mas princípios-guias ou categorias de orientação que transcendem situações concretas, servindo como lentes socialmente construídas por meio das quais se confere sentido ao mundo ao redor.

    Nessa teoria, a ênfase principal recai nas funções que têm os valores. Apesar de existirem múltiplas funções, em linha com aquelas descritas para as atitudes (ROKEACH, 1973), duas parecem mais substanciais: guiam o comportamento e expressam cognitivamente as necessidades humanas. Nesses termos, pode-se definir os valores como categorias de orientação pautadas nas necessidades humanas, que servem como guias do comportamento das pessoas e explicam a forma como pensam, sentem e agem no dia a dia. Os valores, embora mais resistentes à mudança que as atitudes, não são imutáveis; sua importância pode mudar de acordo com o passar dos anos, atendendo, no caso de cada indivíduo, às demandas biológicas e aos papéis sociais assumidos. Como categorias gerais de orientação, eles existem em todas as culturas, sendo expressos a partir das mesmas dimensões, apesar de ser admitido que variem em seus elementos ou descritores específicos.

    Não existem contravalores; todos os valores são positivos e tendem a compor um sistema integrado, sobretudo em pessoas maduras. A possibilidade de conflito interno dos valores evidencia mais uma exceção do que uma regra, uma vez que indica alguém que ainda não se desenvolveu plenamente ou tenha experimentado estado físico ou mental de desequilíbrio. Por exemplo, em adolescentes é comum vivenciar uma crise de identidade, em que a pessoa se debate entre se ater às normas impostas por pais e superiores, conformando-se aos papéis esperados (valores normativos), ou vivenciar novas experiências, arriscar-se e procurar ser independente em suas ações (valores de experimentação). Contudo, essa dicotomia tende a ser superada, de modo que a pessoa madura reconhece a importância de seguir normas sociais, mas sem abandonar o prazer do novo. Por suposto, não se pode obviar que, por razões de limitações físicas, esta última possibilidade pode ficar menos expressiva na maior idade, ainda que não inexista.

    No caso das funções principais dos valores, elas dão origem a duas dimensões funcionais, a partir das quais são derivadas as subfunções valorativas (GOUVEIA, 2013a). A função de guiar o comportamento humano reflete a dimensão tipo de orientação (círculo de metas), que pode ser de três tipos: pessoal (o indivíduo por ele mesmo, tendo foco intrapessoal), central (o propósito geral da vida) e social (o indivíduo na comunidade, tendo foco interpessoal). A função de representar cognitivamente as necessidades humanas se traduz na dimensão tipo de motivador (níveis de necessidades), que pode ser de dois tipos: materialista (concebe a vida como fonte de ameaças a serem superadas) ou humanitária (considera a vida como fonte de oportunidades a serem vivenciadas). As duas dimensões, conforme observado na Figura 1.1, são cruzadas de modo a formar o espaço representacional dos valores, constituído por seis subfunções valorativas e seus respectivos descritores ou valores específicos. Eles podem ser encarados como exemplificadores, podendo ser adaptados para determinado contexto de pesquisa ou necessidade dos participantes do estudo. Desse modo, essa teoria pressupõe uma flexibilização ou independência com respeito ao instrumento de medida dos valores.

    Figura 1.1. Dimensões, subfunções e valores específicos.

    De acordo com essa figura, quando as duas funções principais dos valores são combinadas, têm lugar as seis subfunções valorativas ou valores básicos (experimentação, realização, existência, suprapessoal, interativa e normativa), que presumivelmente representam o universo dos valores, permitindo, até mesmo, dar conta daqueles presentes em outras tipologias (GOUVEIA et al., 2014b). Por exemplo, os valores da subfunção experimentação representam necessidades humanitárias, admitindo a vida como fonte de oportunidades, focando no próprio indivíduo; aqueles normativos refletem necessidades materialistas, descrevendo a vida como fonte de ameaças, focando em metas que primam pela vida em sociedade, atendo-se a normas sociais, procurando assegurar o status quo. Essa configuração da teoria possibilita pensar em algumas hipóteses que a dão sustentação, como a seguir são descritas.

    1.2. Hipóteses principais

    Quando se fala em hipóteses principais, são aquelas derivadas diretamente da teoria, que têm por base seus fundamentos principais, como a natureza humana admitida, as dimensões derivadas, a organização estrutural do espaço axiológico e o sistema de valores dos indivíduos. Hipóteses mais específicas podem ser derivadas, incluindo a associação dos valores com diversas variáveis psicológicas e sociais, como são discutidas nos capítulos seguintes. De momento, consideram-se essas macro-hipóteses, que são tratadas em pares, segundo a proximidade ou interdependência entre elas.

    1.2.1. Hipóteses de conteúdo e estrutura

    A hipótese de conteúdo indica que, no caso do Questionário dos Valores Básicos (QVB), seus 18 itens serão representações adequadas das seis subfunções valorativas. Mais ainda, que o modelo hexafatorial (experimentação, realização, existência, suprapessoal, interativa e normativa) será o mais apropriado quando confrontado com os alternativos: unifatorial (admitindo que os valores têm um componente forte de desejabilidade social, seria possível presumir um fator geral como explicando as intercorrelações dos valores), bifatorial [coerente com a proposta do R. Inglehart, alguém poderia defender que separar os valores em materialistas e humanitários (pós-materialistas) poderia ser mais promissor], trifatorial [em linha com os estudos sobre individualismo-coletivismo (HOFSTEDE, 1984) e a proposta de S. H. Schwartz de classificar os valores como cumprindo interesses individuais, mistos ou coletivos, poderia se estimar que esse modelo fosse mais adequado] e pentafatorial (uma vez que os valores centrais descrevem o propósito geral da vida, talvez fosse defensável admitir que eles formariam um único fator).

    A hipótese de estrutura diz respeito à adequação de representar os valores humanos a partir de duas dimensões funcionais: tipo de orientação e tipo de motivador. Portanto, pressupõe-se que os valores se organizem de modo que, de um lado e de outro do espaço bidimensional, apareçam aqueles denominados pessoais e sociais e, entre eles, estarão os valores centrais. Por outro lado, prevê-se que os valores humanitários e materialistas ocuparão regiões diferentes neste espaço. Dessa forma, é plausível que, representando as intercorrelações dos valores específicos no espaço, seja possível identificar as duas dimensões principais dos valores que formarão eixos, ancorando as seis subfunções e seus respectivos marcadores ou valores específicos, aproximadamente como se estabelece na Figura 1.1.

    Em suma, as duas primeiras hipóteses tratam da representação espacial ou organização estrutural dos valores humanos (hipótese de estrutura) e configuração do universo de valores, estimando a adequação de se pensar em seis subfunções valorativas derivadas das duas principais funções dos valores (hipótese de conteúdo). Portanto, elas preveem evidências de validade de construto da teoria funcionalista dos valores, como operacionalizada pelos instrumentos que ela tem fundamentado. Destaca-se que, mesmo considerando outros instrumentos, a exemplo do Questionário de Perfis de Valores (TAMAYO; PORTO, 2009), os valores específicos admitidos podem perfeitamente ser apreendidos pelo modelo hexagonal proposto (GOUVEIA et al., 2014b).

    1.2.2. Hipóteses de congruência e compatibilidade

    O conflito entre os valores, isto é, a sugestão de incongruência interna do sistema de valores parece evidente já no trabalho de Milton Rokeach, em seu livro The nature of human values (ROKEACH, 1973). Contudo, quiçá sua maior consequência tenha sido na obra de S. H. Schwartz, que desenvolveu uma tipologia pautada em compatibilidades e conflitos dos tipos motivacionais de valores, sugerindo que eles formam um círculo que pode ser desdobrado como uma curva sinusoidal. Embora heurística, essa proposta não é admitida na teoria funcionalista dos valores. Contrariamente, não se assumem, a priori, conflitos entre os valores de uma mesma pessoa. Porém, nesse ponto é

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