Agro, ditadura e universidade: Esalq-USP e a modernização conservadora (1964 a 1985)
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Pré-visualização do livro
Agro, ditadura e universidade - Rodrigo Sarruge Molina
AGRO, DITADURA E UNIVERSIDADE
APOIO
FRENTE DE DEFESA DA DEMOCRACIA LUIZ HIRATA (ESALQ-USP)
HISTEDBR/UNICAMP
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO (UFES)
RODRIGO SARRUGE MOLINA
AGRO, DITADURA E UNIVERSIDADE
ESALQ-USP E A MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA (1964 A 1985)
Copyright © 2022 by Editora Autores Associados Ltda.
Todos os direitos desta edição reservados à Editora Autores Associados Ltda.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Molina, Rodrigo Sarruge
Agro, ditadura e universidade [livro eletrônico] : Esalq-USP e a modernização conservadora (1964 a 1985) / Rodrigo Sarruge Molina. -- Campinas, SP : Autores Associados, 2022.
ePub.
ISBN 978-65-88717-72-1
1. Agricultura 2. Ditadura - Brasil 3. Educação rural 4. Escola Superior de Agricultura Luís de Queiroz - História I. Título.
22-106388 CDD-378.81612
Índices para catálogo sistemático:
1. Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz :
História : Piracicaba : São Paulo : Estado 378.81612
ALINE GRAZIELE BENITEZ - BIBLIOTECÁRIA - CRB-1/3129
Bookwire – conversão ePub – maio de 2022
[livro impresso: ISBN 978-65-88717-60-8; 1. ed. mar. 2022]
O autor do livro agradece a todos que colaboraram com esta edição por cederem gentilmente o uso das imagens aqui estampadas. O autor declara ainda ter se esforçado para solicitar as autorizações necessárias a todos os envolvidos.
EDITORA AUTORES ASSOCIADOS LTDA.
Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira
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Conselho Editorial Prof. Casemiro dos Reis Filho
Bernardete A. Gatti
Carlos Roberto Jamil Cury
Dermeval Saviani
Gilberta S. de M. Jannuzzi
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Walter E. Garcia
Diretor Executivo
Flávio Baldy dos Reis
Coordenadora editorial
Érica Bombardi
Revisão
Cleide Salme
Diagramação
Érica Bombardi
Capa – Fotografia
Legenda: Como paraninfo da ESALQ em 1971, ditador Médici e sua equipe inspecionam o campus USP de Piracicaba
Fonte: Acervo do Museu Luiz de Queiroz
(USP/ESALQ).
Dedicamos este livro a Luiz Hirata (Lua), esalquiano assassinado pela ditadura.
Embora os facínoras tentem apagar o luar, o brilho das lutas pela libertação do Brasil ainda irradia nessa vastidão do Pindorama.
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE SIGLAS
PREFÁCIO
José Luís Sanfelice
APRESENTAÇÃO
Dermeval Saviani
Olinda Maria Noronha
CONTEXTUALIZAÇÃO E AGRADECIMENTOS
INTRODUÇÃO
CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
1. Sobre as fontes primárias da investigação histórica
CAPÍTULO 1: O QUE É A ESALQ?
1. Breve histórico da centenária Luiz de Queiroz
2. A Luiz de Queiroz
no século XXI
3. Quem são os esalquianos?
4. A gênese da escola: Luiz de Queiroz e o projeto coletivo, 1881 a 1892
5. A consolidação da estatal ESALQ-USP no século XX
CAPÍTULO 2: O GOLPE CIVIL-MILITAR DE 1964 E A ESALQ
1. Os Estados Unidos na ESALQ no contexto do golpe
2. A questão da terra: golpe, reforma agrária e tensão social
3. O caso Marcomini
: um esalquiano perseguido antes do golpe
4. O golpe efetivado e a repressão contra os esalquianos
5. Hoffmann: o esalquiano encarcerado pelo golpe
6. O Centro Acadêmico Luiz de Queiroz
e o golpe de 1964
CAPÍTULO 3: ESALQ, DITADURA E A MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA DO CAMPO
1. O Sistema Nacional de Crédito Rural
2. A modernização fomentada pelo Estado
3. A alteração da base técnica dos meios de produção no campo e a exposição agroindustrial na ESALQ
CAPÍTULO 4: O HERÓI LUIZ DE QUEIROZ VOLTA PARA PIRACICABA E RECEBE A VISITA DOS GENERAIS
1. 1964 e a reinvenção
de um herói: Luiz de Queiroz volta para Piracicaba
2. A turma do presidente
: quando Médici foi o paraninfo de 1971
3. O futuro presidente do Brasil na ESALQ: a visita do general Ernesto Geisel em 1973
CAPÍTULO 5: UMA BASE DOS ESTADOS UNIDOS NA ESALQ: ACORDOS USP/USAID
1. De Ohio para Piracicaba
2. Agentes da USAID em ação: compressão, intervenção e cooptação
2.1. Eva Wilson
2.2. Clyde Allison
2.3. Alvin I. Moxon
2.4. John I. Parsons
2.5. John Sitterley
2.6. Charles Triplehorn
2.7. Clair W. Young
2.8. Walter Harvey
3. Voltando para casa
CAPÍTULO 6: ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO: A UNIVERSIDADE PÚBLICA FOMENTANDO O AGRO
1. A criação da pós-graduação em 1964
1.1. Um programa que nasce internacional
1.2. Os egressos da pós-graduação
2. O estratégico Departamento de Genética
3. O Centro de Energia Nuclear na Agricultura – 1966
4. A Fundação de Estudos Agrários Luiz de Queiroz
– 1976
5. O Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada – 1982
6. Os relatórios anuais da ESALQ: os financiadores das pesquisas
6.1. Departamento de Genética (1966-1980)
6.2. Departamento de Química (1966-1980)
6.3. Departamento de Física e Meteorologia (1966-1980)
6.4. Departamento de Ciências Sociais Aplicadas e Departamento de Economia e Sociologia Rural (1966-1980)
6.5. Centro de Energia Nuclear na Agricultura (1966-1977)
6.6. Centro de Estudos do Solo e Departamento de Solos, Geologia e Fertilizantes (1969-1980)
6.7. Departamento de Matemática e Estatística (1969-1980)
6.8. Departamento de Fitopatologia (1974-1980)
6.9. Departamento de Agricultura e Horticultura (1974-1980)
6.10. Departamento de Silvicultura (1974-1980)
6.11. Departamento de Zoologia e Departamento Zootecnia (1974-1980)
6.12. Diretoria da ESALQ-USP (1966-1980)
6.13. Conclusão dos relatórios de 1966 a 1980
7. A graduação: diversificação e reforma universitária
CAPÍTULO 7: DITADURA NA ESALQ: CENSURA, DELAÇÕES, PERSEGUIÇÕES E ASSASSINATO
1. A delação de professores e alunos de Piracicaba ao DOPS
2. A incriminação doméstica: quando o perigo morava ao lado
3. A vigilância contra docentes e estudantes da pós-graduação
4. Pós-graduandos fichados e a perseguição contra a ciência
5. A censura prévia na ESALQ-USP
6. Luiz Hirata: um esalquiano torturado e assassinado pela ditadura
CAPÍTULO 8: MOVIMENTO ESTUDANTIL: LUTA E RESISTÊNCIA
1. Anos de 1960: rebelião caipira contra o golpe civil-militar
2. Anos de 1970: repressão e resistência no interior
3. Anos de 1980: a UNE renasce em Piracicaba
3.1. O 32º Congresso da UNE e a falência do regime
3.2. Novamente em Pira
: 1982 – o 34º Congresso da UNE sob vigilância reforçada
ALGUMAS CONCLUSÕES
POSFÁCIO
Frente de Defesa da Democracia Luiz Hirata
SOBRE O AUTOR
BIBLIOGRAFIA E FONTES PRIMÁRIAS
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Diretoria da E SALQ e membros do USDA
Figura 2 Em junho de 1971, o Consulado dos EUA convidou o presidente do centro acadêmico (C ALQ ) para jantar reservado
Figura 3 Materiais sequestrados de aluno comunista
Figura 4 Multinacionais na E SALQ
Figura 5 Médici, militares e civis no salão nobre da E SALQ
Figura 6 Geisel no centro acadêmico da E SALQ
Figura 7 Professores da U SAID /OSU e família no campus da USP de Piracicaba
Figura 8 Folha de rosto de livro estadunidense introduzido na E SALQ
Figura 9 Embargo contra Cuba na E SALQ sob ordens do Itamaraty
Figura 10 Movimento estudantil piracicabano, 1974
Figura 11 D OPS vigia estudantes de Piracicaba em missa
Figura 12 Abertura do 32 º Congresso da UNE no Estádio Barão da Serra Negra
, Piracicaba
LISTA DE SIGLAS
ABCAR Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural
ACA Associação Cristã Acadêmica
ADEALQ Associação dos Ex-alunos da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz
ADUSP Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo
AERP Assessoria Especial de Relações Públicas
AESI Assessoria Especial de Segurança e Informação
AGIPLAN Apoio Governamental à implantação do Plano Nacional de Sementes
AI Ato Institucional
AIA American International Association for Economic and Social Development
AID Associação Internacional de Desenvolvimento
AIEA Agência Internacional de Energia Atômica
ALN Ação Libertadora Nacional
ANDA Associação Nacional para Difusão de Adubos
APG/FE Associação dos Pós-Graduandos da Faculdade de Educação
ARD Associate Regional Director
ARENA Aliança Renovadora Nacional
ASI Assessoria de Segurança e Informações
BANESPA Banco do Estado de São Paulo
BID Banco Interamericano de Desenvolvimento
BM&F Bolsa de Mercadorias e Futuros
BNDE Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
CALQ Centro Acadêmico Luiz de Queiroz
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CASP Country Analisis and Strategy Paper
CATI Casa da Agricultura
CCC Comando de Caça aos Comunistas
CIE Centro de Informações do Exército
CIM Centro de Informações da Marinha
CEBRAP Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
CEDECA Centro de Ensino a Distância em Ciências Agrárias
CENA Centro de Energia Nuclear na Agricultura
CENIMAR Centro de Informações da Marinha
CEPAL Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
CEPEA Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada
CES Centro de Estudos do Solo
CESP Companhia Energética de São Paulo
CETESB Companhia Ambiental do Estado de São Paulo
CETREC Centro de Treinamento de Campinas
CIA Central Intelligence Agency
CIDA Comitê Interamericano de Desenvolvimento Agrícola
CISA Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica
CLT Consolidação das Leis do Trabalho
CNEN Comissão Nacional de Energia Nuclear
CNENA Centro Nacional de Energia Nuclear na Agricultura
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CODEVASF Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba
COPPE Instituto Alberto Luiz Coimbra
de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia
COPERSUCAR Cooperativa de Produtores de Cana-de-Açúcar, Açúcar e Álcool de São Paulo
COSUPI Comissão Supervisora dos Institutos
CPC Centro Popular de Cultura
CPI Comissão Parlamentar de Inquérito
DANIDA Danish International Development Agency
DCE Diretório Central dos Estudantes
DEOPS Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo
DOCEMADE Rio Doce Madeiras S. A.
DOI-CODI Destacamento de Operações de Informação-Centro de Operações de Defesa Interna
DOPS Departamento de Ordem Política e Social
DPF Delegacia de Polícia Federal
ELSP Escola Livre de Sociologia e Política
EMATER Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais
EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
EMBRATER Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão
ESALQ Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz
ETA Escritório Técnico de Agricultura
FAB Força Aérea Brasileira
FAO Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
FBCN Fundação Brasileira para Conservação da Natureza
FEALQ Fundação de Estudos Agrários Luiz de Queiroz
FESPSP Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo
FINEP Financiadora de Estudos e Projetos
FIPEC Fundo de Incentivo à Pesquisa Técnico Científica
FLH Frente de Defesa da Democracia Luiz Hirata
FRDSA Florestas Rio Doce S.A
FREDELQ Frente Democrática Luiz de Queiroz
FUMEP Fundação Municipal de Ensino
HISTEDBR Grupo de Estudos História, Sociedade e Educação no Brasil
IAA Instituto do Açúcar e do Álcool
IAC Instituto Agronômico de Campinas
IBAD Instituto Brasileiro de Ação Democrática
IBC Instituto Brasileiro do Café
IBEC International Basic Economy Corporation
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IBRA Instituto Brasileiro de Reforma Agrária
IHGP Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba
IICA Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INPA Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
INPE Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IPEF Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais
IPES Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais
IRI International Research Institute
ITA Instituto Tecnológico de Aeronáutica
ITAL Instituto de Tecnologia de Alimentos
JUC Juventude Universitária Católica
JURA Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação
MDB Movimento Democrático Brasileiro
MEC Ministério da Educação e Cultura
MIC Ministério da Indústria e Comércio
MST Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
OEA Organização dos Estados Americanos
ONU Organização das Nações Unidas
ORSTOM Office de la Recherche Scientifique et Technique Outre-Mer
OSU Ohio State University
PEAS Programa de Educação Agrícola Superior
PCB Partido Comunista Brasileiro
PCdoB Partido Comunista do Brasil
PDS Partido Democrático Social
PIB Produto Interno Bruto
PLANALSUCAR Programa Nacional de Melhoramento da Cana-de-Açúcar
PND Plano Nacional de Desenvolvimento
POLOP Organização Revolucionária Marxista – Política Operária
PRP Partido Republicano Paulista
PRODEPEF Programa de Desenvolvimento e Pesquisa Florestal
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PSB Partido Socialista Brasileiro
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
PUC-Campinas Pontifícia Universidade Católica de Campinas
SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
SIGA Seminário para Interação em Gestão Ambiental
SNI Serviço Nacional de Informações
SUDENE Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
SUDHEVEA Superintendência da Borracha
SUS Sistema Único de Saúde
SUVALE Superintendência do Vale do São Francisco
TULQ Teatro Universitário Luiz de Queiroz
UDN União Democrática Nacional
UEE União Estadual dos Estudantes
UEL Universidade Estadual de Londrina
UEM Universidade Estadual de Maringá
UFBA Universidade Federal da Bahia
UFES Universidade Federal do Espírito Santo
UFMA Universidade Federal do Maranhão
UFPB Universidade Federal da Paraíba
UFPR Universidade Federal do Paraná
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFSCAR Universidade Federal de São Carlos
UFV Universidade Federal de Viçosa
UNE União Nacional dos Estudantes
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
UNIMEP Universidade Metodista de Piracicaba
UREMG Universidade Rural do Estado de Minas Gerais
USDA United States Department of Agriculture
USAID United States Agency for International Development
USP Universidade de São Paulo
PREFÁCIO
A presente obra é o resultado de estudos investigativos sobre a história de uma instituição escolar e de pesquisa. A originária Escola Agrícola Prática Luiz de Queiroz
, fundada em 1901, destinada ao ensino secundário técnico, foi o objeto perscrutado. Na evolução da sua organização, o estabelecimento veio a ser denominado, posteriormente, de Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz
, a ESALQ-USP, identidade que permanece até os dias de hoje e como homenagem ao seu mentor, um proprietário de terras e empresário que viveu de 1849 a 1898. Localizada na cidade paulista de Piracicaba, com a qual tem íntima relação, a escola emergiu como fruto dos anseios e necessidades da classe ruralista paulista; teve seus primórdios marcados pela inciativa privada, mas acabou por ser absorvida pelo governo do estado de São Paulo e se constituiu em uma das unidades fundadoras da USP, nos anos 30 do século XX. É nacional e mundialmente referenciada pelo seu ensino formador de quadros profissionais e pelas pesquisas desenvolvidas no campo das ciências agrárias. Trata-se, pois, de uma escola centenária consolidada que, para além de toda a sua materialidade objetiva, está também presente em um vasto imaginário acadêmico e popular já merecedores de variados tipos de publicações que os contemplam.
Estudar a história de uma instituição escolar implica uma série de medidas que as ciências da história vêm constituindo e que necessitam de ser apropriadas pelo historiador como garantias básicas para um resultado de caráter científico. Não é o caso de se abordar aqui o processo pelo qual as ciências da história se erigiram como um campo científico no mundo acadêmico. Apenas se quer registrar que a intencionalidade que move o historiador é o seu propósito em fazer ciência, tanto quanto é trivial reafirmar que o compromisso último é com a verdade possível e, ao mesmo tempo, ciente de que a pretensão de neutralidade é apenas uma falácia. Também não é oportuno resgatar o debate presente nas últimas décadas, que sinalizam as configurações em que as ciências da história e a historiografia vêm se movendo. Seria tudo muito proveitoso, mas oneraria por demais o espaço a ser cumprido por um prefácio. Limito-me, portanto, a sinalizar o ângulo sob o qual o trabalho de Molina está situado: é um trabalho de história de uma instituição escolar, por opção do historiador, a ESALQ-USP.
Sabe-se que, dependendo dos recursos teórico-metodológicos do historiador, o estudo da história de uma instituição escolar converte-se, quase sempre, em um bom pretexto para algo um pouco mais abrangente; não porque o historiador assim o deseje por antecipação, mas sim pela natureza da construção do conhecimento histórico. É como aquela imagem, sempre reiterada, de que ao observador encantado pela beleza de uma árvore não lhe é recomendado perder a visão do bosque que a circunda. Nas ciências da história, o inventário de um objeto particular, sem colocá-lo no cenário geral no qual se encontra inserido, é um procedimento muito limitado, às vezes necessário, mas quase sempre de resultados empobrecidos. Logo, o estudo da história da ESALQ-USP exigiu de Molina muito mais que inventariar exaustivamente os arquivos e as fontes, um trabalho sempre árduo, que exige muita determinação e que ele realizou ao longo dos anos. Foi um mergulho profundo nos dados empíricos, aliás o lugar de onde vem a possibilidade do conhecimento, ao mesmo tempo que desenvolveu sua opção epistemológica. O resultado, ou seja, a narrativa construída pelo autor sobre a ESALQ-USP, apresentada agora ao público, é gratificante. Dado o seu caráter inédito, com base na força das evidências, nós podemos ter acesso a novos conhecimentos sobre a instituição estudada.
O estudo da história da ESALQ-USP acabou por revelar, além de grandes dimensões do interior e do cotidiano da própria instituição, aspectos substantivos do ensino superior do Brasil. Vejamos: o ensino superior, por essas terras invadidas pelos colonizadores europeus portugueses, se principia tão somente após a chegada da família real, portanto, três séculos após a conquista de ocupação europeia. Início tardio se comparado aos empreendimentos da mesma natureza desenvolvidos nos territórios americanos de colonização espanhola. A expansão quantitativa do ensino superior brasileiro aconteceu de forma modesta, após a independência e ao longo do período imperial, e esteve marcado por três características essenciais: foi sempre organizado em cursos ou faculdades isoladas; cumpriu o papel de formador de quadros necessários à burocracia estatal ou privada e, de forma acentuada, constituiu-se em um diferenciador simbólico entre as classes sociais. Respondendo às necessidades das elites econômicas e do Estado que as representava, o ensino superior manteve-se muito elitizado. O acesso a ele explicitava uma posição de classe numa sociedade em que a mão de obra se manteve escrava até o final do século XIX. O título genérico de doutor era valorizado como forte sinalizador da origem social do seu portador, um privilegiado na sociedade de profundas desigualdades.
Após a Proclamação da República, a evolução do ensino superior não se deu de forma muito diferente, embora as elites tenham zelado o suficiente pelos seus interesses. A República não aconteceu em decorrência de uma revolução, mas tão somente de um acerto pela hegemonia no poder de Estado, resolvido entre as frações da classe dominante e com alguma cooptação dos setores militares e classes médias. A manutenção dos privilégios das oligarquias, sem alterações maiores na estrutura social, foi a tônica até 1930, data que sinaliza novos golpes e acertos entre os poderosos travestidos, em parte da nossa historiografia, sob o rótulo da Revolução de 30. A originária ESALQ-USP surge sintomaticamente naquele contexto do republicanismo dos fins do século XIX e início do XX, respondendo aos anseios privados modernizadores da fortíssima classe ruralista paulista. Não demorou muito para que o estado de São Paulo assumisse o desenvolvimento do projeto educacional de uma fração de classe, encampando o interesse privado no âmbito das despesas públicas.
Nos anos 20 do século XX, o ensino superior no Brasil deu início à sua organização em forma de universidade. Como primeira universidade pública, realmente sucedida, considera-se a hoje denominada Universidade Federal do Rio de Janeiro, criada em 1920 como Universidade do Rio de Janeiro e que se materializou, apenas alguns anos depois, passando a ser chamada de Universidade do Brasil e, pretensamente, um modelo a ser seguido por todo o ensino superior. Com ela, herdeira de cursos superiores que vinham desde o Império, também se incrementava um tipo de universidade que surgia pela aglutinação ou justaposição de instituições, faculdades e cursos diversificados e antes isolados, mas agora reunidos sob o rótulo de universidade, embora isso pouco significasse para uma nova mentalidade efetivamente universitária, científica, acadêmica e organizacional. Entretanto, esse é mais um dos traços marcantes do desenvolvimento do ensino superior no Brasil: a expansão de novas universidades pela aglutinação de faculdades, cursos e centros diferenciados pré-existentes, provedores de um ensino especialista e profissionalizante com forte controle estatal.
Na versão paulista, o ensino superior em forma de universidade teve suas origens na criação da USP, em 1934. As elites paulistas, parte delas oriunda dos grupos fundadores da originária ESALQ, tiveram que arcar politicamente com as derrotas das autobatizadas Revolução de 1930 e Revolução Constitucionalista de 1932. O fim da República Velha e da política do café com leite, somado à derrota militar de 1932, abalou sensivelmente o poder da hegemonia paulista em nível nacional. Claro estava, novamente, que as elites nacionais faziam os acertos dos seus interesses às vezes discordantes, com golpes chamados de revolução e que, de fato, não alteravam de forma alguma a estrutura social vigente de uma sociedade já ativa, dependente, subalterna à ordem e à lógica capitalista mundial. Na busca da sua recuperação, as elites paulistas propuseram-se vários desafios, e entre eles, após constatar certo desleixo anterior, o empenho em criar condições de uma formação sólida para as classes hegemônicas, para os dirigentes que lhes deveriam representar, bem como para os profissionais especializados na condução da manutenção, e reprodução, da produção material geradora de capital.
Os anos 30 do século XX constituíram uma década que aglutinou forte debate sobre a educação e já iniciado nos anos de 1920. É mister apontar, como lembrança necessária, o embate entre católicos e pioneiros sobre o balanço que faziam a respeito das condições da educação no Brasil e os diferentes encaminhamentos que sugeriam. O emblemático Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova veio à tona em 1932 e parte dos seus mentores estavam diretamente relacionados ou pertenciam às elites paulistas.
As elites paulistas e seus intelectuais desejavam ter a sua própria universidade. Assim o fizeram com a criação da USP em 1934, que ostentava em seu brasão de armas, idealizado por José Wasth Rodrigues, a seguinte reveladora inscrição: Scientia Vinces, ou seja: Vencerás pela Ciência. Em 1933, empresários paulistas já haviam fundado a ELSP, que é hoje a FESPSP, ostensivamente dedicada a formar as elites administrativas segundo um modelo sociológico norte-americano. A USP, por sua vez, surgiu em 1934 (decreto n. 6.283/1934), da união de uma criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, concebida como elemento de integração da universidade, com as pré-existentes Escola Politécnica de São Paulo, Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz
, Faculdade de Medicina, Faculdade de Direito e Faculdade de Farmácia e Odontologia, Escola de Medicina Veterinária, Instituto de Ciências Econômicas e Comerciais, Escola de Belas Artes e Instituto de Educação, que era o antigo Instituto Caetano de Campos
. Prevalecia aqui uma inspiração mais espelhada no mundo acadêmico francês, com empenho em formar professores e especialistas em ciências básicas.
O estudo de Molina nos permite ver a ESALQ-USP no cenário mencionado, pois conseguimos perceber como a instituição resultou e respondeu ao conjunto de determinações que a configuraram e de que maneira reagiu a elas. O engajamento dela nos ditames dos interesses de uma fração de classe que se tornou cada vez mais hegemônica no campo do desenvolvimento econômico do país, se procurado aguçadamente pelo pesquisador, torna-se evidente pela força dos fatos. Se na ordem global se estabeleceu a vocação natural
do Brasil para se constituir em celeiro mundial de alimentos, numa espécie de arranjo de toda a produção capitalista, é mais ou menos óbvio que as instituições de ensino e pesquisas vinculadas à área sejam consideradas estratégicas. É surpreendente e contundente de como se deu