Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Âmago: Obscuro
Âmago: Obscuro
Âmago: Obscuro
E-book365 páginas4 horas

Âmago: Obscuro

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Em um submundo envolto por areia e tristeza, uma longa fila de almas aguarda seu julgamento final. Porém, o deus egípcio Anúbis está cansado de viver sempre o mesmo dia. Os vislumbres da linda garota do reino enevoado o fazem desejar mais, despertando algo novo.
Enquanto isso, a deusa nórdica Hela também decide sair do seu reino dos mortos para ajudar os vivos, encorajada a começar pelo homem vazio que atravessa aquele rio.
A descoberta de um terceiro e novo reino despertará perguntas que guardam dentro de si, acionadas por sua forma mortal que se torna parte deles a cada dia.
Serão eles capazes de compreender as emoções mortais que aflorarão?
Talvez o ódio de Anúbis descubra mais vida do que gostaria e o carinho que Hela carrega perceba que nem todos podem ser salvos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de set. de 2023
ISBN9786525048130
Âmago: Obscuro

Relacionado a Âmago

Ebooks relacionados

Ficção Geral para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Âmago

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Âmago - Raquel Romeu

    Prólogo

    Chego como uma flecha, minha visão focada diretamente no deus à minha frente, o deus pássaro. Meu tapa-olho não me permite ver o outro deus, mas sei quem o acompanha. Viro-me e vejo um rapaz segurando o pergaminho de anotações. Uso meu cajado para me apoiar. Estou ficando velho para essas coisas.

    — Finalmente resolveu aparecer, Odin — disse Zeus, no seu tom acusatório habitual.

    A barba dele é maior que a minha. Essa idealização de poder que existe no mundo dele por meio da barba parece um pouco desnecessária.

    — Estava resolvendo as questões que ficaram pendentes após toda essa bagunça que fizeram — respondo a acusação.

    Rá está sentado em seu trono de costume, que fica na divisão arenosa e mais iluminada da montanha, usando seus trajes egípcios cor de creme. Ficou observando minha entrada irritado e em silêncio.

    Sento-me no trono, a neve caindo indica que ainda estou em solo asgardiano. Já faz séculos desde que nós três nos encontramos na divisa entre mundos.

    — Eu não sei por que me convocaram para tal reunião, nossos mundos não estão ligados, a não ser por essa maldita rocha — novamente Zeus e sua mania de não querer problemas para si.

    — Três deuses terem fugido é algo que pode preocupar a todos, inclusive você, Zeus — Rá rebateu, com calma.

    Olho para o rapaz do pergaminho, usando seu traje de servo, veio com Zeus, já que está na região mais viva, com flores e árvores. Parece comum para esses deuses gregos estarem acompanhados por servos humanos.

    — Nenhum de meus deuses fugiu, acredito que eu não deva me preocupar com os erros que vocês dois cometem.

    Ele olha para mim, com seus olhos brancos exalando fúria e me desafiando a enfrentá-lo.

    — Não seja tão infantil, problemas com fugas são uma novidade. Nenhum deus jamais havia feito isso. Além disso, não sabemos em qual dos mundos eles estão. Pode acabar envolvendo você — consigo evitar minha frustração na voz.

    — Então, digam, quais deuses? — Zeus questiona.

    — Anúbis está desaparecido... Precisei enfrentar um caos ao ouvir de Osíris que o guia das almas havia sumido, ele acha que foi uma fuga, pois Anúbis levou um servo de confiança... — Rá parece aflito. — Nunca tive problemas com Anúbis, ele era excelente em sua função... Precisamos encontrá-lo.

    Zeus ri levemente.

    — E você, poderoso Odin? — pergunta em tom sarcástico, sempre procurando uma nova provocação.

    — Hela e Jörmungandr.

    — Hela e aquela serpente? Mas ela não é do tamanho do seu próprio mundo? Como conseguiu perdê-la? — Rá pergunta, olhando-me incrédulo. Seus olhos de falcão são engraçados para levar a sério.

    — Hela havia sido banida para Helheim. Parecia contente, me deu presentes como agradecimento, não entendo por que faria isso — deixo escapar minha preocupação. — Ela é perigosa, é a deusa da morte. Tenho certeza, pelo que pude ver através dos meus olhos, — gesticulo para meus fiéis vigias, Hugin e Munin, presentes de Hela que cuidam de todos os acontecimentos dos nove reinos — que ela levou a irmã na sua forma humanoide, não é uma serpente que procuramos.

    Os dois ficam pensativos. Sinto que eu também deveria me preocupar mais, mas sei que Loki encontrará suas filhas, mais cedo ou mais tarde.

    — Vamos abrir buscas por nossos reinos, todos devem ser revistados e verificados. Não podemos deixar que eles fujam de suas funções — Rá bate sua mão no braço do trono.

    — E nem que usem outro mundo como refúgio — acrescenta Zeus.

    Como podem achar que será fácil? São deuses. Fico feliz que Hela seja imortal apenas em Helheim. Como aconteceu isso? Por que fugiram no mesmo momento...?

    — Será que estão juntos? — pergunto sem perceber.

    Os dois me olham assustados. Não devem ter pensado nisso. Zeus passa a mão por sua barba enquanto Rá se levanta, preocupado.

    — Não é possível, eles não se conhecem, são mundos diferentes — Rá parece atordoado.

    — Eu sei. Acho difícil que Hela, sendo como é, tenha ido com alguém para fora de Helheim, mas eles terem feito isso ao mesmo tempo deixa algumas dúvidas.

    Zeus se levanta de seu trono, exibindo sua força nos músculos que ele deixa à mostra com sua túnica.

    — Vamos procurar e achar esses malditos, mas já deixo um aviso: se forem encontrados no meu mundo, serão executados lá.

    Rá olha para ele, irritado. Mantenho-me sentado, minha armadura é pesada e não tenho preocupação com aquelas duas, vou achar alguém para ficar no lugar daquelas aberrações de Loki.

    — Você está brincando? Eu preciso de Anúbis!

    Rá anda na direção de Zeus e quase cruza a fronteira entre mundos, o que poderia resultar em uma guerra. Por sorte, ele para na exata divisa, ainda em seu reino.

    — Reze para que ele não esteja no Olimpo, Pássaro. E você, Odin, deixe seus corvos, vigias, ou seja lá como os chama, longe do meu mundo.

    Zeus sai, com um estridente barulho de um raio colidindo com o chão, deixando claro que a reunião acaba aqui.

        1    

    Estou olhando para a grande fila à minha frente sem estar realmente atento à mulher irritante que não para um segundo de chorar. O que poderia fazer com que ela calasse a boca? Já morreu, não posso fazer nada.

    — Por favor, tenha piedade da minha alma — a mulher sem cabelos, nua, como todos, olha-me com lágrimas nos olhos.

    Eu a ignoro, como faço com todos. Ninguém está pronto para o julgamento, nunca. Todos repetem a mesma cena escandalosa de temer o que os espera. Por que não fizeram suas vidas miseráveis valer a pena?

    Pego a Pena da Verdade e a coloco na balança, com o coração mortal dela. Vamos ver se teremos piedade de sua alma. No fundo, já sei o resultado, mas gosto de fazer tudo lentamente com os mais irritantes. Se são culpados, devem sofrer antes mesmo de saber sua sentença.

    Sorrio ao ver o lado da balança onde depositei a pena subir. Acho que este coração imundo não fez o que deveria enquanto estava batendo.

    — Seu coração é pesado demais. Não a guiarei para o descanso junto a Osíris.

    Ela se desespera e se ajoelha, em súplica. Meu Deus, eu odeio isso. Você foi má, não posso fazer nada por você. Não nego que, no fundo, gosto de ver o sofrimento no olhar dos merecedores de tanta dor. No âmago dos olhos, na alma que eles evidenciam para mim, descubro que ela causou dor a muitas pessoas enquanto tinha sua vida egoísta.

    — Por favor, não, não!

    Empurro-a usando meu cajado.

    — Você irá com Ammit.

    Aquele leão com partes de crocodilo se aproxima, claramente com fome, como sempre.

    Ele pega o coração dela sem nenhuma preocupação. Assim como eu, ele sabe que ela merece e não estamos fazendo nada além do que é necessário. Não sou o deus da compaixão, por favor.

    O demônio se alimenta do coração enquanto a mulher grita de agonia. Isso não iria acabar bem, mas eu já estou de olho no próximo da fila, tudo porque quero que desta vez seja uma pessoa boa, quero cruzar o rio Nilo para levá-lo até Osíris e, bem, também quero vê-la.

    Sinto uma energia estranha quando cruzo o rio. Algumas vezes, vejo uma sombra atrás de uma cortina de névoa. É como se algo dentro de mim me guiasse para lá. Evito pensar nisso, é um sentimento estranho e desconfortável que desconheço. Talvez seja curiosidade. Nunca investiguei muito a fundo sobre como seria a curiosidade e seus benefícios.

    — Próximo — digo sem animação aparente na voz, porque simplesmente não existe animação em uma vida como esta.

    O demônio leão entra em seu covil com a mulher, agora ela é problema dele, ou solução, depende do ponto de vista.

    Um homem anda em minha direção. Vejo pacificidade nos olhos dele. Trabalho há milhões de anos nisso, sei a aparência dos culpados, mas, principalmente, reconheço os olhares inocentes.

    — Coração — exijo ainda sem emoção.

    Ele me entrega, tremendo. Talvez por eu ser um deus? Não, acredito que seja por minha face lembrar um Dobermann gigante que tem o direito de julgar a vida dele e o destino dela. Tenho esse direito? Eu apenas uso uma pena que faz todo o trabalho, não sou tão importante. Não depois da morte de Osíris. Aquele babaca roubou minha importância no reino dos mortos. Eu sou apenas visto como mau, enquanto ele é o grande misericordioso.

    Sou realmente mau, não gosto dessas pessoas. Poderia considerar toda essa fila como culpada e ir embora. Não me importaria com isso. Rá sim, ele viria até aqui com seus sermões sobre conduzir a fila com honestidade e não punir pessoas sem necessidade. Como se todos os humanos não tivessem feito algo errado.

    O pensamento de Rá descendo até aqui quase me faz sorrir. Esse miserável nunca teria a audácia de pisar no reino dos mortos para me dar um sermão. Não em meu domínio.

    Pena da Verdade e a balança novamente. Já sei onde isso vai dar e começo a ficar ansioso, mas sem transparecer qualquer emoção. Eu vou vê-la.

    A balança pende para o lado da pena, o que não gera surpresas para mim, mas, para ele, é literalmente o céu.

    — Você me acompanhará pelo Nilo até o descanso com o poderoso deus Osíris — ainda sem vida, abro caminho para ele passar.

    Ele passa por mim e aguarda. Fecho os portões, livrando-me por alguns momentos da fila que não para de crescer.

    Dirigimo-nos em silêncio até o barco dourado, esculpido no ouro. Sinto a alegria do velho homem com o rosto cheio de rugas. Alegria que nunca pertence a mim, sempre aos passageiros. Gostaria de um dia ter meu descanso final na vida após a morte e ser a pessoa aliviada que é apenas passageira neste barco. Eu estaria neste barco? Meu coração é puro? Não, eu seria comido por aquele demônio. Não estaria aqui.

    O barco segue a correnteza do rio. Estou acostumado com isso e nada me diverte nessa travessia, até, finalmente, ela aparecer.

    Não sei quem é aquela mulher, mas certamente não é daqui. Sou o único a cruzar este rio, logo, sou o único que sabe que existe um mundo diferente na cruzada deste rio.

    Aquele lugar só é visível quando ela está próxima às margens. É quando a névoa se dissipa que posso ver com mais atenção. As árvores mortas naquele declive montanhoso fazem o lugar parecer frio demais até mesmo para a flora. Vejo grama escura, como se lutasse para sobreviver. No fundo, posso ver uma grande construção, talvez um castelo, não consigo definir, a névoa ainda é muito densa naquela parte.

    Posso vê-la agora.

    Ela está usando um vestido longo, negro, sua expressão é vazia, tem o rosto de uma mulher linda, cabelos vermelhos com uma mecha branca presa em uma presilha ao lado do rosto, completamente coberta por um véu escuro. Tem um corpo gracioso, nunca vi alguém como ela antes, com curvas tão definidas. Consigo me imaginar segurando sua cintura e beijando seus lábios.

    Passo a língua pelo meu canino esquerdo, focando em outro ponto para não pensar mais nisso.

    Ela olha para mim e sinto que sorrio, como sempre faço. Ela parece sorrir também, um sorriso estranho, de alguém infeliz. Seus olhos são de um tom lilás, como ametistas brilhantes e encantadores, porém cansados. Ela olha para trás, como se alguém a chamasse, e perco todo o lugar de vista, perdendo-se em névoa como se nunca tivesse existido. Como uma miragem no deserto.

    Olho para a frente, focando no rio novamente. Por que eu pareço um idiota quando ela aparece na margem?

    — Quem é aquela mulher? — o homem pergunta, analisando minha expressão chateada.

    Morto intrometido.

    — Não a conheço — finjo ignorar.

    — Mas parece que gostaria de conhecê-la.

    Quase poderia rir disso, se soubesse fazê-lo.

    — Não gostaria. Foque na sua vida após a morte.

    A verdade é que nunca respondo um passageiro, essa deve ter sido a conversa mais longa que já tive com algum. Normalmente eles falam e falam e eu permaneço sempre em silêncio.

    — Acho que não precisamos conversar. Você é um deus e eu apenas um mero mortal que, inclusive, já morreu, mas eu percebo que você, mesmo como deus, não tem uma vida, um tempo para si mesmo. Não pensa em fugir daqui?

    Olho para ele, novamente riria disso.

    — Apenas faça silêncio na travessia do rio.

    Poderia matá-lo se isso não fosse impossível considerando as condições dele, embora a tortura ainda seja uma opção...

    Ele fica em silêncio, olhando para a frente.

    Eu poderia fugir? Para quê? O que eu buscaria?

    Balanço a cabeça. Não posso. Eu sou um deus que tem a função de guiar as almas.

    Paro o barco próximo ao grande portão brilhante. Saio e ajudo o pobre homem a sair. Quando me viro, consigo ver o brilho de toda a força de Osíris ao se aproximar para recepcionar sua nova alma.

    — Anúbis! O que você me trouxe? Mais uma boa pessoa para agraciar a vida após a morte? — Ele se aproxima do homem.

    O homem é recebido com um abraço do grande deus Osíris. Eu me afasto para não atrapalhar.

    Esse deus, o mais forte entre todos, está aqui, morto. Graças à fúria do próprio irmão, Seth, que obteve uma traição de sua esposa, Néftis, minha mãe. A traição foi uma revolta por Seth sempre ser um deus arrogante e egoísta, sempre furioso. Não acredito que a traição tenha sido a melhor saída, mas, em vista do resultado, não posso reclamar. Eu sou o resultado, pelo que minha mãe diz. Resultado de uma traição, uma vergonha. Por minha causa, o mais forte dos deuses foi assassinado. Não sei como o Grande Rá não me eliminou, talvez porque meus trabalhos sejam úteis.

    Olho para ele. Ele está sorrindo para aquele homem, deixando-o ainda mais feliz. Será que ao menos sabe que é meu pai? Como poderia? Ninguém imaginaria que o cão-guia aqui seria filho de um deus tão poderoso. Não sou como seu filho Hórus, seu grande orgulho, o deus que o vingou e matou Seth. Nem ao menos sei qual a força de meus poderes.

    Ele entrega vestes para o homem, que começa a vesti-las e, ao olhar para mim, lança-me um sorriso. Sei que seria diferente se ele soubesse. Talvez me culpasse por sua morte.

    — Muito obrigado por trazê-lo em segurança, Anúbis. Você é ótimo no que faz. — Ele guia o homem e me lança um sorriso de despedida, com seu peito largo usando suas roupas de faraó. Mumificado por mim.

    Apenas inclino-me levemente, em um sinal de reverência. Não gosto de palavras. São vazias.

    Viro-me para sair e entro no barco. Não olho para trás, não quero mais ver Osíris e toda a compaixão dele pelas novas almas.

    Sigo meu percurso de volta. Totalmente em silêncio. O outro lado do rio está vazio. Ela não está lá.

    Eu deveria fugir? Se eu soubesse o que preciso encontrar... Talvez aquela mulher? Não. Isso seria ridículo. Deveria fugir sozinho e me livrar desse caos em que me encontro imerso. Não quero mais viver preso sem saber do que sou capaz. Eu sou um deus e, se existem lugares como o mundo dela, talvez eu possa ir até lá. Posso encontrar informações sobre outros lugares e trazer até nosso mundo. Usar meu conhecimento como fonte de superioridade. Tenho que ser o melhor em alguma coisa. Não quero ser apenas o que sou. Quero ir além disso.

    Quero ser algo mais do que apenas o juiz desses mortais, quero ser reconhecido por outros valores e buscar mais informações sobre um lugar desconhecido pode me dar isso.

    Danço com a língua em volta do canino esquerdo enquanto decido que decisão deveria tomar.

    Suspiro com a ideia. Vou fazer isso.

    Paro o barco e desço apressadamente, viro para a direita até meu trono empoeirado, não costumo ficar nele. Subo o primeiro degrau e chamo meu servo mais confiável. Se quero sair, essa notícia não pode chegar aos ouvidos de mais ninguém.

    — Ékimet, venha cá. — Sento-me no trono.

    Ékimet se aproxima com cuidado. Ele é meu servo há séculos, sei que posso contar com ele para tudo.

    Ele chega até mim, seu olhar está baixo, oprimido. Ele usa apenas uma calça branca e uma túnica na cabeça.

    — Mestre Anúbis, o que deseja?

    — Tenho planos novos, confidenciais. Preciso do mapa. — Nunca sou delicado.

    Ele sai com agilidade e sinto que está ansioso para descobrir do que se trata esse novo plano. Que se dane o que ele pensa.

    Aguardo olhando para a fila que está distante, além dos portões. Não é mais problema meu. Rá poderá achar alguém melhor enquanto eu estiver fora. Consigo imaginar quem se candidataria a vaga...

    Ékimet volta correndo, tropeçando nos próprios pés, tirando-me dos pensamentos, e se curva diante de mim. A sensação de poder é radiante, sinto-me vivo com isso.

    — Aqui está, mestre. O mapa do submundo. — Ele estende o mapa.

    O mapa tem várias divisões da longa estrada que essa fila faz, mas atento ao rio Nilo e ao lado que não tem nada escrito ou detalhado. É onde ela vive. Não posso ir para lá. Não sei o que sinto sobre aquele lugar ou sobre o que aquela mulher faz comigo, porém, tenho certeza de que não quero explorar isso. Então eu vejo. Uma terceira área no mesmo rio, sem detalhamento. É ali, provavelmente outro mundo.

    Estou em pé em um salto. Não tenho tempo a perder. Meu cajado está acomodado ao lado do trono, onde sempre fica quando estou aqui. Ele é fundamental para mim, até onde sei, todo meu poder fica mais intenso com a ajuda dele. Eu o pego para me acompanhar. É a única companhia de que preciso, a única de que sempre precisei.

    Sigo em direção ao barco e um servo se coloca à minha frente.

    — Mestre, temos uma rebelião mais ao fundo da fila.

    Humanos e sua impaciência. Tudo bem, acho que múmias são mais quietas do que malditos mortais atrevidos.

    — Iniciem o embalsamento deles, isso irá deixá-los mais calmos.

    Lembro-me de quando Osíris chegou, eu mesmo o embalsamei e preparei seu corpo. O corpo de meu próprio pai. A primeira múmia já criada, eu a fiz. Foi glorioso.

    O servo sai, avisando os outros para que sigam minhas ordens. Isso vai ocupar o tempo de todos eles para que não reparem em minha ausência tão cedo. O processo da mumificação é um ritual lento e demorado.

    Viro-me e vejo Ékimet a meu lado.

    — O que pensa que está fazendo, servo? — Ergo meus ombros.

    O servo se curva rapidamente.

    — Mestre, sou completamente fiel ao senhor, peço que me leve junto para continuar dando meus devidos cuidados ao grande deus Anúbis — sua voz é quase um desespero.

    Levar um servo poderia ser uma ideia terrível.

    — Não. — Viro-me em direção ao rio.

    Ando até o barco e olho para a direção nunca antes explorada. A corrente do rio corre para o outro lado. É claro que ninguém teria pensado nisso. Principalmente porque sou o único desafortunado a viver aqui.

    Ékimet ainda está ajoelhado atrás de mim. Eu sinto isso. Ele não me entregaria se ficasse para trás, conhece as consequências.

    — Venha, servo — digo.

    Não sei o porquê exatamente. Espero que ele mantenha sua excelência sendo um bom servo. Isso pode acabar sendo algum tipo de recompensa por seu comportamento.

    Ele assente rapidamente, puxando o barco. Entro no barco com ele e o guio contra a corrente. Uso meu cajado para impedir que a água consiga mudar nossa direção e avanço cada vez mais contra o desconhecido.

    A correnteza aumenta e a água força o barco. Quase caio. Merda. Isso é mais difícil do que pensei. Uso o meu cajado novamente, forçando-o nas águas. A luz laranja que flui de meu cajado para as águas cria uma claridade que pode vir a ser indesejada se for vista.

    Vejo o pavor no rosto de Ékimet e vejo aumentar ainda mais quando olha para trás de mim.

    — Mestre! Osíris foi a seu encontro, o vejo na frente dos portões.

    Osíris, por que logo agora? Ele deve ter se teletransportado até lá, nunca usaria um barco, como eu.

    Concentro-me na fuga. Osíris nunca foi até mim. Agora não me importo com o que ele deseja, embora vá constatar que não estou lá e que fugi.

    Meu cajado sustenta nossa viagem por um tempo, com nossa navegação balançando sem parar, jogando a água do Nilo em meu rosto. Preciso usar muita força para que o rio não decida o caminho por mim. Essa força é anormal.

    Uma corrente mais forte surge de repente e eu preciso emanar ainda mais força para manter o barco. Uma onda surge e sei que o barco não sobreviverá a essa jornada. Desisto de forçar e deixo que o barco vire, derrubando-nos na água. Rapidamente emerjo das águas e, com a levitação de meu cajado, levanto o corpo de Ékimet para que não se afogue.

    Este lugar parece uma caverna. Tenho certeza de que saí daquele mundo.

    Vou até a terra firme e olho para os lados. De longe vejo um homem com um capuz cobrindo todo o corpo, as costas curvadas e um remo nas mãos, está dentro de um barco velho. Deixo Ékimet no chão e sigo em direção àquele vulto sombrio.

    — Onde estou? — falo enquanto me aproximo.

    O que eu poderia dizer? Não deveria nem estar aqui.

    O vulto vira para mim. Não consigo ver seu rosto pelo capuz.

    — Moedas ao barqueiro para a viagem — diz ele, com uma voz sem vida, parecida com a minha.

    — Viagem? Para onde? — insisto para descobrir algo.

    — Para o Inferno, onde o cão de três cabeças aguarda. Esse é o rio Aqueronte. Sou o Caronte e você, quem é?

    Rio Aqueronte? Cão de três cabeças? O que estou dizendo? Eu mesmo pareço um cachorro.

    — Me chamo... — Merda, quem eu sou? Anúbis, o deus dos mortos? Não neste mundo. — Eu...

    Ele quase ri, mas isso mais parece um grito sufocado.

    — Deveria saber seu próprio nome antes de ir ao mundo dos vivos. Você não virá comigo. Você e aquele homem estão vivos. O lugar de vocês não é aqui.

    Com um estalar de dedos, tudo fica preto.

    Abro os olhos, atordoado.

    Como aquele homem conseguiu me tirar de lá tão facilmente?

    Que lugar estranho. Vejo muitas árvores e tudo aqui é muito branco. Vejo altas colunas e bancos nos cantos, como um grande jardim, ou como eu imagino que seja um. Fico maravilhado. É como a vida após a morte. Escuto pássaros cantando e sei que não é apenas Rá falando coisas que eu ignoro. É bem diferente do lugar onde o barqueiro estava.

    — Mestre, talvez devesse mudar sua forma para algo mais... humano.

    Olho para Ékimet. Ele tem razão, não quero chamar atenção aqui.

    Fecho os olhos e me concentro em um disfarce. Tento pensar em alguém... Talvez alguém da travessia, alguém que eu gostaria de ser... Quem eu seria se fosse humano? Eu nunca seria um humano. Essa ideia é inaceitável. Posso ser desprezível de meu próprio jeito. Não quero ter ligação com mortais. Então não tenho outra opção além de revelar minha própria forma humana, sei que Rá a conhece, mas vou arriscar.

    — Funcionou! — Ékimet não esconde o espanto e se afasta, colocando as mãos na frente da boca.

    Sinto-me mais baixo do que antes. Olho para baixo e vejo minhas mãos, menores, e meu cajado, que se tornou uma bengala elegante.

    — Então aí estão vocês! — Uma mulher extremamente linda se dirige até nós, com as mãos na cintura, tentando forçar uma expressão zangada. Ela usa uma roupa reveladora com os seios quase à mostra e uma coroa que prende seus cabelos loiros.

    — Vamos, garotos. Quero todos reunidos para o chá. Que roupas são essas? Vou entregar novas a vocês.

    Ela nos segura, cada mão em um de nossos braços.

    Que diabos é essa mulher e por que ela acha que pode me tratar assim? Eu poderia... Não, eu não posso reagir agora, não assim.

    Vejo em seus olhos o poder da sedução. Ela é uma deusa. Será bom se eu conseguir um lugar para ficar por meio dela.

    — Qual o nome de vocês?

    Que nome teria um mortal? Preciso lembrar de alguém.

    — Ékimet

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1