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O Cálice Mortal
O Cálice Mortal
O Cálice Mortal
E-book468 páginas6 horas

O Cálice Mortal

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Sobre este e-book

No último volume da trilogia, a protagonista Layla, ainda atormentada pela dura passagem pelo Império Subterrâneo, depara-se com novos desafios para salvar Jolebon. Ela dependerá de muitos fatores para encontrar a única coisa que poderá livrar o mundo da destruição. Nessa busca, ao longo de 336 páginas, irá se confrontar com muitos seres desconhecidos, em mais uma intrigante aventura.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de fev. de 2021
ISBN9786550790745
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    O Cálice Mortal - Rafaela S. Polanczyk

    Capítulo 1

    Acordei assustada, o coração batendo forte. Olhei ao redor até perceber que estava em meu quarto. Segura.

    A cada noite que se passava, mais medo eu começava a ter daquela mulher. Em parte por causa das memórias terríveis que o mundo dos mortos me deu, em parte porque ela poderia voltar atrás de Raul ou de mim. Clatéia... Eu começava a tremer só de ouvir o seu nome.

    Minha mente gritava a todo momento: Ela está me perseguindo. Está atrás de mim. De algum jeito ficou preso em mim que ela iria se vingar. Tinha certeza. Isso estava me fazendo ficar louca. E eu precisava me concentrar em outras coisas. Coisas piores. Demônios.

    Desde o dia em que acordei, eu tinha pesadelos com aquela bruxa. Ela era tão linda, mas mortal. A frieza do rosto ileso dela me assustava. O efeito do remédio que ela me deu, para me manter desacordada enquanto estava no Império Subterrâneo, já tinha praticamente passado, mas as noites não deixavam de ser difíceis, e dores de cabeça e tonturas ainda eram comuns. Mas depois das descobertas sobre os demônios na semana anterior, os pesadelos ficaram piores.

    Virei para o lado e encarei a grande janela. Meu sono naquela noite estava meio inquieto. Ao mesmo tempo em que me sentia um pouco febril, tinha momentos em que dormia muito bem. Eram poucas as coisas que me faziam ficar mais calma para voltar a dormir, e perambular era uma delas.

    Saí cuidadosamente da cama, com medo de me deparar com algum intruso. Andava sempre alerta nos últimos dias.

    Parecia que sempre haveria algum ser estranho atrás de mim, querendo me sequestrar. Ou pior: os planos misteriosos do Conselho, que com certeza existiam, mas que continuariam secretos para qualquer um que fosse próximo ao rei e a mim.

    Andei pelo quarto para me acalmar e tirar o rosto de Clatéia da minha cabeça. Parei em frente à cômoda com a foto de Jona e a Edelvi. Peguei a flor com cuidado, alisando suas pétalas e respirando fundo.

    Peguei um roupão, com as mãos tremendo, e saí quase correndo do meu quarto. Vi que o guarda em frente à minha porta me olhou com preocupação; ele sempre me olhava com pena desde que voltei do submundo. E ele sempre me seguia silenciosamente, provavelmente por ordens superiores.

    Abri a porta do quarto de Raul, já sabendo que o encontraria acordado, sentado na beirada da cama, e o abracei com força.

    — Pesadelos de novo? — ele perguntou preocupado.

    Eu sabia que ele também passava por uma situação muito complicada e estressante. Não só porque ele se sentia ainda assustado com tudo que aconteceu no mundo dos mortos, mas também porque ele se sentia desesperado para encontrar uma boa solução para evitar uma guerra com demônios que viviam em uma ilha distante.

    Eu apenas concordei com a cabeça, esfregando meu cabelo contra sua blusa. Ele colocou uma mão gentilmente em cima das minhas costas.

    — Eu não sei se tenho mais medo de dormir ou de ficar acordada — disse fracamente depois de um tempo. — Quero dizer, você não vai mandar pessoas para morrerem devoradas naquela ilha, e muito menos vai entrar em guerra contra seres que provavelmente são muito mais fortes que nós.

    — Não pense nisso. Deixe que eu resolva isso tudo.

    Balancei a cabeça, discordando do que ele pedia. Ele precisava da minha ajuda, e eu não ia recuar só porque ele não me queria com medo. O medo é o que nos faz seguir em frente lutando pelo que é nosso. Eu ia usar meu medo para resolver os problemas que estavam aparecendo.

    Ele então deitou na cama, e eu deitei ao seu lado, ainda o abraçando. Custei a parar de tremer e voltei para os meus aposentos assim que me senti preparada para enfrentar a noite. Eu estava ciente de que tinha que parar de parecer fraca. Mas era tão difícil nas condições em que me encontrava.

    Eu tentava me controlar o máximo possível para não ter que recorrer a Kaila, Raul ou Jona para me manter calma. Se o Conselho visse que eu tinha esse ponto fraco, com certeza tentariam usar isso contra mim de algum jeito. Pelo menos era o que parecia para mim, já que tudo que faziam era motivo de desconfiança.

    Deitei na cama e puxei os cobertores até a cabeça, voltando a dormir meu sono inquieto.

    ***

    Acordei de um pesadelo suando. Graças aos deuses já tinha amanhecido. O café já deveria estar pronto. Puxei os cobertores e saí da cama em um pulo. Coloquei o primeiro vestido simples que vi no guarda-roupas, então desci para a copa.

    Para a minha felicidade, ou não, encontrei somente Darkus lendo um pergaminho enquanto comia uma rosca.

    — Bom dia — ele disse sem levantar os olhos. — Você ficou ontem descansando o dia inteiro. Finalmente acordou. — Ele então me olhou rapidamente. — Está com pressa pra quê? Encontrar seu namorado?

    Senti minhas bochechas corarem e abaixei minha cabeça, pegando uma xícara de porcelana em uma das pontas da longa mesa para disfarçar meu incômodo.

    — Vamos lá. Não finja que não sei! — Ele riu de maneira quase debochada. — Acha que não reparo no jeito que os dois se olham? Semana passada, quando discutimos na biblioteca sobre as descobertas de seu pai, vocês se olharam mais do que imaginam. Cheguei até a entender o ciúme de Jona e o porquê dele ficar tão angustiado por você. — Ele deu uma pausa e me encarou, agora sério, falando como um líder de exército. — Não se preocupe, eu aprovo. Esse relacionamento vai ser bom para a população. Um modo de atrair atenção à monarquia e de unir o povo. Acredite... prevejo momentos de dificuldades se não conseguirmos amenizar as divergências entre as regiões de Jolebon.

    Ele me encarou com a sobrancelha erguida. Eu o olhei de volta.

    — Eu entendo como essa relação entre nós pode ser tão importante politicamente falando e...

    — Ainda mais que você é tão conhecida e querida aqui em Jolebon, enquanto Raul nem foi criado aqui — ele interrompeu. — Sem contar que antes Jolebon tinha um motivo para se unir: lutar contra Perversus. Mas agora que não tem mais objetivo em comum...

    — Eu estava falando. — Encarei-o exigindo seu silêncio. — Não se esqueça de que amo Raul, independentemente de ser bom para Jolebon ou não.

    — Não esquecerei. Mas não se esqueça, você, de que amando ele ou não, agora não há mais escolha. Terá que ficar com Raul, ou pelo menos fingir que está com ele, pela política.

    — Não preciso fingir.

    — Talvez não agora. Espero que esse relacionamento sem brigas e discordâncias dure bastante para isso.

    Senti minha boca ficar seca. Não pretendia ter muitas discussões com Raul, contanto que ele cumprisse seu acordo de parar de me proteger. Eu sabia me defender melhor que ele, e me dava raiva o fato de ele me ver como alguém frágil.

    Suspirei. Darkus percebeu minha irritação. Comi meu mingau em colheradas rápidas e bruscas.

    — Acordou irritada hoje... Você sabe que deveria ter acordado mais cedo para o seu trabalho de princesa

    — Não sou da realeza.

    — Meu bem! — Ele riu. — Você é, querendo ou não. Se quiser que o povo te respeite e admire, mostre sua autoridade. Ou seja, mostre que realmente é princesa e que manda.

    — Eu mando em todo mundo sendo ou não princesa. É meramente um título. Não preciso dele para estabelecer minha autoridade.

    Darkus riu.

    — Está certo. Teste o Conselho e vamos descobrir quem manda.

    Ele me encarou muito sério. Essa discussão estava estragando minha manhã.

    — Preciso encontrar Raul — disse, colocando a tigela na mesa e me levantando.

    — Só não fiquem grudados demais. Você vai distrair seu soberano de suas obrigações. E vai distrair a si mesma.

    Ele estava realmente falando sério nessa discussão. Levantou uma sobrancelha, tirando uma mecha de cabelo oleoso dos olhos.

    — Não se esqueça de que sou do Conselho e chefe do exército. Seria bom seguir meus... bem... conselhos.

    — E eu sou a princesa, não sou? Não aceito ordens dos meus subordinados.

    Estava já virando de costas para ele, querendo encerrar o assunto.

    — Sou seu subordinado apenas na sua imaginação. Você sabe que o Conselho é superior.

    Saí da copa em passos rápidos, tentando o máximo possível não demonstrar minha raiva. Ouvi Darkus começar a rir, divertido. Soprei uma mecha do meu cabelo, com raiva.

    — Layla, você me mata de rir. E me dá um trabalho e tanto... — Ouvi-o grunhir enquanto subia as escadas.

    Então escutei o tilintar de duas xícaras se espatifando no chão. Eu não ia limpar por ele.

    ***

    Lavei o rosto e coloquei um vestido que Alice deixou em cima da minha cama enquanto estava na copa. O que eu estava usando antes era bem mais confortável. Encarei-me no espelho. Ainda estava bem magra. As olheiras estavam desaparecendo. Eu já estava com bastante força muscular. Bufei só de lembrar que logo, logo, teria que recomeçar meu treino. Com Darkus.

    Alisei o vestido verde e branco que ia até o chão. Alice gostava dos significados das cores: verde para saúde e branco para pureza e paz. Agora era só me conformar com o tamanho dele.

    Passei as mãos no meu cabelo para tentar arrumá-lo. Os cachos estavam bagunçados, e eu estava ansiosa demais para ver Raul. Não teria paciência para arrumá-los. Então prendi os fios dourados em um rabo com a ajuda de um laço.

    Peguei alguns livros no criado-mudo e encarei as fotos do meu pai e de Jona. Jona não tinha aparecido nos últimos dias. Não sabia de nada que descobrimos na biblioteca. Suspirei, pensando em onde possivelmente ele teria se metido. Então fui andando calmamente em direção ao escritório de Raul, onde eu sabia que meu rei me aguardava.

    Meu coração pulava a cada passo, doido para encontrá-lo. Era estranho me sentir assim e ao mesmo tempo saber que ele estava logo ali. Na última vez que fiquei doida para encontrá-lo, ele estava no mundo dos mortos, e eu tinha um motivo para estar ansiosa. Agora, eu ficava ansiosa para vê-lo o tempo inteiro.

    Passei pela porta dupla do escritório e parei, encostada no batente da porta para observar Raul trabalhando na mesa escura de mogno.

    Era possível ver alguns desenhos embaixo dos livros, desenhos de Raul. Vários deles, eu sabia, eram de mim. Ficavam presos embaixo do vidro da mesa.

    Desejei que ele continuasse daquele jeito, trabalhando de maneira sensata, e não passando noites em branco estudando mapas e documentos. Era muito melhor quando ele pedia nossa ajuda, ou parava alguns minutos para elaborar algum desenho e descansar a cabeça e se distrair um pouco. Tudo rendia muito mais quando ele tinha uma equipe de confiança o ajudando.

    Parei ao seu lado, atrás da mesa, e coloquei uma mão em seu ombro, observando o que ele estava lendo.

    — Bom dia, princesa — ele disse, marcando a parte em que tinha parado de ler e fechando o livro. Com certeza queria me irritar.

    Coloquei meus livros em cima da mesa e o abracei por trás.

    — Bom dia.

    Ele sorriu e puxou o laço que prendia meu rabo.

    — Prefiro o cabelo solto — ele disse. — Cresceu muito nos últimos meses.

    Peguei a fita de suas mãos e comecei a brincar com ela.

    — O que anda fazendo? — perguntei, já sabendo a resposta e reparando que o livro que ele lia era do meu pai. — Descobriu alguma coisa?

    — Não.

    Puxei uma cadeira e me sentei ao seu lado, inclinando para perto do livro.

    — O que sabemos até agora?

    — Quer que eu diga tudo?

    — Sim.

    Raul suspirou e se inclinou contra o encosto da cadeira. Eu fazia ele repetir a história todos os dias. Para ter certeza de que nunca esquecíamos de pensar em nada.

    — Antes dos deuses criarem os humanos, eles criaram os demônios. São criaturas incrivelmente fortes e que viveram em uma ilha por um bom tempo. Mas os demônios estavam se fortalecendo demais e queriam exterminar os deuses e dominar Jolebon. Queriam principalmente comida, pois somente os animais na ilha não eram suficientes para alimentá-los. Então os deuses nos criaram como alimento.

    — Sim. E nos fizeram racionais que nem eles.

    — Eu também não entendia o porquê, mas pensei muito nisso nos últimos dias. Ao mesmo tempo em que eles criaram um alimento para os demônios, criaram um alimento para o tédio deles.

    — Somos então alimento de demônios e diversão dos deuses? — Eu ri com aquilo.

    — Somos. — Raul riu também. — Voltando à história. Desde sempre, navios com pessoas eram exportados uma vez por mês para alimentar esses demônios. Isso é o que indicam os registros que encontrei pelo castelo de Perkins. Por mais que os reis de Jolebon fossem adorados, o que facilitou a ascensão de Perversus para virar imperador foi a promessa de acabar com as exportações de pessoas. Parece que as pessoas sabiam dos demônios e por isso muitos apoiaram a ascensão política de Perversus, mesmo sabendo das crueldades que ele era capaz. Quando Clatéia o ofereceu um segundo coração e mais poderes, ele facilmente depôs o imperador.

    — As pessoas preferiam ficar do lado de um homem muito egoísta e corrupto por medo dos demônios...

    — Sim. Acho que o ser humano é capaz de fazer qualquer coisa para minimizar seus medos.

    — Interessante conectar toda a história assim. — Uma voz veio da porta. Kaila estava lá, nos observando atentamente. Ela entrou e se sentou na cadeira em frente à escrivaninha de mogno. — Um pedacinho veio de livros, outro veio do que vimos na caverna do coração de Albert Sarabin, outro pedacinho já sabíamos. E quando tudo fica junto, encaixa como um quebra-cabeça.

    Olhei para Raul, pedindo que continuasse.

    — Sim. Fiquei passando essa história na minha cabeça. Depois que Perversus ganhou poder, todos pensavam que essas exportações iriam acabar. Na verdade, ele só as manteve em segredo. Inicialmente, ele exportava as pessoas que, para ele, eram consideradas ameaças ao governo. Provavelmente exterminando a intelectualidade de Jolebon. Acabando com o povo que sabia. Depois ele foi virando uma pessoa autoritária e bruta, e sequestrava pessoas dos vilarejos. Ele tinha medo dos demônios. Se era capaz de continuar com essas exportações, era porque não tinha uma solução e temia o que poderia acontecer. Pelo que posso imaginar, devem tê-lo ameaçado de guerra, já que nenhum demônio quer perder seu alimento. Se os próprios deuses ficaram com medo de ter guerra contra essas criaturas, imagina o que seria de nós, meros humanos, se realmente houvesse uma guerra? Perversus foi obrigado a continuar com as exportações. Era isso ou perder todo seu reino com uma guerra horrível. Imagino que a escolha era fácil.

    O silêncio preencheu o escritório. Sabia que todos pensavam a mesma coisa.

    — Raul, o que você vai fazer? Os demônios ainda existem e ainda querem alimento. Vai começar a exportar também?

    Raul fitou o chão.

    — Não pensei nisso ainda. Eu não exportei nada ainda, nem pretendo. Mas imagino que, por isso, uma guerra já está declarada.

    Franzi. Raul tinha razão. Fazia um ano que os demônios não recebiam alimento. Com certeza uma guerra estava declarada, apesar de ninguém ter falado nada.

    — Clatéia tem medo dos demônios?

    — Com certeza. Eles são ameaças aos deuses. São imortais e poderosos como eles.

    — Então, quando ela te sequestrou, as intenções dela de chegar ao poder... tudo deve ter sido para manter as exportações, para manter os demônios quietos.

    — Sim. Mas não podemos ser ingênuos quando se trata de deuses, Kaila. Assim como os demônios, ela também quer poder. Não sabemos o que ela pode fazer. Talvez nesse ponto em que nos encontramos, em que o último plano dela falhou, ela contorne esse medo e se alie aos demônios em busca de poder. Para alguém imortal, e para muitos mortais, é melhor ficar no lado vencedor. E nós sabemos qual é o lado vencedor se uma guerra realmente acontecer.

    Mais silêncio.

    — Vocês precisam ter mais fé nos seus deuses e em Jolebon — uma voz grave disse do meio das estantes.

    Olhamos para o local de onde ela vinha, e vimos surgir um homem muito forte, de cabelos ruivos e olhos verdes. Ele estava sem as armas que normalmente portava, e parecia estranho vê-lo ali em uma biblioteca.

    — Arqueiro — eu disse, reconhecendo sua presença. — Pelo menos alguém aqui é positivo. — Olhei para o rei. — Raul, você não pode deixar isso acontecer — eu disse me referindo a uma possível guerra. — Seríamos chacinados.

    — Você quer que eu exporte? — ele perguntou desafiador.

    — Não!

    — Foi o que eu pensei...

    — E o que fazemos? — Kaila perguntou, aterrorizada com o que suspeitávamos.

    — Não sei. É a mesma pergunta que fazemos todos os dias. Vou terminar a história. Já tenho algo em mente. Não sei se vai dar certo.

    — Você devia pelo menos nos contar um pouco do que tem em mente — o Arqueiro Cinamusta sugeriu. — Respeito muito suas decisões, mas eu faço questão de ajudar com o que eu puder. Conheço muito sobre guerras passadas e sobre táticas que os deuses gostam de usar. Isso pode ser útil para vocês.

    Concordei silenciosamente com o Arqueiro, lançando um olhar de esperança para Raul. Contudo, ele não parecia tão confiante com o que tinha em mente e preferiu ficar calado.

    — Então, depois que derrotamos Perversus e você assumiu o trono, você é sequestrado — eu disse, retomando o raciocínio.

    — Pulou vários anos aí — Raul apontou.

    — Não tem muito que dizer. Foram anos de torturas, vilas queimadas e coisas ruins.

    — Anos em que todos estavam unidos contra um inimigo em comum. Hoje vemos que as divergências entre as cidades e vilas são muitas. Algumas até possuem um vocabulário e gramática diferentes. As cidades do outro lado do deserto são de praticamente outra cultura. O que eu tenho de relatos de pessoas querendo separar o império você nem acreditaria. Precisamos uni-lo novamente se queremos acabar com os demônios.

    — Darkus diz a mesma coisa. Enquanto você estava perdido e te procurávamos, costumávamos falar que estávamos em uma visita oficial nas vilas. Era uma maneira de manter as pessoas ligadas à monarquia.

    — Uma boa maneira. Mas, ainda assim, é algo temporário. Podemos discutir isso mais tarde. Vou terminar de te contar a história. Vocês foram me salvar no Império Subterrâneo. Descobrimos que Adelaide, prima de Suleste, tinha denunciado algumas coisas sobre nós. Também foi lá que descobrimos mais sobre as Pedras da Morte. Elas representam os quatro elementos. Nós, inclusive, as usamos sem saber para acabar com os espíritos da natureza revoltados que guardavam o esconderijo do coração de Perversus. As pedras da morte têm muito poder. E para acabar com um deus, você precisa das quatro pedras e de sangue de amor verdadeiro.

    — Parece até coisa de fantasia — Kaila comentou. — Deuses inventam cada coisa mágica estranha...

    Raul encarou a irmã.

    — A Magia é algo que está além dos deuses, Kaila. Não são eles os donos da Magia. Ela simplesmente existe, e nós a decodificamos em processos que exigem coisas estranhas.

    — Você aprendeu muito de Magia enquanto estava lá — comentei.

    Raul nunca teve muita habilidade com Magia. Usava só quando era conveniente. Teve que aprender muita coisa muito rápido para derrotar Perversus.

    — Foi muito tempo com a companhia de apenas Ptelus. Ele me ensinou tanta coisa. Um dia ainda vou te contar.

    — Então, as Pedras da Morte... — Kaila interrompeu minha conversa com Raul.

    — Podem ser a única solução — o Arqueiro concordou.

    — E tem o Cálice da Esperança de Ptelus. Nos seus momentos com o deus, ele não te contou nada do Cálice?

    — Não. Mas eu sei, eu sinto, que o Cálice tem a mesma função do ritual de Clatéia. Ele apenas já contém as quatro pedras e um lugar para colocar o sangue do amor verdadeiro.

    — Mas pensei que o Cálice pudesse ser usado para qualquer desejo. Não só em rituais para matar alguém com muita energia.

    — Eu não sei como funciona o Cálice — Raul disse e então olhou para o Arqueiro, que também parecia não saber responder sobre o Cálice. — Ninguém nunca soube. Só o imperador Perkins, quando o recebeu e o escondeu. Pode ser que o sangue seja preciso para selar algum pacto, mostrar que o desejo é realmente algo de grande importância. Pode ser que o artefato realmente foi criado para destruir os demônios quando os deuses descobriram uma fórmula mágica para isso.

    — Ptelus nunca revelou nada para mim sobre como usar. Acho que é algo que só ele sabe.

    — Mas você sabe onde está?

    Cinamusta fez silêncio. Não sabia se era porque ele não queria contar ou porque ele realmente não sabia.

    Eu me levantei alarmada.

    — Temos que encontrá-lo!

    Raul e Kaila me encararam.

    — O Cálice está sumido há séculos. Se ele estava bem escondido desde Perkins, está muito mais bem escondido agora — Kaila disse objetivamente. — É mais fácil encontrar as quatro pedras.

    Olhei para Kaila, não acreditando em suas palavras. Na minha cabeça, eu tinha que encontrar o Cálice.

    Capítulo 2

    Eu estava com dor de cabeça depois de um almoço com as mesmas discussões sobre os demônios. Só podíamos discutir esse assunto quando dentro dos cômodos reais. Nas outras partes do castelo existia o risco de sermos ouvidos por pessoas erradas. Então quebrávamos a cabeça para pensar em soluções em qualquer momento que isso era possível. Inclusive refeições.

    Alice estava ao meu lado segurando um pano frio em minha testa. Escutei minha porta bater uma vez e olhei para a mulher ao meu lado, perguntando silenciosamente quem seria.

    — Entre — eu disse, me arrumando na poltrona.

    A porta se abriu e entrou um guarda mensageiro. Josué. Encarei seus olhos verdes e o rosto sardento, esperando o que ele tinha a falar.

    — A sua presença é requisitada no Jardim de Inverno. Vossa Majestade tem uma visita. Não a deixamos entrar pela sua segurança. Irei acompanhá-la até lá.

    — Não sou rainha, Josué. Pode me chamar de Vossa Alteza ou só Senhorita — disse me levantando e me dirigindo à porta, extremamente curiosa para saber do que se tratava aquela visita.

    Alice me seguiu junto com os guardas. Passando pela biblioteca, percebi que Raul estava conversando com alguém em um tom sério e parei por um momento, preocupada. Alice seguiu em frente, enquanto eu ouvia as vozes abafadas atrás da porta fechada.

    Ele parecia estar conversando com o Arqueiro Solitário. Suspirei. Ele e Cinamusta andaram discutindo muitas coisas ultimamente. Eu percebi que Raul frequentemente ouvia os conselhos do herói. E eu entendia perfeitamente o porquê, já que o Arqueiro foi encontrado por Ptelus quando ainda era um bebê e, desde que foi imortalizado, fazia muitas coisas em nome do deus e também pela proteção do deus. Cinamusta via Ptelus, que estava dentro de Raul, como um pai e alguém a quem ele devia fidelidade, e Raul via no Arqueiro alguém que conhecia muito sobre os deuses e poderia ajudar a resolver problemas e a levantar seu ânimo.

    — Layla! — Alice gritou por mim, já me esperando na porta do palácio.

    Desci as escadas quase correndo. Por mais que eu quisesse saber sobre o que Raul falava, estava curiosa para saber quem era a visita. Tinha que ser alguém importante para poder perturbar uma princesa no meio da tarde.

    As portas principais se abriram, enquanto eu atravessava o grande salão. Quando cheguei ao Jardim de Inverno, do outro lado, fiquei surpresa com a visita e quase saí correndo de alegria.

    — Sr. Rumpee! O que faz aqui?!

    — Layla! Mas não é que você realmente mudou!

    Ri com o comentário.

    — Eu não mudo tanto em poucos meses.

    — Você está mais radiante. Aposto que é a presença do seu rei. Vim assim que soube que estava melhor. Eu passei as últimas semanas esperando notícias de você na Floresta Invisível.

    — Não estava em Terigor? Rainha Sophia me disse que você tinha dado uma pausa em política.

    — Não. Sabe como é... Rainha Sophia precisava de mim. Estamos reconstruindo Quinon e resolvendo problemas que estamos tendo lá. Quase um ano se passou, mas ainda está difícil a situação pela cidade. Não consigo não ajudar!

    — Está difícil para todos nós.

    — Pelo menos aqui no continente as coisas foram reconstruídas mais rápido. Tem muitos ainda trabalhando duro para voltar à vida normal depois da guerra, mas Quinon é isolado e está sendo bem complicado para eles. Principalmente depois do sequestro de Sophia e das torturas. Eles são bem orgulhosos, e digamos que Perversus soube ferir bem esse orgulho.

    Começamos a andar em direção à enorme praça de Perkins. O guarda e Alice vieram atrás de mim. O centro estava movimentado, como sempre. Pessoas que ainda moravam no castelo e aqueles que moravam por perto vinham trocar mercadorias. Muitos camponeses traziam suas colheitas para vender. Observei o céu, sempre azul. O clima, sempre quente. Muitos vinham do norte nessa época a fim de se prepararem para a chegada do inverno.

    Vi uma ave grande cruzar o céu e me lembrei das águias venenosas que nos atacaram na guerra contra Perversus.

    — Sr. Rumpee, como vai a pesquisa com as águias gigantes?

    — Ah, sim! Vai muito bem. Estamos desenvolvendo uma técnica para treiná-las. Por enquanto está dando muito certo.

    — O veneno delas está sendo usado na confecção de novas armas, não é? Os chakrams gêmeos de Kaila foram aperfeiçoados com o veneno delas.

    — Sim. Isso é verdade. Esperamos que a ave seja menos hostil com os humanos depois dessas pesquisas e desses treinamentos que estamos formulando.

    — Ultimamente as pessoas estão falando muito da era de prosperidade que estamos adentrando. Tem pouco menos de três semanas desde que voltei do mundo dos mortos, e tudo que escuto do povo desde que acordei está relacionado com a vida feliz que as pessoas estão tendo.

    — Já ouvi muitas fofocas por aí. Fofocas deixam as pessoas entretidas. Como está lidando com a novela que sua vida está virando? Tem muitos espectadores, sabe?

    Com certeza eu sabia que minha vida estava virando motivo de fofoca. Já era antes. Mas agora... depois da confusão com o Conselho e com o retorno de Raul, eu era motivo de assunto em todo canto.

    — As pessoas ficaram chocadas com a notícia de que o rei está vivo. O Conselho teve que dar uma explicação e tanto para isso. Nem quero saber exatamente o que falaram. O importante é que as pessoas aceitaram.

    — Quando você sumiu, tivemos que falar que estava passando por um momento difícil, e por isso havia se retirado para seus aposentos.

    — Fico curiosa para saber o que as pessoas devem ter pensado sobre mim. Que eu era desesperada? Louca? Sem esperanças? — Dei um sorriso triste. Os demônios me deixavam sem esperança. Havia um clima estranho em Jolebon, como se o ar estivesse parado e todos estivessem na expectativa de uma tempestade que se aproximava. Mas parecia que poucos conseguiam sentir esse clima. Quis mudar de assunto. — Vou voltar ao orfanato um dia desses.

    — O Instituto Layla para Meninas. Ouvi dizer que está dando muito certo.

    — Sim. As crianças estão sendo bem educadas e algumas já foram até adotadas. Espero aumentar esse projeto. Fazer uma ala para receber crianças que ficam em casa sozinhas enquanto os pais trabalham.

    — Uma boa ideia. Começar o futuro a partir dos jovens. Dê às sementes o que elas precisam e nascerão árvores com belos frutos.

    — Palavras bonitas, Sr. Rumpee.

    Andamos em silêncio. Essa conversa tinha me distraído da dor de cabeça. Algumas pessoas ficavam me encarando enquanto andávamos, curiosos para saber do que falávamos, ou simplesmente curiosos para me ver. Era a primeira vez que saía do castelo em público desde quando voltei do mundo dos mortos.

    — Rainha Sophia mandou eu te perguntar se poderia fazer uma visita a Quinon qualquer dia desses. Você, Raul e quem mais quiser ir.

    — Seria uma visita oficial?

    — Acho que algo mais particular. Ela quer saber sobre o que descobriram nos livros do seu pai.

    — Você ficou sabendo disso, então? — disse alarmada, mas tentando disfarçar. Ninguém podia saber dos livros.

    — Mas é claro! Darkus me contou dos livros assim que vocês chegaram. Só esperei vocês se recuperarem antes de perguntar o que tem neles.

    — Então sua visita aqui não é para me ver? — perguntei rindo, fingindo estar decepcionada.

    Sr. Rumpee riu também, girando sua bengala em uma das mãos e coçando o bigode com a outra.

    — Vamos dizer que em primeiro lugar queria saber dos livros, e em segundo queria saber de você. Acabou que o inverso aconteceu. Vou esperar até que vocês visitem Sophia para saber mais dos livros. Posso esperar um pouco mais.

    Eu parei de repente, pensando em algo sério.

    — Senhor Rumpee, quem mais sabe dos livros?

    — Não sei te dizer... Darkus não contaria para qualquer um...

    — Mas e se alguém para quem ele contou contar para qualquer um?

    — Eu não faria isso. E acho que Darkus tem um bom senso de não contar para a pessoa errada. Fique calma, Layla. Não sei o que tem no livro, mas vamos tomar cuidado para as informações não se espalharem.

    — Sim. Por favor. Ninguém pode saber. — Comecei a ficar preocupada só de imaginar tal situação. A dor de cabeça até voltou.

    — Claro. Eu mesmo tomarei as providências de encontrar um local seguro para eles toda vez que não estiverem sendo usados.

    Olhei para ele, agradecendo, e limpei o suor que escorria pelo meu rosto. Alguns aldeões que passavam pareciam até preocupados com a conversa que estávamos tendo. Minha expressão devia mostrar toda a preocupação que eu tinha.

    Então ele mudou de assunto, como para desviar a suspeita de possíveis ouvintes. Comentou sobre algumas enchentes que estavam acontecendo misteriosamente em algumas vilas e de uma ou outra pessoa que morreu por causa delas. Estranhei a situação, mas ele me tranquilizou, dizendo que já estava sendo resolvido.

    Voltei a caminhar lentamente, acalmando o meu semblante e conversando coisas casuais com o velho.

    ***

    Depois de lanchar

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