Festas, dramaturgias e teatros negros na cidade de São Paulo: Olaegbékizomba
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Festas, dramaturgias e teatros negros na cidade de São Paulo - Jéssica Nascimento
© 2023 Jéssica Gomes do Nascimento. Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Nascimento, Jéssica Gomes do Festas, dramaturgias e Teatros Negros na cidade de São Paulo: Olaegbékizomba / Jéssica Gomes do Nascimento. - São Paulo : Educ, 2023.
(Autorias negras)
Bibliografia
Originalmente Dissertação de Mestrado - PUC-SP, 2022, sob o título Olaegbékizomba: festas, dramaturgias e Teatros Negros na cidade de São Paulo.
1. Recurso on-line: ePub
ISBN 978-85-283-0711-5
Disponível para ler em: todas as mídias eletrônicas.
Acesso restrito: http://pucsp.br/educ
Disponível no formato impresso: Nascimento, Jéssica Gomes do Festas, dramaturgias e Teatros Negros na cidade de São Paulo: Olaegbékizomba / Jéssica Gomes do Nascimento. - São Paulo : Educ, 2023. ISBN 978-85-283-0707-8.
1. Teatro negro - São Paulo (SP) - História. 2. Negros nas artes cênicas - São Paulo (SP) 3. Arte negra-São Paulo (SP). I. Título. II. Série.
CDD 792.0981611
Bibliotecária: Maria Lúcia S. Pereira CRB 8ª./ 5754
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
Thiago Pacheco Ferreira
Produção Editorial
Sonia Montone
Revisão
Valéria Diniz
Editoração Eletrônica
Waldir Alves
Gabriel Moraes
Capa
Ilustração: Aline Bispo
Realização: Waldir Alves
Administração e Vendas
Ronaldo Decicino
Produção do e-book
Waldir Alves
Revisão técnica do e-book
Gabriel Moraes
Rua Monte Alegre, 984 – sala S16
CEP 05014-901 – São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558
E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ
Prefácio
Corpo-memórias, confluências e insurgências
Adriana Paixão
¹
Jéssica é uma jovem mulher negra – os cabelos sempre marcam um novo momento ou nova criação: longos trançados, crespos desfiados, curtos, raspadinhos, pintados de loiro pivete – mostram quanto diversa e versátil é essa pessoa. Sorriso fácil, tem um jeito peculiar de observar. Sua fala traz guardados saberes de quem escuta, processa e contribui. Sua leveza flerta com a gira de erê.² Jéssica dança, baila com as palavras, faz kizomba³ com a história. Sopra segredos guardados no fazer/saber das artes negras. Com sua dança, descortina tecidos africanos e nos revela, situando-nos em seu livro – nós, Capulanas, Carcaça de Poéticas Negras e outras cartografias da cidade de São Paulo. No tempo espiralar, tal como a professora Leda Maria Martins (2021, p. 204) nos ensina, A ancestralidade é clivada por um tempo curvo, recorrente, anelado; um tempo espiralar, que retorna, restabelece e também transforma, e que em tudo incide
.
Para Beatriz Nascimento, o corpo negro se constitui e se redefine na experiência da diáspora e na transmigração: Foi transportado para a América um tipo de vida que era africano. A transmigração de uma cultura e de uma atitude no mundo de um continente para o outro
(Nascimento, 2018, p. 327), o corpo negro é pontuado de significados e memória. É a partir desse saber que trago uma passagem tão cara a mim: tenho guardado na memória-corpo o dia em que me encantei com Jéssica. Lembro-me dela sentada, com a cabeça baixa, em uma sala repleta de pessoas. Aguardávamos para entrar em uma reunião do programa artístico do qual fazíamos parte naquela edição. Eu, sem conhecer bem as pessoas, passei por todos com cumprimentos rápidos. Sentei-me distante dela e me recordo de alguém falar algo e eu responder um pouco mais alto. Jéssica se vira, guiada pelo som de minha voz e, ao levantar a cabeça, revela que seus olhos estavam adoecidos, algo acometera suas retinas, dilatando e dando uma impressão de olhos de sangue. Sem saber onde estou, diz em minha direção. "Você é da Capulanas? Reconheço essa voz da peça Sangoma⁴. Eu ri e disse:
Você só pode estar brincando, reconheceu a minha voz?" Ela começa a se dirigir a mim e iniciamos uma longa conversa. Fomos para uma lanchonete na rua 24 de Maio, no centro da cidade, e conversamos por horas a fio. Tempos depois, Jéssica me manda um conto:
Sonhei a noite inteira que amava uma mulher. Só me recordo os vultos dos detalhes: o vestido, a boca vermelha, o sorriso, os cachos do cabelo, os seios fartos. O vestido era rodado de capulanas. Gorda. Acho que tinha as pernas grossas e os braços cheios. Provavelmente com o vestido uma perna roçava na outra. Bonita. O cabelo tinha pintura. Acho que usava maquiagem simples para aparentar cara lavada. Embaixo da minha pele negra tem um sub-tom
amarelado que fica atrás do marrom. Ela comparou nossos braços e sorriu com o diagnóstico, o sub-tom
dela era vermelho. Talvez tivesse mais a dizer, mas falou simples sobre as cores – acho que era pra eu entender melhor depois. Uma vez sentadas numa lanchonete baratinha, falamos de Oxum tomando suco de laranja e pão na chapa, próximo à praça da República. Não me recordo bem, mas tinha muito barulho envolta do que ela falava – carros, transeuntes, buzina. Já fez seu pedido?
E ela ali na delicadeza, concluindo o pensamento: Sou de Oxum
. Quando o assunto entrou em Bell hooks, ela marejou os olhos e vivemos de amor. Que boba essa tirada vivemos de amor
. Nada. Soava monstruosa a frase que líamos juntas: Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor
. Quantos pães na chapa vou ter que pedir pra falar sobre isso? O coração fica atrás do seio da gente, o peito fica no primeiro plano dando a cara a tapa. Quando ele cai pela maturidade, o coração fica mais disfarçado, tipo uma casca. Pelas costas é possível localizar o coração, fica por baixo das asas. Ele não é tão grande, tem o tamanho de uma mão fechada. Trabalha pra caramba, tipo um motorzinho, sei lá. É muita emenda dentro da gente, muito sangue que vai e volta. Acho que o amor é uma respiração [...]. (Jéssica Nascimento, em 2018)
Ao ler esse conto, reconheço nossas trocas, nossas corporeidades ficcionalizadas, recriadas pela forma como ela captura a experiência negra e a transforma em poética. Nunca terminamos nossas conversas, nossas histórias-vida se entrecruzaram em planos, projetos, e sonhos foram sendo idealizados...
E um deles se materializa com esta publicação. Sou feliz por ter acompanhado parte dessa trajetória de pesquisa, que se entranha na sua própria experiência-corpo. Sou grata por ter estado perto quando era uma ideia, que foi sendo desenhada, costurada, em um exercício minucioso, cuidadoso e atento. É assim que sinto Jéssica. Água de rio que corre pelas veredas, que se modifica em cada correnteza. Artista completa, íntegra, pede licença e reverência à ancestralidade – mulher sábia, de ouvido apurado, olhos atentos e mente inquieta. Uma pesquisadora com bastante conhecimento, com desejos absolutamente legítimos.
Filha de nordestinos, nasceu e cresceu em Itaquaquecetuba – periferia do extremo leste da Grande São Paulo. Itaquaquecetuba fica a 41 quilômetros de distância do centro da cidade. Uma das cidades mais populosas do país – de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) –, com a maior incidência de pobreza da região do Alto Tietê, a quarta mais pobre do Estado de São Paulo. Em sua relação entre corpo/cidade, política/arte, Jéssica produz saberes localizados que orientam sua perspectiva criativa, artística e acadêmica.
Jéssica faz Egbe⁵ por onde passa, traçando uma trajetória nos estudos culturais negros diaspóricos. Certa vez, disse-me que as Capulanas fazem parte de sua formação: "Vocês estavam lá quando cheguei". Saber-se assim é se permitir perceber o tempo espiralar, é Ajeum⁶ – poder ser e ver, alimento para o corpo-mente.
Atuante das teatralidades negras, está, de dentro, produzindo arte e dessa arte produzindo conhecimento sobre a cena negra atual em sua diversidade – naquilo que entendemos ser a chave interpretativa de um projeto político, intelectual e artístico que alcança nossas próprias realidades, assim como nos influencia e instrumentaliza.
Jéssica, neste livro, fala de projetos que criam experiências em comunicação com o sagrado, projetos criativos que discutem a potência dos saberes das corporeidades e poéticas negras. Fala em celebrar, comer juntas, dançar – sobre a educação a partir das possibilidades brincantes. Traz uma metodologia de pesquisa que combina elementos históricos (bibliografia analisada e exposta em relação a um campo da ordem do empírico) e uma análise documental apurada dos grupos citados. Demonstra continuidades estéticas ao buscar as negritudes femininas nas teatralidades, ou seja, evidencia o protagonismo de mulheres negras nos trânsitos criativos e político-geográficos entre as cidades do Rio de Janeiro, Luanda (Angola) e São Paulo, aproximando a experiência de Thereza Santos com o movimento realizado pelas Capulanas 30 anos depois – revela fatos, eventos, cenas e formas de pensar e agir de mulheres negras artistas.
Pesquisa os teatros negros na cidade de São Paulo – detendo-se em textos, dramaturgias, peças – e localiza outras grafias que estão na ordem do corpo, dos ritos, das festividades. Fala de festas e rememora figuras como João Cândido de Oliveira e Jaime Silva. Traz à tona o Teatro do Sentenciado, experiência vivida por Abdias Nascimento, em uma chave importante para compreender o nascedouro do Teatro Experimental do Negro (TEN) antes mesmo do deslocamento para o Rio de Janeiro. Apresenta os 15 anos de existência do TEN paulista, com a força de manutenção de Geraldo Campos. Presentifica Thereza Santos, de quem organiza uma reflexão fundamental das formas expressivas negras – reconhecendo quem a antecede, com ética histórica, sociológica e artística, reelaborando uma interpretação negra para a sociedade brasileira, repondo os imaginários interditados durante séculos, ensinando sobre a complexidade da humanidade de pessoas negras.
O questionamento que habita essa cena negra diz respeito ao modo como tal tradição é atualizada, evidenciando não haver uma simples continuidade de arte negra teatral e urbana. Neste livro, podemos apurar, por meio de análises de documentos e uma brilhante elaboração crítica, as várias insurgências das performances negras no campo das artes teatrais e no meio da história das teatralidades negras, temas relacionados ao modo do saber/fazer do qual configuramos nossas poéticas e reelaboramos nossa existência negra.
Referências
MARTINS, Leda Maria (2021). Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro, Cobogó.
NASCIMENTO, Beatriz (2018). Transcrição do Documentário orí. In: NASCIMENTO, Beatriz. Quilombola e intelectual: possibilidade nos dias da destruição. Diáspora Africana. São Paulo, Editora Filhos da África.
1 Atriz formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) no curso de Comunicação das Artes do Corpo (habilitação em Teatro) e arte educadora. Atua na Capulanas Cia de Arte Negra desde 2007, da qual é cofundadora, integrante do núcleo cênico e atriz-pesquisadora. Tem formação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É professora de Sociologia, pesquisadora e especialista em articulação cultural pelo Instituto Singularidade e Itaú Cultural. Mestra em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (PPGAS/USP) e doutoranda em Antropologia Social também pela USP. Faz parte do Grupo de Pesquisa Cóccix – Estudos (In)disciplinares do Corpo e do Território (USP).
2 Gira de erê é uma festa religiosa das tradições de religiões afro-brasileiras conhecida no candomblé pela festa de Ibeji e, na tradição da umbanda, como festa de erê.
3 Em kimbundu, festa
.
4 Sangoma – saúde às mulheres negras (2013), peça teatral da Capulanas Cia de Arte Negra.
5 Conceito iorubá para comunidade e/ou irmanada que visa o bem comum.
6 Nas tradições de matrizes afro-brasileiras, significa comer junto, momento sagrado que se faz nas liturgias em que a comunidade alimenta o corpo e o espírito em grupo.
Apresentação
MUNDO ATLÂNTICO
O minha joia rara
Não importa o lugar
A lua fica clara as duas da manhã
Duas horas da manhã o jongo já começou
Eu quero ver você lá, para cantar o ponto
Vou te desafiar
Vou te provocar
Eu quero você ir
Até o Benin
Costa do Marfim
No Brooklin, em Pequim
No Kremlin, em Berlin
Não importa
Pode ser Guaratinguetá ou Angola
Pindamonhangaba ou Luanda.
(Azevedo, 2017)
***
Creio que não é necessário perguntar se existe dramaturgia e Teatro Negro no Brasil, mas cabe perguntar: qual foi e qual tem sido seu percurso? (Silva, S., 2014, p. 23)
Não é adequado que jovens negros de hoje estejam vivendo com os mesmos dilemas dos jovens negros dos anos 60 e 70. Tem que haver algum grau de distanciamento, de conflitividade, para que as coisas se transformem e avancem. Nós cometemos muitos erros, nós fizemos muitas besteiras, e eles também farão. Mas por que não também algum grau de solidariedade e de troca em um universo de negritude? (Ibid., p. 41)
Neste trabalho, comunicamos memórias e insurgências poéticas que fazem parte da história dos Teatros Negros na cidade de São Paulo. Sem a pretensão de esgotar o tema – ou mesmo catalogar companhias –, percebemos o quanto os Teatros Negros em São Paulo são ricos, múltiplos e criativos. A abundância referencial que encontramos em diferentes peças de Teatro Negro nos aproximou das reflexões do filósofo e historiador camaronês Joseph-Achille Mbembe sobre o afropolitismo, movimento da literatura, da música, da filosofia, da religião, da dança e do teatro que engaja poéticas na vertente africana do Atlântico e nas diásporas negras no pós-colonização. Uma das características do afropolitismo é a dispersão e circulação dos mundos, premissa que sugere reflexões sobre a importância das trocas para as artes negras, os espaços em que a convivência gerou trânsito de conhecimentos, diálogos sensíveis – por vezes, solidários – que preenchem os trabalhos artísticos de importâncias relacionais.
O diálogo dos Teatros Negros com a cidade de São Paulo e o trabalho realizado perante a escassez e os apagamentos culturais produzidos pelo racismo antinegro nos instigaram, também, a pensar nos movimentos de encontros entre sociedades. A partir deles, buscamos observar as circulações e comunicações históricas sobrepostas que tornam, no contexto específico da cidade de São Paulo, o Teatro Negro abundante poética e esteticamente.
*
O Gesto coletivo e o passo pessoal. Sou uma mulher negra; é assim que me vejo. Sou filha de migrantes: mãe mineira e pai pernambucano. Nasci e vivo em São Paulo, um entre todos os Estados brasileiros, agrupamentos políticos e geográficos localizados na América do Sul. A arte me encantou desde muito cedo. Minha mãe trabalha como artesã – cria, pinta e comercializa bonecos de gesso nos fundos do nosso quintal. Meu pai, quando chega em casa, depois do trabalho na indústria metalúrgica onde presta serviços há mais de 30 anos, troca de roupa e bate novamente o martelo nos restos de metal que encontra na rua. Ele confecciona gambiarras que são verdadeiras obras de arte. Minha irmã mais velha, disputadíssima, canta em todos os casamentos de família, e meus primos fazem o acompanhamento no violão. Por desejo e busca de vida comunitária, iniciei-me em centros de educação, cultura e religião iorubás.
A arte é um conhecimento sensível que vamos nos dando durante o trabalho e os dias. Envolvo-me com dança, literatura, artes visuais, música – e a minha cadência é o teatro. Como atriz, dramaturga e professora, tenho buscado desenvolver pesquisas sobre os Teatros Negros nos universos africanos e afro-diaspóricos com o objetivo de construir abordagens e referências históricas derivadas. Festas, dramaturgias e Teatros Negros em São Paulo. OLAEGBEKIZOMBA busca, a partir do [...] gesto coletivo e do passo pessoal
(Rosa, 2013, p. 24), memórias, confluências e insurgências dos Teatros Negros na cidade de São Paulo. A pesquisa flagra a imaginação de sociedades teatrais como fonte para contar caminhos que foram mobilizados pela arte para a convivência no espaço comum.
Fui criada no Jardim Nápoli I, bairro da cidade de Itaquaquecetuba, município que fica próximo da nascente do Rio Tietê no Estado de São Paulo. O rapper Teddy Tee (Luiz Fabiano Pereira), morador do Recanto Mônica, bairro vizinho ao Jardim Nápoli, empolgava a juventude com Nativo, uma poesia rítmica que me explicou, aos 14 anos, parte dos problemas enfrentados por quem vive em Itaquá¹: [...] quando chove é muita lama e quando esquenta é muito pó
(Tee, 2004). Eu cresci nos extremos. O professor Teddy Tee colocava música na rua aos finais de semana, e a gente fazia o baile. Naquela época, praticávamos música negra, o chamado Rhythm and Blues (R&B), nas baladas romântica quem nos envolvia era o grupo Sampa Crew; o samba era música dos mais velhos – ouvíamos também. No começo do ano 2000, com a chegada da internet, tive uma ampliação de referências e interações negras, videoclipes, roupas, penteados, séries de TV, filmes – em especial, conteúdos ligados à indústria do entretenimento da América do Norte.
Minha família é numerosa. Chegamos no Estado de São Paulo no final dos anos 1970. A parte pernambucana se organizou no bairro do Grajaú (zona sul da cidade de São Paulo), e a parte mineira construiu moradias