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Do Terreiro ao Teatro:: em busca da gestualidade ancestral - Artigos reunidos 2015-2020
Do Terreiro ao Teatro:: em busca da gestualidade ancestral - Artigos reunidos 2015-2020
Do Terreiro ao Teatro:: em busca da gestualidade ancestral - Artigos reunidos 2015-2020
E-book186 páginas2 horas

Do Terreiro ao Teatro:: em busca da gestualidade ancestral - Artigos reunidos 2015-2020

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Sobre este e-book

Carregada da fluência da ancestralidade do seu Ori e focada nos caminhos para fortalecer a sua existência, Daniela Beny faz um mergulho profundo para gerar a concepção de um método que busca despertar o corpo para a cena partindo da mitologia afro-brasileira. Beny nestes escritos se apresenta tão apaixonada por esses dois mundos que lhe são impulsionados por ventos brandos, moderados, intensos e tão tangíveis, sentidos na sua pele, mente, emoções, palavras, inquietude e na sua fé. Partindo das suas vivências no teatro e na Umbanda, coloca na mesma encruzilhada a ancestralidade dionisíaca do teatro clássico e a ancestralidade de Bará da mitologia afrodiaspórica tão comunicativa, expansiva e generosa, como se Dionísio e Bará criassem juntos a partir do corpo em cena e em transe, proporcionando a atores e atrizes um outro olhar para seus processos criativos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de mar. de 2021
ISBN9786586723168
Do Terreiro ao Teatro:: em busca da gestualidade ancestral - Artigos reunidos 2015-2020

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    Do Terreiro ao Teatro: - Daniela Beny

    mim.

    Exu – o homem parado na esquina

    Ensaio-homenagem não acadêmico inédito (2020)

    Sempre fui urbana, nasci no Centro da cidade, cresci no Centro da cidade. Gostava disso, atravessava três bairros à noite, a pé, sozinha, voltando das festas, dos shows, dos espetáculos de teatro. Andava sem medo, sem pressa e vez ou outra via ele lá, o homem parado na esquina.

    Nem sempre a mesma esquina, às vezes era no trilho do trem – quem conhece Maceió sabe que tem uma linha férrea que atravessa Jaraguá/Centro/Prado, coincidentemente o caminho que eu mais fazia – às vezes num canto da praça, debaixo de uma árvore, na porta do cemitério (sim, tinha um cemitério no meio do caminho, até chegar em casa). Nem sempre a mesma esquina, nem sempre o mesmo homem, mas sempre estava lá; inclusive, algumas vezes era uma mulher!

    Sempre tive essa relação com a rua, com a noite, com o movimento-calmo da madrugada, mas naquela época não entendia o que me fazia optar por sempre caminhar – além da falta de dinheiro para pegar um táxi e o medo de pegar um Corujão de madrugada. Na rua me sentia segura porque sabia que ele estava lá.

    Certa noite sonhei com o homem parado na esquina, ele sempre mudava de face, aparecia de cartola, aparecia de capa preta e sem camisa, aparecia todo de branco com chapéu panamá e, embora me assustasse, não me dava medo, ao contrário, era absurdamente familiar, como se sempre tivesse o conhecido de algum lugar.

    No sonho estávamos frente a frente, ele numa encruzilhada e eu na outra, ele de frente para a linha do trem e eu de costas para ela, e por algum motivo aquele homem não me deixava passar. Era urgente, precisava chegar em casa, precisava não estar ali, e acordei. O sonho, a (multi)imagem do homem me acompanhou por muito tempo e de forma tão latente que parecia uma memória, nítida e relativamente recente.

    Os anos passaram, as ruas se tornaram outras, os caminhos, ora mais longos ora mais curtos, eram novos, nem sempre muito seguros e ele continuava lá, embora não o visse, sabia que estava ali, mas não tinha a ideia de que estava por perto para me guardar, embora sempre me parecesse muito amigável.

    Lendo, estudando, me informando, aprendo que esse homem na Umbanda se chama Exu, como o Orixá do Candomblé e que, mesmo muito diferentes, acabam sendo parecidos em suas funções dentro da liturgia de cada religião.

    Aprendo que esse Exu no Candomblé é o primeiro que come, é quem fica sentado à porta autorizando quem entra e quem sai; é quem toma conta dos caminhos e das comunicações entre o Aiê e o Orum; que toma conta das nossas sinapses; que é a nossa corrente sanguínea. Ele ordena o caos, e bagunça a ordem; provoca o movimento. Exu, primeiro Orixá. Exu que tudo ouve e que tudo vê. Exu, irmão de Ogum e de Oxóssi – respectivamente os Orixás da Tecnologia e da Prosperidade. Exu, que nos ensina que por mais árduo que seja o trabalho, temos todo direito de nos divertir e festejar.

    Aprendo também que esse Exu na Umbanda é malandro, mas não é mané, é da noite, é das ruas, conhece todo tipo de gente e respeita essa diversidade. Aprendo que ele tem um par, que tem outra versão, que esse homem tem seu correspondente mulher, que Pombogira põe mulheres num pé de igualdade com os homens, que ocupam e circulam nos mesmos ambientes, que ambos, como nós humanos, são falhos, mas também possuem virtudes.

    Com o passar do tempo, esse homem da esquina – e a mulher da esquina também – passaram a ser mais nítidos, mais visíveis, mais palpáveis. Sempre estiveram ali, mas passei a enxergá-los porque também são componentes das cidades e do nosso imaginário. Estão nos bares, nos bairros, nas festas, nas brincadeiras populares, nas confusões e nas soluções, nas cidades pequenas e nas grandes. Estão em nós, na palavra falada, no desejo concretizado, na intuição que nos avisa do perigo eminente, na vontade de festejar, no anseio de ser feliz; talvez esse seja o motivo de tanta familiaridade.

    Peço então licença ao Senhor dos Caminhos, ao Homem da Esquina, à Mulher da Encruzilhada e sigo pelas ruas, durante o dia, durante a noite buscando por a vida em movimento, buscando me comunicar da melhor maneira possível, aprendendo e compartilhando com os outros o que antes me ensinaram, fazendo a vida acontecer nas encruzilhadas e de modo espiral.

    Os códigos de Oyá² – Elementos simbólicos da dança de Iansã no Afoxé Oju Omim Omorewá³

    Artigo escrito em parceria com a Profa. Dra. Teodora de Araújo Alves (UFRN), orientadora da dissertação Os elementos de Iansã como possibilidade de criação cênica – PPGARC/UFRN (2017)

    Resumo: Este artigo traz os elementos simbólicos da Dança de Iansã usados como base na criação coreográfica do espetáculo Chão Batido – terra de negros e mestiços do Afoxé Oju Omim Omorewá. Apresentamos apontamentos de como a mitologia iorubá e a comunicação oral compõe a criação coreográfica do afoxé e apontam para o entendimento da dança nas religiões de matrizes africanas, sob a perspectiva da Antropologia da Performance com bases em Richard Schechner e Zeca Ligiéro. Visamos aqui estabelecer diálogo entre as bases da Antropologia da Performance e nossas interlocutoras – as Ialorixás Nany Moreno e Isabel Caetano - delimitando o espaço da performance artística como objeto/sujeito de estudo.

    Palavras-chave: Orixá, Iansã, Afoxé, dança, performance

    No conceito geral, compreende-se que os afoxés são manifestações religiosas dos terreiros de Candomblé⁵ em espaço público – também conhecidos como Candomblé de Rua – com elementos sagrados trazidos para o ambiente profano. Porém, tal designação não se aplica a configuração do Afoxé Oju Omim Omorewá que, mesmo coordenado por duas Ialorixás⁶ – Mãe Nany Moreno e Mãe Isabel Caetano – possui mais apelo artístico que religioso, onde inicialmente se consideravam um grupo percussivo, mas que, com o passar do tempo, vieram agregando outros elementos como: dança, poesia e teatro na composição de suas apresentações. Se em sua fundação, em 2000, eles produziam shows, hoje em dia, se consideram produzindo espetáculos.

    Situado na cidade de Maceió, no estado de Alagoas, no populoso bairro do Jacintinho, o Afoxé desenvolve atividades artísticas, culturais e sociais voltadas para jovens do entorno, porém, por falta de espaço físico adequado, os ensaios dos espetáculos do Afoxé foram realizados no centro Cultura Afro e Religiosa Ilé Nifé Omí Omo Posú Bétá, espaço religioso e de atividades culturais sob direção da Ialorixá Miriam – Mãe Miriam, no bairro da Ponta da Terra, assim como ensaios na sede do grupo Coletivo Afro-Caeté, grupo que visa resgatar a arte periférica através de atividades como oficinas, apresentações e a criação de um maracatu, no bairro do Jaraguá. No caso específico do espetáculo Chão Batido – terra de negros e mestiços, os ensaios foram realizados entre os meses de Março e Agosto de 2014, com estreia em 13 de Agosto de 2014, no Teatro Deodoro.

    O acompanhamento dos ensaios se deu por conta da escrita da monografia, de nossa autoria, intitulada "A codificação corporal da Dança de Iansã nas coreografias do Afoxé Oju Omim Omorewá, para conclusão do curso de Especialização em Antropologia pela Universidade Federal de Alagoas, por Daniela Beny Polito Moraes, e que atualmente vem sendo aprofundada na nossa pesquisa de mestrado Das águas de Oxalá⁷ ao fogo de Xangô⁸ - As interações arquetípicas e coreográficas dos Orixás⁹ na Dança de Iansã como possibilidade de treinamento do performer", no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação da professora doutora Teodora de Araújo Alves.

    Outro aspecto particular a ser observado nas práticas do Afoxé é que, mesmo tendo como coordenadoras Ialorixás e com elementos fortemente relacionados aos rituais religiosos, o grupo é composto por iniciados e não-iniciados nas religiões de matrizes africanas.

    Dançar-contar-cantar

    A corporeidade quando pensada na perspectiva das comunidades de terreiro de origem iorubá possui como característica a associação do corpo como um microcosmos capaz de trazer em si informações de origem ancestral, explicando assim mitos e arquétipos apresentados durante a roda do Xirê¹⁰.

    Porém, podemos aprofundar nossas reflexões sobre as várias vertentes de entendimento do termo corporeidade dentro da perspectiva da Sociologia, da Filosofia, da Dança e da Antropologia.

    O filósofo Merleau-Ponty, em sua abordagem fenomenológica de compreensão do ser humano inserido corporalmente no mundo, agindo e reagindo ao contato com outros seres humanos, nos aponta que

    O corpo é nosso meio geral de ter um mundo. Ora ele se limita aos gestos necessários à conservação da vida e, correlativamente, põe em torno de nós um mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através deles um novo núcleo de significação: é o caso dos hábitos motores da dança. Ora, enfim a significação visada não pode ser alcançada pelos meios naturais do corpo; é preciso então que ele construa um instrumento, e ele projeta em torno de si um mundo cultural. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 203)

    O sociólogo Pierre Bourdieu nos traz a reflexão de como a corporeidade é construída como expressão do ser-no-mundo, sendo registrada, codificada e transmitida geração após geração, considerando tanto aspectos genéticos quanto aspectos sociais, reforçando o entendimento de corporeidade apontado por Merleau-Ponty. Segundo Teodora de Araújo Alves (2006), professora do PPGARC-UFRN.

    [...] esse processo de registrar e renovar nos corpos tudo que nós e nossos antepassados vivemos, Pierre Bourdieu denomina de habitus¹¹ [...] Nesse sentido Bourdieu acredita que há uma motivação incorporada que permite a realização de algumas ações recorrentes. E essa ação ocorre por meio do diálogo entre a história feita corpo e a história feita coisa. (ALVES, 2006, p. 52)

    Para a dançarina e pesquisadora Suzana Martins (2008),

    O termo corporeidade refere-se ao tratamento dado ao corpo como um conjunto de elementos simbólicos estruturados para um determinado fim. No Candomblé, a corporeidade é construída a partir da união espiritual decorrente da intervenção primordial da divindade. [...] Nesse contexto, a corporeidade é representada pelo corpo em movimento – o jeito de dançar – que ostenta vestimenta litúrgica, atributos e adereços simbólicos embalados pela qualidade específica da música e do Orixá. (MARTINS, 2008, p. 81)

    Em paralelo, mesmo havendo divergências num aspecto mais amplo dos conceitos e significados das culturas afro-brasileiras sobre os usos do corpo em relação ao pensamento mais ocidental por assim dizer, percebemos uma zona de diálogo com um contexto completamente diferente, quando Csordas (2008), dentro dos encontros carismáticos da Igreja Católica nos Estados Unidos, coloca que

    Se a corporeidade realmente nos ajuda a compreender uma prática particular, ela deveria também nos ajudar a compreender como as práticas se relacionam entre si [...] A combinação de usos ativos e passivos do corpo em uma prática parece ser o operador concreto que permite a comunhão experiencial do humano e o divino em

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