Cidade Mítica ou a Cidade vista pelo Imaginário do Artista
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Cidade Mítica ou a Cidade vista pelo Imaginário do Artista - Bernadete Andrade
Sumário
CAPA
FOLHA DE ROSTO
APRESENTAÇÃO
POR ENTRE CHUVAS E CONSTELAÇÕES EU VIM O COMEÇO DO COMEÇO
INTRODUÇÃO
CIDADE MÍTICA: UMA POÉTICA DAS RUÍNAS OU A CIDADE VISTA PELO IMAGINÁRIO DO ARTISTA
CAPÍTULO I
CIDADE MÍTICA: MORADA ETERNA DAS RECORDAÇÕES A ALMA, LUGAR PERMANENTE E ACOLHEDOR DAS RUÍNAS
CAPÍTULO II
DA CIDADE REAL AO IMAGINÁRIO DA AUSÊNCIA
2.1 – A cidade entre a tradição, a ruptura e a arte
2.2 – Chuvas e constelações, o calendário astronômico dos Dessana103
2.3 – Mito: um saber revelando a alma da cidade – o segundo pouso no imaginário da ausência
2.4 – Mito cosmogônico: Antes o mundo não existia110 – as trevas pedem luz
2.5 – O mito desenhado
CAPÍTULO III
OS PÉS COMO ARQUIVO DA POÉTICA DAS RUÍNAS OU O SOPRO GELADO DA ESCURIDÃO DE UM VASo
CAPÍTULO IV
CAMINHOS: FRAGMENTOS E VESTÍGIOS NUM ESTILO QUALQUER OU A CIDADE VISTA PELO IMAGINÁRIO DO ARTISTA
TRANSCRIÇÃO
1. Processos e lugares da lembrança
2. Diário Artístico – Imagens, rascunhos, desenhos e pinturas que evocam a Cidade mítica
.159
3. Intervenção artística – Iluminação da Jararaca: uma reverência aos mortos
CONSIDERAÇÕES FINAIS
UM EXERCÍCIO MNEMÔNICO PARA FALAR DE UMA OUTRA CIDADE PAUSA PARA A LEMBRANÇA
REFERÊNCIAS
ANEXOS
1. Croqui para maquete: cidade mítica.
2. Mapa onde vivem os Dessana.
3. O mito e seus narradores.
NOTAS
Com esta obra, homenageamos a artista plástica e pesquisadora, Bernadete Andrade. Trata-se da síntese do seu trabalho de investigação e da sua experiência artística. A autora nos deixou antes de vê-la publicada (1953-2007).
Agradecimentos
À profª drª Élide Monzeglio, por sua orientação e inestimável confiança, pois me permitiu enveredar com liberdade pelas ruas da memória.
Aos meus pais, Alice e Aurélio Andrade, pelo apoio incansável aos meus estudos.
Aos Dessana, Filhos do Sol, em especial a Luiz Lana, Dorvalino Fernandes e Feliciano Lana, por tudo que aprendi com os desenhos do sonho, com a mitologia sagrada e por terem me ensinado a ver Manaus com outros olhos, aos quais devo parte significativa deste livro. Eu os vi me vendo.
Ao dr. Levi Malho, professor de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, por ter estado infinitamente presente no coração da tese que originou este livro e, mesmo de longe, ajudou a não desistir, mostrando-me sempre a importância do caminho.
Ao querido mestre, prof. Álvaro Páscoa, por ter me ensinado o amor pela pintura, minha eterna saudade.
Ao meu avô, Permínio Bentes de Souza Mafra, in memoriam, pelas doces recordações da infância, na fazenda de Santo Antônio/ Amazonas.
À Socorro Jatobá, um agradecimento especial, pelo inesgotável interesse e incentivo por este trabalho desde seu início, com quem estou sempre aprendendo a ler Platão e, também, pelo exemplo de amizade e confiança.
À Lúcia Rocha Ferreira, pela companhia amiga e por compartilhar comigo o desejo de voltar à terra-mãe.
À profª drª Maria Cecília França, pelas reflexões e valiosas indicações bibliográficas.
À profª drª Cristina Freire, pelos ensinamentos sobre arte, percepção e cidade.
Ao prof. Auxiliomar Ugarte, pela ajuda no que diz respeito ao conhecimento da língua nheengatu.
Ao Ricardo, Amélia, Clarinha e Lélia, pelo carinho e espírito sempre companheiro, eterna gratidão.
À Magela Andrade, minha irmã, por ter, na minha ausência, guardado todos os jornais que publicaram matérias sobre os sítios arqueológicos, dentro e fora de Manaus, o que me inspirou o subtítulo do terceiro capítulo da tese que originou este livro. Às minhas outras irmãs, Paula Andrade, pela maquete, Ivone e Socorro pelo apoio fraterno nas horas difíceis, e à Georgina, pela revisão dos capítulos deste livro.
Ao prof. dr. Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, por ter compreendido a razão da minha ausência, temporária, do Museu Amazônico.
Aos alunos do departamento de Artes, pelo carinho e participação na intervenção artística Iluminação da jararaca: uma reverência aos mortos
.
À Ivanete, minha fiel secretária, pelos afazeres domésticos, e por ter dividido comigo os cuidados com o Gabriel durante a minha estada em São Paulo.
Ao Carlos Augusto Tijolinho, exemplo de grandeza humana, pelos esclarecimentos sobre a arqueologia amazônica.
À Rocilda Oliveira e Núbia Najar, pela filmagem e participação especial na intervenção artística Iluminação da jararaca: uma reverência aos mortos
.
Aos indígenas da etnia Tukano, Gabriel Gentil, Avelino Trindade e Isabel Sampaio, pela participação durante a intervenção artística, Iluminação da jararaca
, com a "Edição Especial Sagrado Ritual Solene Lembrando as Origens, segundo a tribo Tukano.
Ao Fausto Saterê-Maué e à Comunidade Indígena Umbucyn, pelos ensinamentos que tanto contribuíram com esta pesquisa.
À Universidade Federal do Amazonas, pelo incentivo e esforço em qualificar seu corpo docente.
Ao Museu Amazônico, por ter colaborado como instituição de pesquisa e lugar da lembrança e, ainda, pelo que aprendi sobre arqueologia amazônica.
À Capes, por fornecer os recursos necessários ao desenvolvimento do ensino superior no país.
Enfim, agradeço à ausência e ao esquecimento que dormem dentro e fora de mim, insultando sempre a lembrança: minha outra parte.
Ao
Gabriel, meu filho
À
Carla e Cecília, minhas sobrinhas
À
futura geração Dessana.
Pequena alma terna flutuante
Hóspede e companheira de meu corpo,
Vais descer aos lugares pálidos duros nus
Onde deverás renunciar aos jogos de outrora...
P. Elius Hadrianus, Imp.
Marguerite Yourcenar. Memórias de Adriano.
APRESENTAÇÃO
POR ENTRE CHUVAS E CONSTELAÇÕES EU VIM
O começo do começo
Começar é sempre muito difícil porque implica em correr riscos, em abandonar caminhos e tentar outros possíveis. É difícil, especialmente, em se tratando de uma pesquisa que tem sua passagem pela ciência, mas que busca, em última instância, a construção de uma Aparição, de algo indemonstrável pela via de discursividade racional, ou seja, a arte. Dizer o indizível e ao mesmo tempo traçar uma familiaridade entre essas duas atividades tão díspares são, com certeza, os desafios que marcam os caminhos desta investigação já anunciados pela ansiedade da partida. Esse estado de inquietação que quase todo começar provoca, levou-me a ensaiar várias vezes a minha descida e esta é uma delas. Confesso que muitas vezes tive vontade de tirar os pés da escada e não descer mais. Se eu tive medo desse encontro? Claro que sim, mas era um medo que transformava o calafrio, o pé na vertigem, esse desconforto, em estado de criação. Quanto maior o medo, maior também era o desejo de dar vida a um personagem e enfim, dizer: – Vai por mim
. Felizmente meus substitutos não vingaram, não tiveram coragem o suficiente, suas fragilidades eram mais fortes e, então, eu mesma tive que partir. Respirei fundo, fechei os olhos, tomei coragem e desci. Olhei para trás e vi no caminho várias pegadas: do orientador, dos amigos daqui e de além-mar, apenas um desenho frágil, opaco, insinuava a minha. Então, entendi que esse encontro era mais comigo do que com o outro, pois, precisava cunhar com mais ênfase as minhas próprias pegadas, senão me perderia nesse labirinto e não haveria fio de Ariadne, nem asas de Dédalo que me levassem ao caminho desejado, ou me livrassem das tortuosas alamedas.
Lembrei-me de uma epígrafe na obra de Julio Cortázar, O jogo da amarelinha, que fala desse sair e voltar, do conflito humano e de um sossego para a alma, mesmo que esta seja pássaro, formiga ou víbora. Então, me veio uma grande vontade também de me tornar andorinha e voar para outros países, ou de ser formiga para me meter bem dentro de um buraco e ficar por lá só comendo os produtos guardados durante o verão¹. Na verdade, acabara de sair de um exame de qualificação, e, desejava voltar a me habitar sem o conflito, porque querendo ou não ele chega e se instala. Nessas horas, minha vontade era ficar bem longe, pois a aproximação da câmara exigia cautela, prudência, a nudez, enfim: podia ser castigada. Um castigo com um certo sabor primordial, mítico, advindo do desejo do conhecimento de si manifesto no outro, onde a nudez reclamada é quase uma exigência na aventura da criação. Despir a alma é expor-se, limpar e abrir o território quase sacrossanto das intimidades. Quando alguém se confessa, defende sua causa. Talvez, por isso, há quem diga que toda história dorme antes de nascer, e esta dormia quase que por opção. O sono chegava como um preparo, o bastidor do que virá. Assim, o tempo passava, os pés aprumavam-se nos degraus e a história ia sendo tecida muito lentamente, condição necessária para a sua maturidade. Uma doce ilusão me acalmava: saber do outro nos conforta porque nos ausenta e, como recompensa, vem a paz passageira. Ler os textos, tentar decifrá-los, entrar no mundo do autor, não é a tarefa mais difícil, muitas vezes é até prazeroso. Difícil mesmo é enfrentar de perto, cara a cara, esse visitante² que vem de longe e quando aqui aporta cai em sono profundo, embriaga-se pelo esquecimento, perde de vista sua origem e destino.
Para acolher o visitante e mantê-lo acordado, alimentei durante todos esses anos um amor grande e uma fé no que poderia nascer dessa cumplicidade, desse pacto íntimo com o meu objeto de pesquisa. A sensação de estar em alto mar e o barco à beira de um naufrágio me obrigava, dia a dia, a suplicar ao céu que as estrelas aparecessem, e, à terra, que me desse uma bússola, pois precisava de uma companhia para dar a partida. E olha que, há muito, dizem os Saterê-Maué que lá do céu a encantada Sucuri nos olha e pede companhia.³
imagem_Página_005Willian Turner. Mar em Tempestade.
Em socorro, o olhar repousado sobre a obra de Willian Turner, Mar em tempestade, com seus suaves efeitos atmosféricos de luz, levou-me à cidade esquecida, cuja imagem difusa, surgia envolvida pelo tênue véu do tempo. Em câmera lenta, ela vinha pálida, opaca e eu vertiginosamente tentava captá-la.
A obra surpreendia-me com sua extensão infinita de espaços e, nela, as coisas palpitavam tragadas em vórtice de ar e turbilhão de luz. A natureza confundia-se com a obra e a obra com a alma humana. Nesse jogo miraculoso do olhar, a cidade emergia majestosa por seus mistérios e indefinições. Saltavam aos meus olhos imagens veladas por uma bruma tonalizante, etérea. E foi esse ar de algo ocultado pelas névoas, tão presente na obra de Turner, que constantemente provocou a minha imaginação. Claro que isso se mesclava a um processo histórico de colonização, no qual grande parte dos vestígios, que poderiam revelar a presença dos povos nativos nesse lugar, foram totalmente soterrados. No entanto, sabia pelas ruas da minha infância, na cidade de Manaus, que no chão onde eu pisava havia o despertar de ecos do passado, visivelmente, inscritos nas rachaduras de ruas e calçadas. As rachaduras dignificavam o mito que a cidade tentava ocultar. Ali, a tradição estava nos dizendo que a Cobra-Grande havia serpenteado nas entranhas da terra, criando em sua superfície desenhos que, para os olhos de uma criança, nascida no interior da Amazônia, insinuavam os afluentes de um rio. Em verdade, espelhavam a crença no mistério fundador da nossa morada terrena, onde a Cobra é o primeiro ser que se anuncia. Esses desenhos me ensinavam que, enquanto um de nós sobreviver, a nossa marca, aqui e ali, ressurgirá mesmo que alguma força estranha tente extingui-la.
Os sinais, assim como acendiam também se apagavam nos advertindo que, quando uma coisa principia, uma outra começa a ser extinta. Então, a cidade que eu procurava e tentava aportar escondia-se por entre camadas sutis, enevoadas. O começo do começo fora barbaramente sepultado, assassinado pelo velho mundo e, agora, os que aqui chegam são tragados pela armadilha do esquecimento. Feroz armadilha, que nos arrasta, nos aprisiona sob preconceitos pobres e vazios de conteúdo. Seu mérito é nos reter, nos distanciar, cada vez mais, do lugar de onde viemos: a terra mater.
Uma imagem me ocorreu, naquele exato momento, a de Ulisses, quando, já bem próximo de sua Ítaca, enfrenta uma terrível tempestade e sua frota é deslocada para um outro lugar. Sente-se perdido num mundo estranho, espaço da não-humanidade, habitado por criaturas quase divinas. Seus habitantes são lotófagos, ou seja, comedores de lótus. Esse alimento sedutor, uma vez degustado pelos humanos, faz com que estes esqueçam de tudo, do seu passado e de quem são. O lótus torna-se um alimento perigoso para os humanos, que já trazem na sua constituição, a semente da lembrança e a consciência de quem eles são. Por isso, quem prova o lótus fica anestesiado, paralisado pelo esquecimento que congela, faz parar a vida, porém, a lembrança nos anima, nos traz o desejo de voltar, de regressar à pátria, ou à Ítaca que cada um alimenta dentro de si. O barco de Ulisses, por ser hospedeiro de alguns marinheiros que comeram o lótus, convive, no seu interior, com o esquecimento e a memória. Portanto, é um espelho da alma humana a refletir, em certa medida, o sentido desta pesquisa.⁴
imagem_Página_006Ruth Rocha. Odisseia, p. 28. Ilustração de Eduardo Rocha.
Daí que lembrar e esquecer parecem duas coisas díspares, no entanto, não são excludentes, e sim complementares, sendo uma a possibilidade da outra, pois, para haver lembrança, é preciso que haja esquecimento. Esse par de opostos sobrevive numa relação de ambivalência indissolúvel, são aspectos de uma mesma coisa que, ainda na diferença, figuram uma unidade. O esquecimento paradoxalmente está presente na lembrança.
Assim como a memória, a arte é ambígua, e move-se na sutileza do jogo entre revelação e ocultamento. A obra de Turner testemunha esse modo de ser e estar no mundo, de velar e desvelar. Esse artífice, quase mágico, que nos faz ver o invisível, transportou-me da forma mais alada possível, à cidade esquecida, colocando em minhas mãos várias chaves e, dentre elas, eu escolhi aquela esculpida em quartzo branco, que é a cor da memória e da morada da Avó do Mundo. Já Ulisses me advertiu do grande perigo: o esquecimento, e me animou a voltar a minha pequena pátria, ou morada ancestral, lá