Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Vida, uma Senhora Desconhecida: Filosofia, Ciência e Arte
Vida, uma Senhora Desconhecida: Filosofia, Ciência e Arte
Vida, uma Senhora Desconhecida: Filosofia, Ciência e Arte
E-book622 páginas7 horas

Vida, uma Senhora Desconhecida: Filosofia, Ciência e Arte

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Como diversos impasses contemporâneos têm sua origem na inversão das proporcionalidades, na unilateralidade, no dualismo, no processo descontrolado de desintegração, na ausência de uma globalidade criteriosa, de um eixo decisivo e de uma simultaneidade ternária mais ampla (Princípios, ponto de apoio, técnica; espírito, alma, materialidade; teoria, sentimento, prática; passado, presente, futuro etc.), o presente trabalho tem por objetivo responder a questões primordiais, geradas por posturas limitantes face à realidade caótica, incerta; multidimensional, abrangente e complexa, visando à elucidação do processo e das possibilidades de renovação e reformação da Constituição Ternária, não apenas através da Filosofia (como fundamentação crítica das teorias e das práticas e em sua função interdisciplinar), da Ciência do Homem (a mais necessária de todas as ciências), mas também dos imprescindíveis pontos de apoio, encontrados na Arte, na articulação estratégica (Arte de Viver) e na previdente sensibilidade (funcionalmente, a utilização analógica de todos os tipos de alavanca), como fulcro: ternariedade exemplificada e implícita na própria concepção filosófica e educacional de Nietzsche. Nos diversos campos do conhecimento e atuação humanos, como esta instigante ternariedade deve ou pode ser concebida, articulada, desenvolvida, corrigida e aplicada, de modo a encaminhar soluções mais efetivas – eis a questão central.
Com vistas ao que necessita de recondicionamento intencional/voluntário, ao que precisa ser reeducado, ao desenvolvimento integrador (tecnológico/mecânico e orgânico/vital; especializado/profissional e existencial), à utilização evolucionária das crises, aos critérios globais condizentes e à possibilidade de encaminhamento de soluções no foco original dos problemas, este trabalho focaliza a abordagem e a busca de respostas possíveis, viáveis, criteriosas – na História da Filosofia e na obra de Nietzsche – às desafiantes condição e constituição ternárias, em meio à própria vida, essa desconhecida.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de set. de 2021
ISBN9786525208725
Vida, uma Senhora Desconhecida: Filosofia, Ciência e Arte

Relacionado a Vida, uma Senhora Desconhecida

Ebooks relacionados

Filosofia para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Vida, uma Senhora Desconhecida

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Vida, uma Senhora Desconhecida - Flávio Luiz Mestriner

    CAPÍTULO I – FUNDAMENTOS INICIAIS

    Se toda perspectiva é, apenas, a visão a partir de um ponto, os pontos que condicionam as demais – embora inumeráveis, indispensáveis para se compor o conjunto, ou o todo –, constituem, naturalmente, os pontos de vista que complementam, relativamente, o da proposição inicial, em questão: a vida, em expansão, não deixa de solicitar, de modo explícito ou implícito, que se esteja aberto a incorporar, progressivamente, eventuais perspectivas outras, ainda não reconhecidas. Eis o reconhecimento inicial, o desespero – a realidade da limitação relativa – e, simultaneamente, a esperança: a possibilidade de relativa expansão epistemológica.

    Ao se iniciar, entretanto, pelo fundamental, primordial, pode-se indagar: do que sobrevive o homem? Pelo que vive, antes de tudo? Vive e sobrevive o homem, primeiramente, através da realidade concreta (física, corpórea; biológica; material, econômica). Sua realidade abstrata (pensamento, ideias, metafísica; princípios; Ética; ideais; regulamentos, normas, leis sociais etc.) é, obviamente, a contraparte integrante indivisível, se não, principal, na maior parte das circunstâncias. Se a alma, sob certa perspectiva, pode ser definida pela simultaneidade de corpo e mente, matéria e espírito, participa, pois, de ambas as realidades (física e espiritual). Se a primeira constitui o aspecto secundário (menor); a segunda, naturalmente, remete à dimensão principal (maior). O que pode articular e proporcionar o eixo (fulcro alavancador) remete, fundamentalmente, ao universo dos sentimentos, das emoções, bem como à convivência, aos relacionamentos humanos, às relações político-sociais, solidárias - suas diversas implicações. A arte do relacionamento social – que deve, necessariamente, permear as relações político-diplomáticas entre os povos, os governos de Estado, os diversos países e nações – tem sido, a partir da palavra dada, pronunciada e firmada, o foco do problema e da solução, o foco da Estratégia ao ser humano, ao longo dos séculos. Quando ocorre, todavia, a inversão da proporcionalidade entre Lógos (Palavra; discurso; razão) e materialidade (aspecto concreto, material; monetário), cai-se na inversão conflitante, causadora e multiplicadora dos problemas.

    A Arte de viver constitui-se a raiz do foco estratégico, da imunidade aos desafios (problemas) que mais condicionam o ser humano; já a grave negligência em relação à mesma, o encaminhamento eventual da perda deste foco e condição imune. Como se define e como se constitui, primeiramente, tal arte? Em sua profundidade, amplitude e largura, necessita a vida, antes de tudo, não somente de fundamentos e Princípios; mas de técnica, Ciência, Filosofia e Arte. Pode a arte primordial, assim, constituir-se como tal estratégia; possuindo diversos sinônimos, ou relações equivalentes, tais como: controle dinâmico da proporção entre os opostos, utilização da parte não manifesta, arte de corrigir, maleabilidade, adaptabilidade a qualquer mudança; sobrevivência e luta pela realização da existência.

    A vida, em sua relatividade implacável, constitui-se multidimensional. É, entretanto, em sua dimensão indefinível, que a arte tem mais a dizer e expressar. Ao encontrar os possíveis pontos de intersecção, pode a arte se conectar com a Ciência e a Filosofia, de modo a adquirir uma condição mais reexistente, global.

    1 FUNDAMENTAL ARTE DE VIVER

    Estende-se a arte de viver, infindavelmente, a todas as dimensões da existência relativa. Neste processo relativamente infinito, pode ser relacionada com tudo: do mais insignificante ao mais sublime, ou mais caótico - inclusive, a própria instabilidade do real e do momento presente. A própria vida, ela mesma, não deixa de ser mutante, provisória, inconstante, insegura; por vezes, incompreensível, limitada, precária, acidental, carente, tortuosa, agressiva, avassaladora, aprisionadora: o que se pode, pois, fazer com aquilo que o Inconsciente humano quer ignorar, excluir - o real, ao qual por vezes não se quer mirar, muito menos lidar? Eis, portanto, a importância da articulação e da ciência de viver, como imunização e prevenção (solução) inicial.

    Se não se pode dissimular, simular ou disfarçar a realidade em que se vive, ao menos, é possível não se ausentar do processo decisivo das consequências futuras: o próprio presente, em que tudo pode se determinar e decidir, proporcionalmente. Os fatores acima citados – em geral, pouco apreciados, muitas vezes rejeitados - não são apenas negativos, indesejáveis: podem ser utilizados para promover a revisão mais profunda de nossa concepção de filosofia educacional – inclusive, de educação funcional. Considerem-se os exemplos concretos, elucidativos: pode-se transmutar a própria insegurança de vida (algo, por vezes, inegável), ao se utilizá-la como fator fortalecedor da própria proteção, ou real impulsão, face ao processo existencial. Transmutando-a em uma insegurança tonificante, as ameaças podem ser redirecionadas (assimiladas a partir de uma nova perspectiva), e as situações ditas inseguras, utilizadas ao desenvolvimento de uma rearticulação comparativamente mais segura. E por que a precariedade não pode ser reconsiderada: ao invés de ser desprezada, sentida como fator animador à continuidade do próprio empenho? O limite, ao não ser negado, mas utilizado, pode gerar a indispensável confrontação - ampliadora, expansiva - consigo mesmo, ou com a própria condição restrita; a própria carência, ser redimensionada a estimular a devida valorização da vida e de seus fomentos; a própria tortura da direita, ser reafirmada para sensibilizar a ambas as sinalizações da existência (não, para incidir na unilateralidade abiótica, por vezes, fatal); a agressão (não no sentido literal do termo, mas no sentido do necessário estímulo), dentro do seu limite efetivo (sensível; construtivo), útil à (auto) proteção; a violência - como estimulação útil, potência direcionada ou profunda coexistência -, pacificadora; o que surpreende, a servir, circunstancialmente, como preparo contínuo da própria prontificação; o desastre, como admoestação para que não se deseje além do limite proporcional (a palavra desidera, desiderare - proveniente de sidhus, siderare, astros -, remete, literalmente, a des-astrar; perder a referência ao alto venerado); o condicionamento, de um ponto de vista mais inclusivo ou abrangente, através da sua utilização evolucionária, ser utilizado de modo a transformar compulsórios aprisionamentos em algo mais intencional, voluntário (em um aprisionamento libertador). No enfrentamento de toda a vida, treina-se, inumeráveis e incansáveis vezes, precisamente, para se transmutar qualquer obstáculo (fardo, azar etc.,) compulsório em algo mais voluntário, consciente, a partir do recondicionamento (mudança de perspectiva), possível transformação pelo livre-arbítrio. Torna-se possível, por conseguinte, alcançar a condição razoável (mínima, suficiente) para que se componha a indispensável proporção. De modo análogo, pode-se, relativamente, expandir tal processo a tudo: a como proceder, pensar, agir; caminhar, dialogar, resolver conflitos, problematizar, solucionar etc. Treinam-se os mais diversos aspectos como real e verdadeiro estudo; inclusive, o próprio aprender a morrer (precisamente, como estímulo à renovação de si próprio) -: para se treinar, enfim, o que é decisivo: reaprender a viver.

    2 O REDIMENSIONAMENTO DA FUNÇÃO INTERLIGADA: A VONTADE

    Necessita, fundamentalmente, o homem do redimensionamento de sua vontade, da renovação constante de sua vitalidade global, bem como do amplo, contínuo estímulo à sua voluntariedade, sentimento e intelectualidade – ao seu espírito como um todo.

    Como se realiza o redimensionamento da própria vontade? Eis o ponto inicial: se a vontade é condicionada, depende, primeiramente, da forma e função do corpo humano – a forma, o sistema ósseo-muscular-digestivo, a condicionar a função, a própria voluntariedade. Dentro da tridimensionalidade indivisível de que se compõe o homem, obviamente, o próprio pensamento (mentalidade; programação mental; a própria autoeducação) tampouco deixa de exercer influência sobre a mesma; assim como o próprio sentimento, fator sensível decisivo (tanto da perspectiva potencial, como do ponto de vista negativo, ao se manifestar como desvirtuador da própria condição voluntária). Entretanto, realiza-se a autoeducação da vontade, de diversos modos possíveis. Buscando-se, todavia, a unanimidade plausível, viável: através da simples utilização dos problemas, que não devem ser negados, dispensados - a pseudossolução (a solução sem foco, a solução complicadora) vem a ser, precisamente, a sua falta de utilização. Fundamentalmente, tal educação se realiza através da auto-habituação, da autocorreção, da verbalização integral (refletida, pensada; sentida, aplicada, posta em ação). É a autêntica arte da vida o que pode proporcionar o insubstituível estímulo à geração de novas forças vitais, a fim de que o homem – particularmente, nos momentos críticos, no limite do próprio e inegável cansaço existencial ante os revezes da existência -, possa dela extrair a força libertadora, renovadora, a fim de realizar a condição de continuidade da própria sobrevivência e realização. Desse modo, é na renovação constante de sua vitalidade global - da qual o intelecto, a vontade e a emoção ou sentimento, constituem aspectos componentes essenciais (que não devem ser abordados separadamente) -, que se torna mais saliente sua importância.

    Tal arte mais ampla constitui-se a própria arte de viver: tema à vida inteira, pode, também, ser desenvolvida sem restrições formais, de modo gradual, expansivo. Sejam revisados os fundamentos desta ciência e arte, a partir de noções primeiras, fundamentais, em alguns dos pensadores da História da Filosofia.

    3 SÊNECA

    INTRODUÇÃO

    Lúcio Aneu Sêneca nasceu em Córdoba, Espanha, em 4 a.C., tendo falecido em Roma, em 65 d.C. Aprofundou as doutrinas pitagórica e estoica. Bem-sucedido na carreira política, torna-se preceptor e, posteriormente, o próprio conselheiro do imperador Nero. Não conseguindo evitar o destino vicissitudinário, cai em desgraça por volta do ano de 62 a.C., abandonando a carreira política. Após alguns anos, acusado de traição, recebe do próprio imperador Nero a ordem de dar cabo a própria vida (o próprio ato de suicídio). O modo como o filósofo se confronta com a morte é narrado por Tácito nos Anais: colocando em prática os princípios estoicos, Sêneca aceita a morte injusta, através da ataraxia (imperturbabilidade, ausência de inquietação).

    Quais devem ser, pois, os critérios condutores do comportamento humano? Se o homem deve fazer-se guiar pela razão, que seja, portanto, não a razão estanque (apartada do que é vital ao ser), mas a razão intimamente relacionada à própria vida; em conexão com o sentimento indispensável e as possibilidades de ação (fecunda). Nisto pode residir sua verdadeira natureza humana como um todo: o homem sábio não deve evitar, absolutamente, todas as paixões, mas as paixões descendentes (decadentes, nocivas, degenerativas).

    Se, por um lado, é aceitável o fato de o filósofo buscar o ideal da impassibilidade perante o que não se demonstra passível de ser controlado, por outro, a qualidade de um verdadeiro sábio pode ser, mesmo, a apatia, precisamente, no sentido da ausência dos sentimentos vitais (como a própria fecundidade em si, indispensável à própria racionalidade)? Pode ser a indiferença, já que aquele que detém certo saber deve ser capaz de diferenciação – sobretudo, dos aspectos diversos, componentes das infindáveis e diferenciadas dualidades (Necessidade-contingência; fatalidade-livre-arbítrio; indispensabilidade-dispensabilidade; amigo-inimigo etc.) e composições ternárias que caracterizam a própria existência? É possível reconciliar a razão (necessária, vital) com a (sã) sensibilidade instintiva; a dimensão espiritual (dimensão maior) com a inegável dimensão corporal (dimensão menor), razoavelmente. O ideal de moderada razoabilidade vem a ser muito justificado uma vez que inclui a não escravização à própria racionalidade (racionalismo opressor, castrador, limitador). É razoável sermos racionais, mas até o ponto em que a própria razão não venha a tolher ou negligenciar a intuição prontificadora, o sentimento (capaz de envolver; de ser abarcante), a ação focal, a decisão realizadora, a concreta autodeterminação, o próprio instinto são, bem como a sensibilidade para recompor o todo (suficiente) da própria existência - sobretudo, nos momentos em que tais dimensões e aspectos, necessariamente, sejam ou possam ser solicitados.

    Como um dos focos da educação e autoeducação, o autocontrole não deve implicar - como sugere a própria doutrina estoica, a partir de Sêneca – a rigidez em excesso, a preocupação obstinada, o que viria a ser prejudicial; mas em algo intrínseco à autenticação da própria identidade.

    Se a simplicidade não está entre as virtudes mais cotadas, pode, isto sim, ser reveladora da própria natureza autenticada, e proporcionar verdadeira alegria.

    Se existe uma grande diferença entre viver com simplicidade e viver de modo descuidado, é preciso encontrar o reajustamento da medida para perceber algo, aparentemente, óbvio: preferível receber o desprezo pela simplicidade ao tormento conflitante de uma inversão desproporcional, de uma postura simulada.

    Se a mente humana não deve se alienar, desligando-se do cotidiano, deve ser capaz, também, de transcendê-lo, ao ascender, por exemplo, aos cumes vida mental, espiritual, sem qualquer receio.

    Conciliar sociabilidade e interioridade, convivência social e busca interior, solidão e solidariedade, constitui parte da vivência fundamental, sabendo adequar a proporção efetiva à realização de cada momento e circunstância. Se vem a ser contraproducente submeter o espírito à constante tensão, o relaxamento através da higiene salutar (através do lazer, dança e jogos) pode ser tão necessário quanto os deveres.

    Um surpreendente dinamismo pode possuir a perspectiva estoica: até mesmo um toque de loucura pode ser de utilidade. Em sua Antologia Ilustrada de Filosofia, Ubaldo Nicola cita os gregos clássicos:

    Acreditando-se no poeta grego – às vezes é bom fazer alguma loucura – ou em Platão, inutilmente bate à porta da poesia quem se mantém sempre senhor de si, ou, enfim, em Aristóteles, nunca houve um grande invento sem que tivesse uma pitada de loucura (NICOLA, 2011, p.117).

    Reflexões primeiras sobre a obra Da Tranquilidade da alma, de Sêneca

    Na obra Da tranquilidade da alma, das diversas menções úteis à elucidação do tema (As possibilidades de reformação da constituição ternária por meio da arte, da ciência e da filosofia), podem-se ressaltar algumas mais significativas: dentre elas, "como se portar na infelicidade" vem a ser um exemplo do texto inicial.

    Quem descobre a necessidade, pode autenticar a realização da educação primordial em si, a partir da qual tudo começa - inclusive, a coragem. Se o desejo (sobretudo, o desejo sem qualquer critério e direção) tende a conduzir o homem à perda do foco, pode a necessidade (re) encaminhá-lo à efetivação de qualquer processo realizador – o que vem a ser o foco principal de qualquer atividade criteriosa, qualificada. Relativamente à necessidade fundamental da existência humana, o foco não deixa de ser o eixo do controle da própria vitalidade (o próprio coração), raiz primeira, inclusive, da própria coragem. Sêneca, em um discurso inspirador, diz a respeito da necessidade, da Natureza e de seus constrangimentos:

    Desde que eles começam a se resignar, em lugar de se revoltar, a necessidade lhes ensina a suportar sua sorte com coragem e o hábito torna-a suportável. Encontrarás em qualquer situação divertimentos, descansos e prazer, se te esforçares para julgar teus males leves, antes de considerá-los intoleráveis. O melhor título da natureza ao nosso reconhecimento é que, conhecendo todos os sofrimentos para os quais estávamos destinados na vida, para abrandar nossos padecimentos ela criou o hábito que nos familiariza em pouco tempo com os mais rudes tormentos. Pessoa alguma resistiria, se, ao continuar, a adversidade conservasse a mesma violência que tem na primeira desgraça (SÊNECA, 1973, p. 276).

    Os homens vivem e participam do mesmo Universo, cuja ordem dinâmica vem a ser a mesma a todos. Se o condicionamento universal (as leis universais, as ordens absolutamente relativas, os teoremas absolutamente reativos) os condiciona ou escraviza, que tal ordem (escravidão) possa, realmente, ser intencional, voluntária, com uma resposta final, humana - o que pode se realizar quando, para tal, assume o próprio homem os condicionamentos indispensáveis, não de modo compulsório, mas a partir de uma perspectiva de aceitação deliberada; e, também, renovadora, libertadora.

    Estamos todos ligados à fortuna: para uns a cadeia é de ouro e frouxa; para outros é apertada e grosseira, mas que importa? Todos os homens participam do mesmo cativeiro, e aqueles que encadeiam os outros não são menos algemados... (...) Toda a vida é uma escravidão. É preciso, pois, acostumar-se à sua condição, queixando-se o menos possível e não deixando escapar nenhuma das vantagens que ela possa oferecer: nenhum destino é tão insuportável que uma alma razoável não encontre qualquer coisa para consolo. Vê-se frequentemente um terreno diminuto prestar-se, graças ao talento do arquiteto, às mais diversas e incríveis aplicações, e um arranjo hábil torna habitável o menor canto. Para vencer os obstáculos, apela à razão: verás abrandar-se o que resistia, alargar-se o que era apertado e os fardos tornarem-se mais leves sobre os ombros que saberão suportá-lo (SÊNECA, 1973, p. 276).

    A razão que favorece a vida, a razão vital (e não, o racionalismo castrador), esta tem direito à participação, à inclusão. O binômio necessidade-desejo, embora pareça repetitivo, sempre precisa ser reiterado, elucidado, uma vez definido como a própria luta antecedente de toda a existência humana: a partir de sua indistinção, no entanto, inúmeras confusões desnecessárias podem acontecer. Se os desejos devem, assim, ser limitados à dimensão, complementarmente, mais qualitativa, em relação à necessidade (que, idealmente, deveria prevalecer, em todas as dimensões da existência), convém preparar-se a uma das lutas mais terríveis da existência humana. Feliz, pois, daquele que já a dominara, pois quem sofre com as desproporções, desmedidas, deslizes, inversões, (auto) enganos e tentações, cai em tendências relativamente mais acidentais, desastrosas, como vítima da fatalidade. Ainda que possa o homem sentir a picada de desejos diversos, deve ele precaver-se, em relação à qualidade e medida deletérias, evitando a inversão, a desproporção, bem como as consequências degenerativas à alma.

    Como se realiza tal imunização? Através da inserção de anticorpos: o que equivale à sua inoculação através de uma estimulação (ameaça), que, por sua vez, acabe sendo eficaz, imunizadora. Sem isto, sem a (auto) ameaça, mais facilmente pode o ser humano se tornar vulnerável: a maior das ameaças pode ser a seguridade aparente, superficial (a própria ausência de estímulos ameaçantes). Sendo inevitável, inegável - por isso mesmo, aceitável -, que tal picada seja, pois, de desejos necessários, relacionados com a medida da própria proporção proporcionadora, estratégica.

    Em qualquer nível ou dimensão (mecânica ou intelectualmente, sensorial ou sociologicamente; sentimental ou ideologicamente etc.), saber, por exemplo, permanecer relativamente insatisfeito, não deixa de ser um dos exercícios, treinamentos da proporção forjadora do respectivo binômio (necessidade-desejo, anteriormente citado) - difícil, mas necessário treino: paradoxalmente, tal insatisfação vem a ser satisfatória. Ao contrário da satisfação excessiva, que significa a própria condição saturada (insatisfatória). Eis o que Sêneca afirma a respeito:

    Não descortinemos, de outro lado, um campo vasto demais aos nossos desejos: limitemos o voo aos objetos mais próximos, visto que não podemos pensar em reprimi-los inteiramente. Renunciando ao que é impossível ou difícil demais para realizar, apeguemo-nos ao que, estando mais próximo, anima nossa esperança; mas sem esquecer que todas as coisas são igualmente frívolas e que, se as aparências diferem, é sempre no interior a mesma futilidade. Não invejemos as situações elevadas: pois o que julgamos ser o cume não é mais que a beira de um abismo. Em compensação, aquele que a sorte pérfida colocou sobre estes perigosos picos diminuirão os riscos que correm, se se despojarem do orgulho natural e reduzirem sua fortuna na medida do possível, a um nível mais modesto (SÊNECA, 1973, p. 216).

    Ou ainda:

    Todavia, não nos preservará melhor das inquietudes deste gênero do que fixarmos sempre um limite para nossas ambições, sem esperar que a fortuna nos interrompa, como é seu costume; é suspendermos nosso progresso muito tempo antes do instante fatal. Do destino ainda sentiremos a picada de muitos desejos; mas estes serão desejos acanhados, que não nos poderão lançar em intermináveis aventuras

    Estes são caprichos que a fortuna se permite: Por que, diz ela, poupar-te, criatura débil e trêmula? Tu serás trespassada e crivada de golpes, justamente porque não sabes oferecer o pescoço. E tu, tua vida será prolongada e terás uma morte mais rápida, porque em lugar de desviares a cabeça ou de te cobrires com as mãos, esperas o ferro com coragem. Aquele que temer a morte jamais fará obra de homem, mas aquele que disser a si mesmo que, desde o instante em que foi concebido, sua sorte foi decidida, governará sua vida em conformidade com esta decisão; e por prêmio terá a vantagem, graças a este mesmo vigor de alma, de jamais se deixar surpreender por qualquer acontecimento que surja. Considerando antecipadamente tudo o que pode acontecer, como o que irá realmente acontecer, ele amortecerá o choque de todos os males: pois, para quem está preparado e a espera, a violência de todas as desgraças se abranda; e somente acham seus golpes terríveis os que se julgavam em segurança e que não tinham diante de si senão perspectivas felizes (SÊNECA, 1973, p. 217).

    Não se surpreender equivale a ter uma reserva prevista, meditativa (ao mesmo tempo, de ação e reação), a estar prontificado - prontificação que se reflete no vigor de alma (e vice-versa): vigor, por sua vez, condicionado pelo treinamento multilateral de mente e corpo, matéria e espírito. Por outro lado, de nada poderá adiantar a coragem e, mesmo, o medo, se ambos não forem úteis.

    Eis a doença, a escravidão, minha casa que desmorona e se incendeia: nada de tudo isto é inesperado para mim. Eu sabia no meio de que caos a natureza me condenava a viver. Quantas vezes ouvi na minha vizinhança prorromper a voz das carpideiras; quantas vezes vi na minha frente passarem diante da minha porta os archotes e as tochas que precedem os funerais prematuros (SÊNECA, 1973, p. 217).

    As desgraças são, relativamente, inegáveis, precisamente, por serem os referenciais profundos à nossa própria humanidade. Contudo, a condição prematura pode corresponder à acidentalidade, ou ser consequência da inconsciência, da casualidade, o que muito se diferencia da existência voluntária e intencional.

    Uma diferença que, por vezes, também pode passar despercebida é a existente entre a insensibilidade ao perigo e o mero desconhecimento ou ignorância, que todos – ou a maioria – parecem partilhar em relação a muitos aspectos, dimensões e fatos do existir.

    A grande maioria dos homens, ao começar a navegar, esquece-se da tempestade (SÊNECA, 1973, p. 218)

    A maioria dos homens tende mais à imaginação, e não à percepção, que é o foco principal. Quem imagina, geralmente não percebe o que é indispensável: ao idealizar que tudo permanece bem (como a calmaria; ou com a unilateral luminosidade), ignora que tudo tem uma construção subjacente, implícita - o que permite o aflorar, a manifestação do que constantemente se transforma, do que emerge, constatável na própria visibilidade aparente.

    A automistificação em relação a si mesmo (a imaginação de que certos processos indesejáveis jamais poderiam acontecer consigo) pode gerar a falta de dúvidas, a insensibilidade, e não o processo sensibilizador necessário de auto- advertência previdente.

    O que acaba por gerar o processo alienante, eventual armadilha à própria consciência vital, que se sensibiliza com o enfrentamento de dúvidas, aplicadas de modo esclarecedor, gerador das convicções dinâmicas. Ao contrário, a imaginação de que certos acontecimentos (infortúnios; processos acidentais, até calamitosos) jamais poderiam ocorrer em nosso derredor, atividade, lar ou dentro de nós mesmos, não nos induz a medidas, ações e reações preventivas antecipadas, o que poderia incluir a transição (mudança) da defasagem retardatária a circunstâncias, padrões e condições renovadores, benéficos:

    Aquilo que pode ferir um pode ferir todos os outros. Se nos convencermos profundamente desta máxima e se, ao assistirmos às desgraças que cada dia caem sobre nosso próximo, pensarmos que elas podiam muito facilmente cair sobre nós, seremos pessoas armadas muito tempo antes do ataque. Não há tempo para nos fortificarmos, quando o perigo nos alcança. Eu não imaginava que isto me aconteceria! Jamais se acreditaria que isto seria possível E por que não? Onde está, pois, a riqueza, que a miséria, a fome e a mendicidade não podem alcançar? Onde está a magistratura, que a pretexta, o bastão augural e o calçado nobre não são acompanhados de acusações humilhantes, da crítica do censor, de mil infâmias e do desprezo da multidão? Onde está a onipotência, que não é ameaçada pela destruição e pelo esmagamento das violências de um senhor ou de um carrasco? E um longo intervalo de modo algum é necessário: no espaço de uma hora passa-se do trono aos pés do vencedor (SÊNECA, 1973, p. 218).

    Tal transição se apresenta evidente, não somente na Natureza, como pode ser percebida no próprio meio social: analogamente, pode-se transpor à nossa própria existência concreta, individual, bem como a tudo que se possa observar. Tal processo de sensibilização, necessariamente, inclui a autocrítica (autossugestão ativa, sensível, reflexiva), a assimilação útil, a incorporação solidária e a utilização respeitosa (responsável) da experiência humana mais ampla, fim de responder às necessidades próprias e alheias.

    Persuade-te, pois, de que tudo está sujeito a mudanças e de que tudo que cai sobre os outros pode igualmente cair sobre ti (SÊNECA, 1973, p. 218).

    Ante a adversidade, contudo, há uma estratégia tão simples quanto óbvia: a antecipação. A estratégia antecipada - como a de se prontificar antecedentemente, gerar e encaminhar, previamente, necessárias condições ao seu enfrentamento - parece essencial para que se possa desarmar o que é adverso. É mergulhando no âmago das próprias adversidades que se pode encontrar a possibilidade de transmuta – inclusive, da dificuldade em felicidade.

    Sêneca aborda, também, a questão de se evitar a agitação estéril:

    Em seguida, a primeira coisa a evitar é desperdiçar nosso esforço ou em objetos inúteis ou de maneira inútil (SÊNECA, 1973, p. 218).

    Quem afirmou que foi ensinado ao homem a direcionar seu esforço à realização mais adequada de sua própria existência? Eis uma das mais sérias questões, pois se trata de todo o comprometimento, de todo o engajamento pessoal com o próprio existir, de todo o jogo da vida, de seu processo - de seu processo dramático, dos resultados conclusivos, bem como da própria realização, princípio, processo e finalização (destino) da existência humana.

    Diante da relatividade absoluta da vida - que constitui, precisamente, o relacionamento entre o certo e o incerto (gerador de incertezas, desencadeador de muitas dúvidas) - e do próprio desconhecimento (o que, inevitavelmente, pode dar margem à vulnerabilidade e a suscetibilidades), como, efetivamente, direcionar o esforço global à realização integral da desafiante existência multilateral e dinâmica?

    Para que a existência humana se potencialize, progrida e se desenvolva, há a necessidade de que não se inverta a proporcionalidade da realização mais útil, produtiva, efetiva: a que obedeça e siga a ordem relativa, simultânea, proporcional de realização com esforço mínimo e rendimento potencializado: fundamentada mais no Verbo do que na Verba, mais no espírito do que na materialidade, na qualidade do que na quantidade, na vitalidade do que na profissão; mais na parte substancial do que na aparente, na educação do que na mera instrução, na educação do que no comércio, na sugestão do que na instrução, na sensibilidade do que na informação, na prevenção do que na remediação (ou provocação); mais na fecundidade do que na festividade, na percepção do que na imaginação e exibição, na imunidade do que na inimizade, no relacionamento do que nas meras palavras, nas consequências do que na diferença aparente, na eficiência do que nas alternativas, na realização do que no consumo, no reaproveitamento do que no desperdício, na autodisciplina (autocondicionamento) do que nas condições externas, na iluminação (solução alcançada pelo espírito) do que nas luzes (externas); mais no alavancamento do que na tecnologia, na competência do que na dedicação, no autocontrole do que na intervenção externa, na autorrealização do que na reivindicação externa, na personificação do que na titularidade, e assim por diante. Apesar de a prática ser o aspecto mais árduo, difícil, pode este ser o direcionamento inicial, eficaz, à realização mais útil, humana, potencial e proveitosa.

    O movimento, a agitação e a ação estéreis, sem função ou direção efetiva, que sentido podem ter? Sentido, mesmo, provém, tanto de sentir (como um aspecto abrangente, a envolver o pensar e o agir), como do direcionamento mais funcional, consequente.

    Quero dizer, imaginar ambições irrealizáveis, ou reparar um pouco tarde, uma vez satisfeitos nossos desejos, que nos esforçamos sem proveito. Em outras palavras, evitemos, de um lado, os esforços estéreis e sem resultado, e de outro lado os resultados desproporcionados ao esforço. Pois é quase certo que nosso humor se entristeça depois de um insucesso, seja depois de um sucesso do qual nós temos de nos envergonhar (SÊNECA, 1973, p. 218).

    Ainda que o fracasso possa ocorrer, deve-se buscar o real entendimento e sensibilidade: a solução inicial pode-se revelar em meio ao treinamento que permeia a consecução de um processo perseverante, apesar das ocasionais frustrações, o que significa não apenas o treinamento da resistência voluntária, emocional, como do processo contínuo - a continuidade a representar a própria transformação (solução), apesar da experiência adversa, contrária, até mesmo fracassada. Este entendimento e aplicação efetivos não deixam de remeter, por assim dizer, ao treinamento simultâneo da própria resistência intelectual.

    Até mesmo a vergonha pode ser incorporada como processo de autenticação da própria transformação: inclusive, a cultura primeira, primordial, não deixa de ser a própria cultura da vergonha:

    É preciso sentir bastante vergonha. A vergonha é indispensável. Temos que sentir muita vergonha. Quem não sente vergonha já perdeu a sensibilidade normal. Quem tem sensibilidade normal, sente vergonha com qualquer coisa errada. Mas a vergonha não deve ser acumulada, deve ser aplicada, corrigida,

    Uma escritora muito famosa, Ruth Benedict, lançou um livro chamado O crisântemo e a espada. Ela morou no Japão. Ruth Benedict diz, no livro, que a cultura japonesa é a cultura da vergonha. Realmente, o japonês, por qualquer coisa, sente vergonha (SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO VITALÍCIA, 2000, p. 145-146)

    Se o Ocidente é a cultura do orgulho – orgulho pelas conquistas em relação à natureza, pelos progressos da ciência, pelo desenvolvimento técnico, pelo avanço tecnológico, pela modernidade e seus estilos futuristas de vida -, o Oriente, tradicionalmente, é seu oposto relativo: a cultura da vergonha. Se o orgulho como consequência da responsabilidade respeitosa, tem grande valor funcional, substancial, a cultura da vergonha, aplicada, pode ter valor não apenas aparente, mas prático, útil, transformador.

    Sêneca escreve a respeito da necessidade de se privar da precipitação, da existência agitada, da agitação inútil e sem finalidade, bem como da fadiga inútil, das marchas desordenadas – o que se revela muito diferente da previsão, do movimento produtivo com objetivo claro, do cansaço para o alcance eficaz de objetivos inadiáveis, de processos (marchas) reordenados.

    É preciso privar-se da agitação desregrada, à qual se entrega a maioria dos homens, que vemos precipitarem-se alternativamente nas casas particulares, nos teatros (SÊNECA, 1973, p. 219).

    Se a pessoa mais ocupada pode se demonstrar a mais respondível às solicitações (internas, externas; individuais, sociais), consequentemente, a mais responsável, a mais capaz de realizar o que venha a ser indispensável, o exagero de atividades (sobretudo, as inúteis) e informações - sem critério (a sensibilidade) e proporção -, pode ser pernicioso, ao espírito e à normalidade da realização humana: causa, inclusive, da perda de foco na própria Ordem dinâmica do cotidiano, fonte de stress descontrolado. Sêneca cita, então, Demócrito:

    Quem quiser viver com a alma tranquila, não deve ter muitas ocupações nem de ordem particular nem de ordem pública". Trata-se naturalmente de ocupações inúteis, pois, desde que elas são necessárias, tanto particulares quanto públicas, devemos ter não somente muitas, mas inúmeras; ao contrário, quando nenhum dever imperioso nos ordena, devemos saber reprimir nossa atividade: pois quem multiplica suas ações se expõe a cada instante à sorte. Ora, o mais certo é provocá-la o menos possível, mas pensar nela sem cessar, sem jamais confiar na sua constância (SÊNECA, 1973, p. 219).

    Se ninguém está inteiramente imune às inevitáveis, inegáveis desgraças da existência, revela-se o sábio com condição suficiente de controlá-las, até mesmo, de transformá-las, uma vez que realiza a previsão do necessário; possuindo reserva de (re) ação, decisão e sensibilidade ante os obstáculos:

    Eis que isto nos leva a dizer que nada acontece ao sábio contra sua expectativa: não o subtraímos das desgraças humanas, mas sim dos vícios humanos; e todas as coisas lhe sucedem não conforme seus desejos, mas conforme suas previsões. Ora, o que ele prevê, antes de tudo, é que os obstáculos podem sempre opor-se aos seus projetos. Não é, pois, evidente que o pesar causado por uma decepção é bem menos sensível quando não se prometeu antecipadamente o sucesso com segurança (SÊNECA, 1973, p. 219).

    Sêneca aborda dois excessos, contrários à tranquilidade da alma: a obstinação e a leviandade; recusar-se a qualquer mudança e nada suportar. Se a obstinação (contrária à flexibilidade) é antiestratégica, a leviandade vem a ser superficial (ilusória), uma vez que em nada se concentra. À tranquilidade relativa, normal, da alma, parece mesmo necessário o critério baseado em uma visão global: apegar-se e desapegar-se, flexível e necessariamente – indispensável não só para se evitar a fixidez (rígida) e a excessiva versatilidade (sem a focalização necessária), como imprescindível à adaptabilidade sobrevivente, às circunstâncias cambiantes, inconstantes, instáveis.

    Escreve Sêneca, também, a respeito de um dos focos da existência: a própria interioridade humana. Se a realização ou o relacionamento fundamental não deixam de remeter ao aspecto interno – sem negar, absolutamente, o exterior, a importância da socialização - pode-se aprofundar tal dimensão (interna), o que coincide com a própria liberdade original, fisiológica, natural, gratuita. Como sugere o filósofo, renunciar aos benefícios meramente aparentes (exteriores) parece remeter a não se arriscar à realização dos esforços inúteis: o meio externo, dado a uma multiplicidade indefinida de variáveis, corresponde, em geral, à incerteza da validação dos resultados dos próprios esforços efetuados. De onde, o central ato de recolher-se em si, a vital autoconfiança, a concentração no próprio sacrifício (esforço criterioso; nas palavras do próprio Sêneca, na autoconsagração). Descobrir a dimensão útil das próprias desgraças não deixa de ser surpreendente, embora um treino ordinário, realizável através do disciplinamento que utilize as próprias e eventuais contrariedades, as questões cruciais – inevitáveis, porém controláveis – com que, mais cedo ou tarde, de uma forma ou de outra, o homem acaba por se defrontar.

    De interesse necessário à observação e ao aprendizado do espírito, a originalidade com que respondem alguns dos personagens, por Sêneca citados (Zenão, Teodoro e Júlio Cano), às questões marcantes (como as de vida e morte) - algo como extrair das perdas o núcleo proveitoso à transformação crescente, espiritual:

    Quando lhe foi enunciado o naufrágio no qual tudo o que possuía foi tragado pelo mar, nosso Zenão disse: A fortuna quer que eu filosofe mais desembaraçadamente. Um tirano ameaçava o filósofo Teodoro: de mandar matá-lo e mesmo de privá-lo da sepultura: Tu podes, disse-lhe este, dar-te este prazer: existem aí 2,7 decilitros de sangue sobre os quais tem todos os direitos, quanto à sepultura, és estranhamente ingênuo, se crês que me aflijo por apodrecer sobre ou debaixo da terra" (SÊNECA, 1973, p. 220).

    A quem verdadeiramente se educa, a quem efetivamente se dedica ao estudo da própria existência e do seu sentido profundo, a condição mortal vem a ser o fator instigante, estimulante - constantemente utilizável - a descobertas diversas e fecundas, inclusive, a de atestar, revalidar a condição como protagonista valoroso, insubstituível, do próprio drama paradoxal: quem tem vida, ao se esquecer, negligentemente, de sua condição mortal, amortece-se pela própria inconsciência e inutilização do maior estímulo conscientizador. Por sua vez, quem se reeduca a partir da sensibilização profunda de sua transitoriedade, da eterna efemeridade, que constitui a temporalidade, pode redimensionar o momento e sua aplicação, renovando-o: através da visão do passado (ações) e revisão no presente, expandindo e ampliando-o, através da previsão do futuro (projetos); reagindo e recondicionando os próprios estímulos à sensibilidade e ao sentimento (aspecto mais abrangente), podendo transformar, assim, o que for preciso:

    Eis a tranquilidade no meio da tempestade! Não é digno da imortalidade este homem que procura na sua morte uma prova da verdade, que nos últimos momentos de vida interroga sua alma exalante, e que, não satisfeito de instruir-se até a morte, quer que a morte mesma lhe ensine alguma coisa. Pessoa alguma jamais filosofou por tão longo tempo. Não abandonemos depressa demais este grande homem, do qual não se pode falar a não ser por veneração: sim, nós transmitiremos teu nome até a posteridade mais afastada, ilustre vítima, cuja morte ocupa um tão grande lugar entre os crimes de Calígula! (SÊNECA, 1973, p. 220).

    Se, por vezes, vem a ser inútil a mera especulação (apenas entendimento e compreensão, sem acompanhamento, confirmação, comprovação do ser como um todo; sem a experiência efetiva e a sensibilidade) – a simultaneidade de entendimento e sensação, entendimento e sensibilidade pode conduzir-nos a um dos sentidos fundamentais. Desta perspectiva, até que ponto pode ser válida, exclusivamente, a mera especulação? A verdade é que o fim (morte) parece ser o reflexo (espelho), efetivamente, de como se viveu, e com que direção, critérios e sentido se realizou a vivência de todo o processo. Se pode ou não ser evidente a possibilidade da existência espiral após a morte individual, não é menos real o fato de que nossa forma (corpo) retorna ao mundo físico, concreto, e nossa função se dissipa na atmosfera. Por sua vez, pode a alma imortalizar-se, fundamentalmente, através da própria descendência física (filhos, netos etc.) e mental (fecundidade da própria obra, intelectual e / ou espiritualmente falando; discípulos, que podem ou não dar continuidade ao trabalho da geração precedente). A atitude psicológica diante de um fato tão sério, controverso, pode, entretanto, mostrar-se espirituosa, viva, como no exemplo a respeito do qual escreve Sêneca:

    Crês tu que Cano dava tanta importância ao seu jogo? Ele zombava do carrasco. Seus amigos estavam consternados em perder tal homem Por que esta tristeza?, disse-lhes, Vós me perguntais se a alma é imortal: eu irei sabê-lo agora mesmo. E até o último instante ele não cessou de procurar a verdade e de perguntar à sua própria morte a solução do grande problema. Seu filósofo o acompanhava, já o aproximavam do túmulo, onde cada dia eram oferecidos sacrifícios a César, nosso deus: Em que pensas neste momento, Cano?, perguntou-lhe o filósofo; em que disposição de espírito te encontras? Tenho, respondeu Cano, a intenção de observar neste instante tão breve se vou sentir minha alma elevar-se. E ele prometeu, caso descobrisse alguma coisa, tornar a voltar, a fim de instruir seus amigos sobre a sorte das almas (SÊNECA, 1973, p. 220).

    Sêneca discorre sobre o eventual desgosto pelo gênero humano, advindo com a quantidade de crimes, com a raridade da retidão, com o desconhecimento da inocência e da sinceridade, com a observação dos lucros e paixão sem quaisquer regras, a ambição desmedida, a rebaixar a condição humana. Se os desgostos - sabendo-se utilizá-los - podem fortificar o ser humano, deve o homem evitar a formulação de ideais impossíveis de serem realizados. Se a vida vem a ser, simultaneamente, destra e tortuosa, deve-se evitar a imaginação excessiva, fortalecendo-se a percepção previdente, dada a inexistência da retidão existencial sem a tortuosidade da própria vida e de suas vias incertas - o que não quer dizer, absolutamente, que não se devem buscar e cultivar as virtudes do próprio caráter.

    Acrescentemos que se presta melhor serviço ao gênero humano ao se rir dele do que ao lamentá-lo: o gracejador nos deixa alguma esperança de melhora, o outro se aflige estupidamente com os males que deseja remediar. Enfim, para quem julga as coisas de um ponto de vista superior, uma alma mostra-se mais forte abandonando-se ao riso do que cedendo às lágrimas: visto que não se deixa perturbar a não ser por uma emoção muito superficial e que não vê nada de importante, nada de sério, nem mesmo de deplorável em toda a comédia humana (SÊNECA, 1973, p. 221).

    Antes de tudo, cumprindo-se com os próprios deveres e exercendo a solidariedade espontânea aos que realmente mereçam, pode-se conquistar a paz relativa da própria consciência. Contudo, ainda melhor do que rir – o que pode remeter a um significado dúbio de eventual apatia, indiferença ou insensibilidade ao sofrimento humano –, talvez, mesmo, possa ser a própria percepção sorridente: a não se omitir, a não negligenciar e a não zombar, mas - sem qualquer afetação –, a responder, com respeito, sensibilidade e, até mesmo, leveza.

    Vale mais aceitar tranquilamente os costumes comuns e os vícios da humanidade, sem se deixar levar nem ao riso nem às lágrimas: pois atormentar-se com os males dos outros é tornar-se perpetuamente infeliz, e alegrar-se com eles é adotar um prazer desumano (SÊNECA, 1973, p. 221).

    Como, todavia, utilizar-se

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1