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Direito Internacional no Tempo Antigo: 2ª edição, revista, atualizada e ampliada
Direito Internacional no Tempo Antigo: 2ª edição, revista, atualizada e ampliada
Direito Internacional no Tempo Antigo: 2ª edição, revista, atualizada e ampliada
E-book840 páginas12 horas

Direito Internacional no Tempo Antigo: 2ª edição, revista, atualizada e ampliada

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Sobre este e-book

O Direito internacional no tempo antigo amplia a perspectiva usual, para explicar a construção progressiva e milenar do direito internacional, presente e atuante desde a Antiguidade, entre as cidades estado da Suméria e os impérios do Oriente próximo, passando pelos persas, das cidades-estado gregas ao vasto mundo helenístico, e a contribuição de Roma – com elementos 'internacionais' desde as origens, até sua expansão como império mundial – com breves notas sobre a Índia e a China antigas. O direito internacional é um aporte civilizacional, para modelar a convivência pacífica entre coletividades humanas. A celebração de tratados, vínculos de comércio e intercâmbio cultural, enviar e receber representantes diplomáticos, o asilo e mesmo normas sobre a guerra estão presentes desde essas civilizações – e são elementos vitais do direito internacional até hoje. Essa perspectiva ampla é fundamental para evitar distorção frequente da verdade e da história – reducionista do tempo histórico e da diversidade cultural, por enxergar um sistema internacional somente a partir de 1648. O que não faz sentido, como se pode descobrir – ou confirmar – com a leitura deste livro!
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de dez. de 2022
ISBN9786556277158
Direito Internacional no Tempo Antigo: 2ª edição, revista, atualizada e ampliada

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    Direito Internacional no Tempo Antigo - Paulo Borba Casella

    TÍTULO PRELIMINAR

    PREMISSAS CONCEITUAIS DA PERSPECTIVA HISTÓRICA

    O homem é o único ser vivo da face da Terra que é capaz de retraçar a trajetória da espécie, envolvendo todos os tempos e todos os espaços.

    Aziz Nacib AB’SÁBER,

    Incursões à pré-história da América tropical (2000)⁸⁴

    Direito internacional (...) embora seja consistente com o uso dos últimos 150 anos, a expressão ‘direito’, aqui, dada a ausência de legislatura internacional, tribunais com jurisdição compulsória, e regime de sanções, centralmente organizadas, inspiraram concepções equivocadas, ao menos nas mentes dos teóricos do direito.

    H. L. A. HART (1994)⁸⁵

    A construção do direito internacional enquanto sistema institucional e normativo se inscreve no tempo. Temporal e espacialmente, exprime-se como modelo cultural, segundo os parâmetros reinantes entre os seus autores, no tempo (histórico) e no contexto (cultural) em que (geograficamente) estavam insertos. Esta é a tônica do exame da disciplina, neste Direito Internacional no Tempo: compreender o direito internacional através das mutações pelas quais este, como, ademais, qualquer artefato cultural, passa no tempo e pelo tempo.⁸⁶

    A reflexão histórica, como obra essencialmente humana, é apontada como elemento chave para a inserção humana no tempo e no espaço. Para tanto – considera AB’SÁBER – alguns homens privilegiados contaram com a sucessão dos escritos e, por fim, com a invenção do alfabeto: documentos básicos que forjaram a historiografia.⁸⁷

    A humanidade pode ser caracterizada pela capacidade de refletir sobre a trajetória da espécie – sem questionar quanto e, em qual extensão, tanto efetivamente se faça e com quanto empenho e quais resultados se desempenhe tal mister. Como pode, caberia penosamente acrescentar e reconhecer, ser a espécie humana igualmente caracterizada pela sua capacidade de impor destruição, sofrimento e risco de aniquilamento a si mesma, às demais espécies e ao planeta.

    A seguir, aponta AB’SÁBER outro dado, crucial para a caracterização da civilização das Américas: "Pablo MARTINEZ DEL RIO, nos anos 40, sentenciou que os homens que povoaram as Américas eram alóctones, mas que as culturas por eles elaboradas foram absolutamente autóctones".⁸⁸ Esse é dado recorrente na história e na cultura das Américas.

    Essa mesma dicotomia entre os dados alóctones e autóctones, apontada em relação aos primeiros ameríndios, há mais de dez mil anos, vê-se planarmente presente no direito internacional, nos últimos duzentos anos: este, enquanto conjunto de premissas e conceitos, é claramente alóctone, mas teve, igualmente, desenvolvimentos autóctones nas Américas. Os países das Américas se inserem no sistema europeu de direito internacional da época, e transformam esse sistema, como depois ocorrerá em escala planetária, a partir da descolonização que se segue à segunda guerra mundial.

    A este influxo populacional inicial, no conjunto das Américas, agregar-se-ão sucessivas levas de imigração, provenientes de vários pontos do planeta. Esse dado de fluxo constante de pessoas poderia, assim, ser apontado como elemento caracterizador do continente americano, desde antes da ocorrência de registro escrito de história,⁸⁹ e se perpetua no caso específico da construção do direito internacional.

    A esse dado sobre a origem da população, dentre os três estoques raciais básicos caracterizadores dos grupos humanos – o caucásico, o negróide e o mongolóide – permite-se transposição para a caracterização do direito internacional no continente: conceitos alóctones tiveram elaborações culturais, em certa medida, ao menos, autóctones. Essa questão se porá em relação à existência ou não de direito internacional especificamente americano, ou interamericano:⁹⁰ sintomaticamente, boa parte da doutrina de língua hispânica, como se verá, entende pela afirmativa, com nuances; enquanto muitos dentre os autores brasileiros tendem pela negativa; autores de língua inglesa e outros ‘não-aborígenes’ tendem a posições ecléticas para apontar aportes em alguns aspectos específicos, sem, contudo, afirmar a existência de inteiro sistema próprio.⁹¹

    O direito internacional é, obviamente, ramo do direito. E este é parte das assim chamadas ciências sociais. Mas, a especificidade do direito internacional diz respeito à sua origem e sua função – não se constitui nem opera do mesmo modo que os sistemas jurídicos nacionais. Por isso, exige metodologia própria. Nesse sentido, pode-se admitir que o direito compõe um todo, mas pode e deve ser considerado a partir de facetas para organizar o estudo e o conhecimento. Com consciência da finalidade (didática e metodológica) e da relatividade intrínseca dessa ‘divisão’.

    Distinguem-se, habitualmente, direito interno (rege relações jurídicas no interior de sistemas sociais nacionais) e direito internacional (rege relações entre sistemas nacionais, sejam os estados, organizações internacionais e demais agentes internacionais – no ‘direito internacional público’ ou, simplesmente, ‘direito internacional’ – e as relações entre particulares, com elementos transnacionais ou de estraneidade – normalmente denominado ‘direito internacional privado’), ou, especificamente, financeiras internacionais (direito internacional econômico), ou comerciais transnacionais (direito do comércio internacional).

    A utilidade de qualquer divisão classificatória como esta é meramente indicativa. Mas, se o direito interno, ou os vários direitos internos, são ramos do direito como todo, estes não podem pretender esgotar a totalidade do fenômeno jurídico, nem pretender transpor dados do direito interno para o direito internacional, nem, tampouco, o contrário.

    Se os sistemas internos, ao menos em teoria, tendem a ser orgânicos e sistemáticos, quase fins em si mesmos, voltados para a regulação das questões sociais, internas ou nacionais, no direito internacional está a criação e atuação da norma legal, além dos limites do direito criado pelo estado para uso e efeito no plano interno, mas tem por foco a convivência entre pares (relações entre estados e organizações internacionais) ou particulares (pessoais, contratuais ou outras, tais como a responsabilidade, no direito internacional privado), e ulteriores desenvolvimentos específicos, financeiros e comerciais transnacionais, pautados pela convivência entre sistemas. Consideráveis especificações adicionais terão de ser adicionadas.

    Relações entre estados podem se caracterizar pela confrontação (como efatizam as concepções ditas ‘realistas’ e a maior parte dos trabalhos ditos de ‘relações internacionais’ que, se estritamente aplicados, solapam as premissas e as bases do direito internacional, enquanto sistema institucional e normativo),⁹² como podem pautar-se pela busca do equilíbrio e dos princípios compartilhados (no direito internacional de cunho ‘naturalista’, nos séculos XVI a XVIII e no contexto pós-moderno).

    Aqui, estuda-se ‘direito internacional’ na perspectiva temporal e, assim, trata-se de buscar a gênese e o desenvolvimento de princípios, normas e procedimentos para ordenar a convivência internacional a partir do tempo antigo, tanto entre estados e seus nacionais, como na relação dos estados com outros estados (e seus respectivos) nacionais. Não mais se pode definir o direito internacional somente como conjunto de relações interestatais. Mas, o quadro institucional e normativo que transcenda esse quadro interestatal se encontra, todavia, em formação.

    O Direito internacional terá sua definição e estruturação conforme se faça a sua fundamentação teórica.⁹³ Em direito – e, particularmente, em direito internacional, que, na prática, é antes matéria dos homens de estado, muito mais que dos sábios e dos especialistas – os termos que não façam parte de terminologia especialmente elaborada serão empregados em seu sentido corrente, por pessoas de cultura normal, e não em sentido especial e esotérico – advertia J. F. WILLIAMS (1933).⁹⁴ Direito internacional não pode ser visto em abstrato: será o que concretamente exista e se aplique, na prática dos estados, como na regulação da vida internacional dos demais agentes não estatais.

    Por isso, aqui, considera-se o direito internacional na perspectiva do tempo e como produto cultural, que se inscreve no tempo e no meio cultural, no qual se forma e se aplica. Não existe direito internacional somente em teoria, este, para adquirir efetividade,⁹⁵ tem de inscrever-se na realidade temporal, que se exprime, simultaneamente, como histórica e cultural. Esta é a tese central deste Direito Internacional no Tempo. Mesmo quando se constata que tal inserção nem sempre se faz de modo isento de confrontações e de desencontros.

    A partir dos estados – que formam a base do direito internacional ‘clássico’ –⁹⁶ foi, primeiro, estendida a condição de sujeitos às organizações intergovernamentais, como ‘colegiados’ de estados, para encaminhamento de questões de interesse comum, destes e da comunidade internacional como um todo e, depois destas ‘organizações internacionais’, passa-se ao reconhecimento,⁹⁷ que permanece ainda restrito, da personalidade jurídica internacional a entidades não estatais e, de certo modo, ainda mais restrito, o reconhecimento da condição de sujeito de direito internacional ao homem.⁹⁸ Se o ser humano é e deve ser o princípio e o fim de toda ordem legal, ao mesmo tempo, o direito internacional clássico teve e tem seu papel. Mas, o mundo mudou e o direito tem de se adaptar à sua exigência.

    O direito internacional oscila, permanentemente, entre a utopia mais descarnada e a mais crua realidade. Estes são dados recorrentes do sistema.⁹⁹ Nossa vontade, referia Nicolas MALEBRANCHE (1638-1715),¹⁰⁰ corrompida pelo pecado original, é a fonte de nossas paixões e de nossos enganos, enquanto a mediação e o amor da ordem imutável tornam possíveis a liberdade do espírito e o esforço da vontade. Essa busca de ordem imutável pode se inscrever em dimensão humana, mesmo se antes como anseio do que como realidade.

    Como se esboça o reconhecimento da condição do ser humano como sujeito de direito internacional? Antes, somente nos sistemas nacionais de direito (Constituições dos países), mas, passa o homem a ser objeto do direito internacional por meio da proteção internacional dos direitos fundamentais.¹⁰¹

    Essa nova dimensão do direito internacional, enquanto ordem jurídica da comunidade internacional, vem se agregar às dimensões tradicionais da ordem jurídica reguladora das relações interestatais de coexistência e de cooperação.¹⁰² Este não é mero detalhe, mas dado crucial que caracteriza mudança estrutural em curso no sistema institucional e normativo internacional no contexto pós-moderno.

    Direitos fundamentais passam a integrar o campo do direito internacional vigente na idade dos direitos humanos.¹⁰³ Contudo, alguns autores ainda pensam o direito internacional em vista apenas dos estados. Parece-me claro e inexorável que, hoje, não mais se pode reduzir o direito internacional somente às relações interestatais, tal como se estudaram e se compreenderam estas no passado.

    Para não fugir da recorrente necessidade, pode-se definir direito internacional. como: norma para as relações entre estados, e outros agentes da comunidade internacional, como organizações e indivíduos. Outras definições podem ser encontradas. Cumpre justificá-la.

    Dado essencial do direito internacional é a mutação, em curso, pode esta ser chamada de pós-moderna: assim se exprime o surgimento e o papel crescente do ser humano no contexto internacional.¹⁰⁴ O termo ‘crise’ afastou-se do significado grego e latino de ‘escolha’ ou ‘decisão’,¹⁰⁵ para descrever o momento que as precede e é, portanto, caracterizado sobre a dúvida quanto ao caminho a ser seguido.

    A crise da pós-modernidade não surge no direito, mas o atinge e tem de ser por ele enfrentada,¹⁰⁶ como meditação em torno do próprio valor da noção de escolha e sobre os fundamentos ou a necessidade, a partir das quais essa se move.¹⁰⁷

    Quem reduz o direito a relações de força,¹⁰⁸ não somente nega a qualidade de direito às normas regentes das relações entre estados, como contraria os fatos. A realidade é que os estados aplicam, entre si, normas que consideram obrigatórias e vinculantes. Estas restringem os limites ao exercício teoricamente possível das soberanias nacionais,¹⁰⁹ em matérias cruciais para a sobrevivência de cada uma destas unidades, assim como para a sobrevivência do conjunto dessas unidades e, mesmo, para a sobrevivência de sistema compartilhado dessas relações. Mesmo quando ocorrem ‘desvios de conduta’ e violações flagrantes de todos os princípios e normas do direito internacional pós-moderno – como escandalosamente exemplifica a guerra de agressão da Rússia na Ucrânia, em 2022.¹¹⁰

    Direito internacional tampouco se reduz ao conjunto de postulados de moral internacional. Se delimitado de modo impreciso, o direito perde grande parte de sua eficácia. Por isso, após o reconhecimento dos princípios e o enunciado dos conteúdos, é preciso assegurar os correspondentes mecanismos de implementação, no direito internacional, como em outros campos do fazer humano.

    Dentre as mutações conceituais em curso, no contexto pós-moderno, o reconhecimento progressivo de conteúdos materialmente vinculantes não será dos dados de menor impacto. Assim, desde a criação das Nações Unidas, a sociedade internacional, por meio de tratados multilaterais, cria quadro institucional e normativo para regular as relações internacionais, reconhece a existência e o caráter vinculante de normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens), ao lado de normas de costume internacional (direito consuetudinário) que os estados aplicam em suas relações recíprocas.

    Esse conjunto, composto por normas internacionais cogentes e consuetudinárias põe, concomitantemente, os dois planos de atuação, acima referidos: temos o patamar das ideias e o patamar da implementação. Se o multilateralismo representa progresso institucional em relação ao passado é, contudo, preciso que este se ponha de modo adequado: consentâneo com a realidade internacional presente e de modo que reflita o mundo de hoje, não o mundo de 1945, ou de ainda mais longe no passado.

    Mecanismos institucionais de solução de controvérsias entre estados¹¹¹ marcam a fase atual. Em pouco mais de um século, passou-se da ausência quase completa de mecanismos institucionais à proliferação de tribunais internacionais aos quais os estados podem submeter controvérsias com tal diversidade que alguns chegam a temer pela unidade da ordem jurídica internacional.¹¹²

    Para tanto, basta avaliar quanto mudou o contexto institucional internacional,¹¹³ desde as arbitragens públicas internacionais (ao longo dos séculos, até nossos dias), passando pelo surgimento da Corte Permanente de Arbitragem (desde 1899), da Corte Centro-Americana de Justiça (de 1908 a 1918 e a partir dos anos 1990 ao presente), da Corte Permanente de Justiça Internacional (no período entre as duas guerras mundiais, de 1920 a 1939), para se chegar à Corte Internacional de Justiça¹¹⁴ (em operação desde 1946), mas sem esquecer o Tribunal Internacional para Direito do Mar (desde 1996),¹¹⁵ o Tribunal Penal Internacional (desde 2002)¹¹⁶ e seus precursores Nuremberg e Tóquio (após a segunda guerra mundial), ou os tribunais penais internacionais ad hoc para a ex-Iugoslávia e para Ruanda, criados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (na década de 1990, que tendem a esgotar-se quando cumprirem as suas funções específicas),¹¹⁷ bem como as jurisdições penais internacionais mistas, tais como Serra Leoa, Timor Leste, Cambodja e Líbano.¹¹⁸ Sem falar nas Cortes regionais para direitos humanos,¹¹⁹ tais como a Corte Europeia,¹²⁰ a Corte Interamericana¹²¹ e as duas Cortes Africanas, ora em processo de unificação entre ambas.¹²²

    ¹²²

    Estes tribunais internacionais permanentes, em lugar de serem enxergados pela sua aparente diversidade, têm de ser compreendidos enquanto conjunto: exprimem tendência à institucionalização do direito internacional, no contexto pós-moderno. Representam, cada uma destas instituições e todas elas, em conjunto, considerável progresso institucional, em relação a autores que ainda no século XIX e início do XX, escreviam que o direito internacional somente parcialmente era um sistema jurídico propriamente dito, porquanto carecia este de instituições aptas a ‘dizer o direito’, o que acarretava, frequentemente, na necessidade de recurso à força – como se deu na crise da dívida externa venezuelana (1898-1902), da qual resultou o bombardeio de portos desse país por navios de guerra de alguns estados credores e a consolidação posterior da exclusão do uso da força para a cobrança de dívidas soberanas.¹²³

    Todas essas instituições internacionais são exemplos expressivos do processo, mais amplo e abrangente, de institucionalização do direito internacional, no contexto pós-moderno. Assim, cai por terra a alegação que faziam certos autores ao pretenderem negar ou restringir o reconhecimento da juridicidade do direito internacional em razão da inocorrência de tribunais internacionais organizados e permanentes.¹²⁴ Atualmente, no sentido inverso, é a proliferação de tribunais internacionais que leva à preocupação com a unidade e supostos riscos de ‘fragmenação’ da ordem jurídica internacional.¹²⁵

    Tribunais internacionais permitem a expansão da função judicial internacional.¹²⁶ É erro considerar o estado como única fonte do direito internacional – atualmente, é clara a recusa do monopólio¹²⁷ sobre o direito.¹²⁸

    Se, no passado, a crítica se fazia ao direito internacional no sentido de não ser este, enquanto sistema, dotado de tribunais propriamente ditos adequados para assegurar o exercício da função jurisdicional no plano internacional, atualmente, refere-se a preocupação oposta, no sentido de inquietação relativa à talvez excessiva jurisdicionalização deste.¹²⁹ O que tem de ser entendido em relação às premissas básicas deste, enquanto sistema institucional e normativo internacional.

    Aperfeiçoar a ordem jurídica reduz a necessidade de coação.¹³⁰ Esta pode ser potencialidade, sem necessariamente acarretar medidas coercitivas, ou sem relação direta entre o responsável pela violação e os estados que reagem à violação.¹³¹

    Não somente em seu conteúdo, mas também a denominação é histórica e culturalmente condicionada: se o direito internacional, enquanto sistema, surge antes, a sua denominação mais corrente, direito internacional (international law) surge somente em 1780, com Jeremias BENTHAM, quando este o considera, enquanto sistema e o situa em oposição a national law ou a municipal law. Tanto quanto criticada, a expressão de BENTHAM tem sido adotada e se mantém o seu uso corrente.¹³²

    Em manuscrito de 1827, conservado no British Museum, Jeremy BENTHAM propunha a adoção, pelas nações, agindo com base em perfeita igualdade, de um código sumário visando preservar não somente a paz (compreendida como ausência de guerras), mas, igualmente, a boa vontade recíproca e os bons ofícios recíprocos, entre os diferentes membros dessa Confederação.¹³³ A ideia central do direito internacional é por limites ao exercício discricionário da soberania pelos estados –o que pode levar a resultados desastrosos.

    Para denotar a revisão do conceito e do conteúdo, no contexto atual, pode ser acrescentada a qualificação, ‘pós-moderno. O que pode contribuir para esclarecer alguns dados, como para suscitar outras controvérsias.¹³⁴ A pós-modernidade não se põe como acréscimo, mas como perquirição dos rumos e do sentido da construção institucional, e das possibilidades de aperfeiçoamento desta, a partir das bases, historicamente consolidadas, e da medida em que possam progressos ser acrescentados.

    Curiosa a recorrência da expressão direito de gentes (droit des gens, law of nations ou Völkerrecht), que parecia ter ficado obsoleta, desde que fora utilizada por Richard ZOUCH (1650),¹³⁵ embora se mantivesse em algum uso,¹³⁶ ora novamente presente, como tendência mais corrente no contexto pós-moderno, na linha do que se descreve como a ‘humanização do direito internacional’.¹³⁷

    Ao ser referido e muito bem dito, o direito internacional, como um direito entre povos – jus inter gentes – Francisco de VITÓRIA deixou marca indelével na evolução posterior deste ramo jurídico. Na lição sobre o poder civil, em De potestate civili, enfatizava VITÓRIA:

    o direito das gentes não tem somente força de pacto ou de convenção entre os homens, mas possui, igualmente, força de lei. O mundo inteiro, na verdade, que, de certo modo, constitui uma república, tem o poder de levar leis justas e ordenadas para o bem de todos, tais como são as do direito das gentes. Consequentemente, quando se trata de questões graves, nenhum estado pode se considerar desvinculado do direito das gentes, pois este é colocado pela autoridade do mundo inteiro.¹³⁸

    Ao considerar as ‘épocas do direito internacional’, vê-se como a própria denominação da disciplina segue o modelo político e cultural dominante do tempo em que se formula.¹³⁹

    Não cabe falar em direito público internacional, pelo primado que assim se confere ao direito público (interno) sobre o internacional. Isso reduziria o direito internacional a ramo do direito público (interno) de cada estado, o que o priva de seu caráter propriamente internacional. Isso quer dizer, aproximar, como se faz na corrente positivista, o direito das gentes como emanado do direito interno para relações internacionais (ausseres Staatsrecht) ‘direito público externo’.

    Por mais extenso e admirável que seja o legado de Clóvis BEVILÁQUA, entre nós, em vários campos do direito,¹⁴⁰ este, ao intitular seu livro Direito público internacional¹⁴¹ evidencia essa escolha, que não é simples detalhe terminológico.¹⁴² Não se pode deixar de formular o reparo conceitual a tal modelo teórico, dada a impossibilidade de se construir sistema internacional com a simples superposição, mais que soma de sistemas internos, colocados lado a lado.

    No direito internacional se inscreve um conjunto de princípios, normas e instituições característicos para a ordenação de sistema internacional. Afirma CANÇADO TRINDADE que:¹⁴³

    o direito internacional, ao longo dos anos, tem se transformado sob o impacto dos ideais, e o reconhecimento de que não depende da vontade dos estados: se fosse produto exclusivo de tal vontade, não poderia obrigá-los e se os obriga, não é mero produto de sua vontade.¹⁴⁴

    Direito internacional tornou-se a expressão de uso corrente.¹⁴⁵ Consignada a mutação em curso, no contexto pós-moderno, mantém-se o termo habitual. Tantas quantas sejam as críticas que tal denominação tenha recebido, mostrou-se ser a mais corrente e amplamente adotada.

    Para compreender qualquer ramo do direito, é indispensável ter noção do seu desenvolvimento histórico.¹⁴⁶ Isto é especialmente necessário no direito internacional. E, aqui, põe-se como a dimensão norteadora deste Direito Internacional no Tempo, como exame do impacto do tempo (histórico) e do contexto (cultural) sobre o direito internacional. Não se trata, como foi dito, de estudo da ‘história’ do direito internacional, como ‘história’, e como fim em si mesmo, mas, justamente, examinam-se as origens deste, no passado, para ter foco no presente e no futuro, como se referiu.

    Nesse sentido,¹⁴⁷ "os conceitos mesmos, de internacionalidade e de direito internacional, já parecem estar um tanto ultrapassados (désuets)".¹⁴⁸ Tudo dependerá de como se interpretem e se apliquem tais conceitos. Até mesmo porque outros não foram encontrados.

    A grande indagação é a forma de regular a convivência dos estados e demais atores não estatais, na ordem internacional,¹⁴⁹ e saber se essa convivência vai ser regida pelo direito ou pela força. Desafios e o contexto específico, do direito internacional pós-moderno,¹⁵⁰ somente acirram as percepções de fragmentação e de complexidade.

    Esse dado da necessidade de coordenação, de institucionalização, de normatização jurídica e de instauração de procedimentos permanece presente e recorrente. Esses dados são postos à prova em matérias como a regulação do uso da força ou dos princípios e procedimentos para a solução de controvérsias e se põe como desafio, não somente nas relações entre estados, mas como necessidades para o conjunto da comunidade internacional.

    A análise das relações entre estados não é perfeita na apresentação dos estados sucessivos das relações políticas, sejam em tempos normais ou de crise, com intermediárias situações marginais de tensão ou distensão, ou normalização de relações. Para Paul de LA PRADELLE (1974) nem tudo está no comportamento ou funcionamento de sistema que seria isolado de qualquer diretriz e de qualquer princípio organizacional.¹⁵¹

    Relações internacionais não podem ser vistas como sistema fechado e como fim em si mesmas, mas sim na descrição da realidade humana, de interação entre pessoas e comunidades, além e ao lado das fronteiras políticas existentes entre estas: sempre foram e continuarão a ser relações da comunidade humana, onde o homem aparece, na condição de indivíduo ou de integrante de determinado grupo, como o sujeito constante dessas condutas. Essas relações não podem ser consideradas sem direito que lhes diga respeito e as mantenha em determinada direção.¹⁵²

    Há quem diga pode ser que não tenhamos feito grande progresso no desenvolvimento do direito internacional, nos últimos 300 anos¹⁵³, mas o desenvolvimento de concepções jurídicas, tal como a ascensão e a queda de ideologias políticas, e a emergência de novos períodos na história da arte ou da música, não podem ser temporalmente determinadas com grande precisão.¹⁵⁴

    O direito internacional precisa ser compreendido em seus fundamentos¹⁵⁵ e em seus desdobramentos no espaço,¹⁵⁶ como ora se faz em seus desdobramentos no tempo. Assim, o Instituto de direito internacional, em várias ocasiões, enfatizou a necessidade do estudo e do ensino do direito internacional:¹⁵⁷ isso existe e ocorre em várias praças e formatos.¹⁵⁸ A necessidade do estudo e do ensino do direito internacional¹⁵⁹ foi muitas vezes afirmada.¹⁶⁰

    O ensino e o estudo do direito internacional são cruciais para o aperfeiçoamento da conscientização da sua necessidade no contexto pós-moderno.¹⁶¹ O assunto foi desenvolvido pelo Instituto,¹⁶² assinalando a importância primordial do direito internacional para a manutenção da paz e da segurança internacionais, bem como para o desenvolvimento do comércio e das relações entre indivíduos no plano internacional. Desde tempos antigos, a troca de mercadorias inevitavelmente levou à troca de ideias.¹⁶³ E esta mais e mais se faz presente, em decorrência da internacionalização constante das relações sociais, bem como da influência crescente do papel dos fatores internacionais nos domínios os mais diversificados da vida dos indivíduos, dos povos e dos estados.

    As exigências da sociedade internacional pedem a formação de novas gerações, mais abertas e conscientes das realidades e dos problemas da vida internacional, sendo desejável que, em todos os países, o ensino em geral – fundamental, médio, universitário ou pós-graduado – esteja, sempre, adaptado às necessidades de melhor compreensão da sociedade internacional, constatando-se que, em muitos países, o ensino do direito internacional permanece, essencialmente, se não exclusivamente nacional, em suas preocupações e os seus métodos, e que o ensino do direito internacional, seja este público como privado, responde, muitas vezes, de modo insuficiente, dos pontos de vista quantitativo e qualitativo, para atender às necessidades de nossa época, em ótica suficientemente internacional. É crucial compreender que o ensino do direito internacional não pode permanecer essencialmente, se não exclusivamente nacional, em suas preocupações e os seus métodos. Esta é contradição conceitual que deve ser evitada.

    A necessidade de estudo e de ensino do direito internacional foi adequadamente ressaltada em numerosas Resoluções da Assembleia geral das Nações Unidas, dentre as quais, especialmente: as Resoluções 137 (II), de 17 de novembro de 1947, e 176 (II), de 21 de novembro de 1947, por meio das quais a AGNU formulou convite a todos os estados-membros no sentido de encorajar o ensino do direito internacional; para tal finalidade levando em consideração as obrigações em matéria de difusão do direito humanitário, estipuladas nas Convenções de Genebra, de 1949, e em seus Protocolos adicionais, de 1977, bem como na Resolução adotada nessa matéria, em 7 de junho de 1977, pela Conferência diplomática para a reafirmação e o desenvolvimento do direito internacional humanitário, aplicável nos conflitos armados e, finalmente, tendo em vista ser o direito internacional privado, em nossos dias, instrumento essencial para a segurança e o desenvolvimento do comércio e das relações entre indivíduos no plano internacional.

    Os dados que o Instituto apontou como essenciais podem ser validamente levados em conta para qualquer programa institucional de ensino e estudo do direito internacional. Finalmente, cabe assinalar, ainda, a contribuição decisiva dada, desde a sua criação, em 1923, e a cada ano, até nossos dias, pela Academia de direito internacional da Haia.¹⁶⁴

    O ensino do direito internacional se faz cada vez mais necessário para a formação dos profissionais do direito, em geral, das relações internacionais e dos futuros funcionários governamentais, na medida em que o direito internacional afeta, mais e mais, o conteúdo do direito nacional e que o conhecimento do direito internacional é necessário para desempenhar ampla gama de responsabilidades profissionais, no contexto nacional, e das responsabilidades que incumbem aos indivíduos, em sociedade internacional caracterizada por crescente coesão, de tal modo ser cabível reafirmar, nas condições predominantes no mundo atual, que o ensino do direito será incompleto se não englobar os elementos fundamentais do direito internacional, tanto público, quanto privado.¹⁶⁵

    A comunidade internacional evoluiu para sistema mais complexo, no qual os atores não estatais assumem importância crescente, onde o direito internacional e os direitos nacionais se veem mais e mais interligados. Isso, por sua vez, exige o cuidado de adaptar o ensino do direito internacional à evolução do sistema internacional, bem como ao papel e aos interesses dos diversos atores não estatais, aí compreendidos os indivíduos.

    As sucessivas manifestações do Instituto marcam claramente a posição do colegiado representativo do direito internacional contra a barbárie e a favor do ensino e do estudo do direito internacional, no contexto pós-moderno, em nome da construção de sociedade internacional mais justa e mais harmônica. Entre a eunomia (boa norma) e a anomia (a falta de norma), a escolha tem de ser formulada de forma clara.

    A convicção de que o direito internacional pós-moderno possa ser ferramenta para regular a convivência e as relações entre os estados e demais sujeitos e agentes de direito internacional se traduzirá na adoção e na aplicação dos institutos e dos procedimentos de direito internacional: não adianta declarar o alinhamento por princípios, se estes não se traduzirem em ações e em medidas concretas. Nesse sentido, a evolução da posição do Brasil em relação ao direito e às organizações internacionais, já havia mostrado algumas flutuações pouco positivas que, recentemente, somente se agravaram e se aprofundaram.

    Em suma, mudou consideravelmente o direito internacional ao longo dos últimos cem anos. Muitos ainda parecem não se dar conta de quão substancialmente diverso é, hoje, o direito internacional. Para tanto, não é preciso remontar a passado longínquo, mas basta voltar a atenção, em relação ao que ocorria no passado histórico relativamente recente, como a primeira conferência de paz da Haia, em 1899, quando se instala, na Haia, a Corte Permanente de Arbitragem, ou posteriormente à primeira guerra mundial, quando se constitui a Corte Permanente De Justiça Internacional.

    Caberá, sempre, enfatizar o papel e a necessidade do ensino e do estudo do direito internacional, como ferramenta para a construção de mundo mais justo e mais harmonioso.

    O presente título preliminar se divide em dois capítulos e ambos, conjuntamente, se destinam a situar as premissas conceituais da perspectiva histórica do direito internacional: o direito internacional tem de ser entendido, segundo ‘modelos históricos e culturais’ (capítulo 1), que se ponham para enquadrar o conjunto do exame a ser depois desenvolvido, bem como situado no tempo histórico, mediante exame do ‘tempo e discurso no direito internacional’ (capítulo 2). Esta matéria pode ser compreendida conforme se expõe em dois itens: a controvérsia entre Hugo GRÓCIO e Serafim de FREITAS (2.1) e o exame da consolidação conceitual e institucional do direito internacional (2.2).

    O direito internacional surge na Antiguidade e se desenvolve como produto cultural, porquanto este emana dos homens e da cultura desses homens em diferentes e sucessivas fases, desde o tempo em que se instauram os conceitos de sistema e se aprimora, progressivamente, no plano internacional e nos planos internos, institucional e normativo.

    A seguir pode-se passar ao capítulo 1, e considerar, inicialmente, as premissas conceituais: o direito internacional é condicionado por modelos históricos e culturais. Estes sempre estarão subjacentes: assim, melhor e mais honesto apontá-los e trabalhar de forma consciente com os dados básicos, que, ademais, serão úteis para a posterior explicitação dos meios e modos de construção do sistema institucional e normativo internacional, em seus ulteriores desenvolvimentos, neste conjunto do direito internacional, no tempo.


    ⁸⁴ Aziz Nacib AB’SÁBER, Incursões à pré-história da América tropical (in Viagem incompleta: a experiência brasileira / Formação: Histórias, org. Carlos G. MOTA, São Paulo: Ed. SENAC, 2ª ed., 2000, p. 29-43, cit. p. 31) aponta três vertentes, dentre as reflexões sobre atributos essenciais do homem: a primeira – Franz BOAS, na década de 20, alertava para a letalidade dos contatos étnicos entre grupos de culturas primárias, diante de representantes agressivos de sociedades mais complexas; a segunda – a Fernand BRAUDEL ficamos devendo o postulado de que ‘a história é a história de todas as histórias’; a terceira meditação e reconhecimento ficamos devendo a Roger BASTIDE – em um de seus momentos de grande clarividência intelectual – quando teceu considerações comparativas entre os atributos das sociedades animais e as sociedades humanas".

    ⁸⁵ H. L. A. HART, The concept of law (Oxford: University Press, 1st. ed., 1961; 2nd ed., 1994, with a postscript edited by Penelope A. BULLOCH and Joseph RAZ, chapter X. International Law, p. 213-237, cit. p. 214): International law (…) though it is consistent with the usage of the last 150 years to use the expression ‘law’ here, the absence of an international legislature, courts with compulsory jurisdiction, and centrally organized sanctions have inspired misgivings, at any rate in the breasts of legal theorists. A respeito, ver P. B. CASELLA, Evolução institucional do direito internacional à luz do cinquentenário do conceito de direito de Hart (1961) (in Edição comemorativa em homenagem aos 70 anos do prof. Celso Lafer, coord. T. S. FERRAZ Jr. e L. O. BAPTISTA, São Paulo: Revista Brasileira de Filosofia, ano 60, vol., 236, jan.-jun. 2011, p. 313-329); ___, Conceito de sistema, contexto internacional e pós-modernidade (in Filosofia e teoria geral do direito – estudos em homenagem a Tércio S. FERRAZ Jr. por seu septuagésimo aniversário, org. J. M. ADEODATO e E. C. B. BITTAR, São Paulo: Quartier Latin, 2011, p.

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