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A Crise do Nome: Portugal e Brasil Colonial sob a Lente do Perspectivismo
A Crise do Nome: Portugal e Brasil Colonial sob a Lente do Perspectivismo
A Crise do Nome: Portugal e Brasil Colonial sob a Lente do Perspectivismo
E-book369 páginas4 horas

A Crise do Nome: Portugal e Brasil Colonial sob a Lente do Perspectivismo

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Sobre este e-book

O livro A crise do nome: Portugal e Brasil colonial sob a lente do perspectivismo explora intensamente a problemática da significação onomástica concernente ao encontro sociopolítico-linguístico-cultural entre os ameríndios brasis e os jesuítas portugueses, no Brasil do século XVI. Focando os valores atribuídos aos nomes, a obra debruça-se sobre um corpus de textos que agrega como fontes algumas cartas jesuíticas, especialmente as de José de Anchieta, bem como dados provenientes de pesquisas antropológicas, históricas e linguísticas acerca das missões, da catequese, dos esforços de tradução e mediação, assim como das particularidades das línguas envolvidas no que tange à dimensão onomástica. Este livro investiga a hipótese de que os atos de nomeação e de tradução onomástica, ocorridos no âmbito do encontro entre as culturas cristã ocidental e indígena no século XVI, destacam a necessária relação entre perspectivismo e atos metalinguísticos, manifestada no latente antagonismo quanto aos modos como cada parte parece conceber a linguagem e esses atos. Analisamos o processo onomástico entre as culturas ameríndia e jesuítica cristã, em que muitos nomes podem ser adquiridos na primeira, sobretudo por meio da guerra e da vingança, enquanto na segunda um novo nome é dado por Deus, premiando o espírito misericordioso e pacífico de quem o recebe. Preliminarmente, ao contrário do que se possa pensar quando há uma relação de dominação política – caso de Portugal e Brasil, no século XVI –, as páginas deste livro apresentam uma dinâmica de aculturamento mútua mais equilibrada do que se poderia supor: os jesuítas passam a nomear com a língua tupi, enquanto os indígenas, igualmente, adotam novos nomes cristãos. Contudo a prática onomástica indígena envolve um ato de transubstanciação cíclica: comer a carne do inimigo é também uma antropofagia em relação ao seu nome e aos nomes que este possuía; ao passo que, para os cristãos ocidentais, o novo nome é resultado da renúncia ao nome de batismo (com água) e, com ele, de todas as ações gentílicas anteriores ao novo batismo (do espírito), pelo qual "todas as coisas se fazem novas" (Apocalipse 21:5), substanciadas no novo nome.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de abr. de 2021
ISBN9786558206897
A Crise do Nome: Portugal e Brasil Colonial sob a Lente do Perspectivismo

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    A Crise do Nome - Guilherme Lima Cardozo

    237

    1.

    AMBIENTAÇÃO DO LEITOR

    Esta obra é resultado de nossas investigações no campo religioso, as quais datam de muitos anos, e do contato recente – mais ou menos seis anos – entre estudos filosóficos, linguísticos, políticos e culturais com as ciências teológicas. No mestrado, investigamos como as cartas de Paulo de Tarso aos romanos e aos coríntios eram influenciadas pelo legado epistemológico da Filosofia clássica e pela mística judaica, entretanto, rompiam com o primado representacionista de linguagem, aproximando-se de um modelo mais pragmático. No doutorado, a pesquisa de textos considerados sagrados recebeu um banho lustral da influência dos estudos de Eduardo Viveiros de Castro, em especial suas pesquisas acerca do universo ameríndio e o seu ponto de vista sobre um perspectivismo que emana da cosmologia indígena. E se existe algo que violentamente liga as culturas ocidentais judaico-cristãs às ameríndias é o destaque fulcral que ambas conferem às práticas onomásticas: o nome permeia todas as relações possíveis, ligando o campo da vida à senda do sagrado. A questão onomástica entre jesuítas e indígenas no Brasil do século XVI é aqui o tema central, todavia, o tema não escapa a outras questões que, inevitavelmente, interferem e dialogam com o objeto deste livro.

    Por ser um tema central neste livro, consideramos oportuno trazer, da maneira resumida, alguns conceitos sobre onomástica: etimologicamente, o termo indica o ato de nomear objetos ou pessoas. Dentro dos estudos da linguagem, a onomástica ocupa um lugar em que os estudos históricos e geográficos, aliados aos filológicos, comparecem fortemente como fontes de interseção. Estudos como os toponímicos e antroponímicos são parte da onomástica, no entanto, esta pesquisa buscou ampliar o seu alcance, sondando algumas outras interseções não somente com a História, mas também com a Filosofia, a Antropologia e com diversas particularidades dos estudos sobre as línguas, especialmente a morfologia e a semântica.

    O tema do perspectivismo é tão importante que permeia quase toda a obra. Sua reincidência nota-se na confecção dos capítulos e das seções: o capítulo segundo mostra o perspectivismo em sua matriz ocidental, cujos baluartes teóricos são Gilles Deleuze e Friedrich Nietzsche. A escolha por esses dois filósofos não exclui, certamente, a importância que outros pensadores tiveram sobre o tema, por exemplo, Gottfried Leibniz, que, com o conceito de mônadas, subsidiou a discussão posterior sobre o perspectivismo, em âmbito ocidental. O perspectivismo, à luz do pensamento de Nietzsche, nos fornecerá aporte fundamental para compreendermos o jogo de forças inerente à prática onomástica e a imposição da vontade do mais forte, como a legitimação de nomes dentro de uma sociedade. Adotamos para a citação das obras de Nietzsche a convenção proposta pela edição de Colli e Montinari das obras completas do filósofo alemão: GC/FW – A gaia ciência; KSA – Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe; MAI/HHI – Humano, demasiado humano; JGB/BM – Além do bem e do mal; GM/GM – Genealogia da moral; Nachlass/FP – Fragmentos póstumos.

    A concepção deleuziana já nos aproxima do campo da ética como uma necessidade; seu perspectivismo desmascara uma sociedade intelectual que se fecha para pequenas possibilidades, restringindo as verdades científicas e, por conseguinte, sociais. O alargamento do pensamento de Deleuze faz com que estendamos essa crítica também às práticas metalinguísticas dos jesuítas portugueses e coloquemos em xeque a ética católico-cristã quando do (des)encontro com os nativos brasis.

    Esses questionamentos trarão à tona diversos temas que, necessariamente, fizeram-se imprescindíveis ao debate sobre a relação entre a realidade colonial do Brasil do século XVI, a tradução e o perspectivismo, e que estão abarcados no capítulo terceiro deste livro. A tradução é um desses temas primordiais que foram invocados para que se pudesse contemplar a estratégia jesuítica em seu objetivo de colonização linguística. A visceralmente condenada antropofagia – marca socialmente indispensável de algumas tribos nativas – é uma das chaves para o domínio linguístico: devora-se o nativo, examinando-o, compreendendo-o e reduzindo suas diversidades, unificando-o em uma só língua. O resultado foi a Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil, compêndio que significou a morte de inúmeras línguas, nomes, símbolos, em detrimento de uma língua imaginária, chamada língua-geral ou tupi. É aí que o diálogo com os estudos pós-colonialistas – essenciais no debate acadêmico envolvendo a língua portuguesa e as línguas subjugadas da África portuguesa – aparece como possibilidade de investigação e parâmetro relevante.

    A gramática dessa língua chamada tupi nos remeterá aos estudos metalinguísticos desenvolvidos por pesquisadores como Eni Orlandi e Sylvain Auroux – tema do capítulo quarto –, em que a noção de gramática e dicionários como retrato das revoluções tecnológicas dos séculos XV e XVI mostrará quão importante foi o advento desse material, em contexto brasileiro, para o domínio (meta)linguístico, porquanto aprisionava a prática onomástica dentro de uma língua que, apesar de considerada nativa, fora criada pelo colonizador. Abordamos, também, algumas peculiaridades brasileiras, tanto no âmbito linguístico, como no cultural, as dificuldades primeiras encontradas pelos jesuítas nas práticas de letramente e como a chegada de José de Anchieta modifica o quadro das missões catequéticas em solo brasileiro. Os missionários portugueses, salvo melhor juízo, valeram-se de suas revoluções metalinguísticas para se utilizarem das práticas onomásticas a fim de reduzirem, cultural e linguisticamente, as sociedades nativas, em sua diversidade incomensurável. Se de um lado o nome alarga a honra, de outro enclausura em um modelo moralmente domável; assim as relações onomásticas entre indígenas e jesuítas constituíam imenso paradoxo.

    O capítulo quinto nos traz, especificamente, o perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro, que dialoga com praticamente todos os capítulos do livro e nos auxilia no estudo desse universo de tão cara compreensão para o Ocidente, elencando conceitos que rompem em inteiro com nossas perspectivas logocêntricas e instintivamente dicotômicas. Vêm as noções de multinaturalismo, sujeito relacional, pronomes cosmológicos, que subsidiam a realidade onomástica desses povos e nos mostram o papel constitutivo que um nome possui para essas sociedades, em especial a tupinambá – para quem o nome é fator essencial de vida, mesmo que antagonicamente ao valor onomástico trazido pelos jesuítas.

    O sexto capítulo mostra como essas questões discutidas anteriormente são expostas nas cartas jesuíticas, em especial as do padre José de Anchieta, visto que sua importância no cenário brasileiro no primeiro século de colonização portuguesa é incomparável com a de outros grandes nomes, essencialmente no que atine à educação e ao ensino de línguas. O padre Anchieta também foi o autor da Arte de gramática, além de ter escrito uma série de obras (peças de teatro, poesias, autos, catequeses etc.) na língua chamada tupi, daí suas cartas assumirem o tom que centraliza o interesse desses escritos: o de revelar a necessária relação entre perspectivismo e atos metalinguísticos quando do encontro entre jesuítas e indígenas, gerando não somente os frutos sabidos da colonização linguística, mas também uma série de movimentos metalinguisticamente rebeldes – pois que a linguagem estava intimamente atrelada às reações políticas, sociais e culturais.

    Na continuação do capítulo, apresenta-se um desses eventos com ar de movimento de insurreição à época do primeiro século de colonialismo. Trata-se de um evento em que a relação aqui proposta entre perspectivismo e metalinguagem surge de modo antagônico à perspectiva clássica (em que o sujeito apropriador é sempre o mais forte), ao nos mostrar o jogo onomástico realizado por um dos nativos cristianizados, fundando as estruturas da chamada Santidade de Jaguaripe: uma manifestação indígena com elementos católicos ou um movimento já nem tão nativo, atrelado a símbolos também não mais tão essencialmente católicos. O (des)encontro entre indígenas e jesuítas revelou uma série de mal-entendidos, os quais seriam impossíveis de ser abarcados nesta pesquisa, no entanto, acredita-se que o trabalho aqui desenvolvido possa colaborar positivamente com os estudos da linguagem e do sentido no campo da onomástica e da história das ideias linguísticas.

    2.

    PERSPECTIVISMOS

    Neste segundo capítulo, o tema do perspectivismo norteará as abordagens aqui expostas, desde sua face mais clássica, passando por um diálogo com as teorias de tradução – em especial a tradução de cunho (pós)colonialista – até sua concepção mais recente, qual seja, dentro do universo ameríndio. Em todos os três casos, o desenvolvimento das seções estará sempre em contato com a proposta essencial do livro.

    Na primeira seção deste capítulo segundo, faremos um mergulho nas principais vertentes do que se chamou perspectivismo e, junto às abordagens, tivemos o cuidado de também localizar o leitor no contexto histórico em que se deu o movimento perspectivista, tanto sob a alcunha de Nietzsche como no momento em que Deleuze vale-se do texto e da ideia nietzschiana para, somadas outras influências, notadamente a de Leibniz, fazer nascer o seu próprio perspectivismo. Antes de entrarmos no universo ameríndio, bem como nas questões de tradução colonial/pós-colonial, é importante afirmar a matriz ocidental desse movimento que trouxe novos horizontes, rumos sem clausura, ao pensamento filosófico moderno, desconstruindo modelos e parâmetros de se pensar filosofia – tais como Deus, a metafísica, a lógica – e radicalizando, como nunca se fez, a completa desnecessidade de conceitos ilusórios, como verdade, consciência, limites, quando tomados como essências fixas, atemporais.

    Friedrich Nietzsche, apesar de para muitos estudiosos não ter sido o inventor do perspectivismo – e ele mesmo não avoca essa pretensão – é a referência mais evidente quando se trata do assunto. Por conta disso, dedicamos uma seção para que fosse, resumidamente, é claro, delineado o modo como o filósofo alemão desenvolveu o conceito mais difundido de perspectivismo, em clara discussão com as teorias filosóficas de seu tempo, problematizando temas como Deus, metafísica, verdade e, até mesmo, consciência. Dessa maneira, Nietzsche rompe com algumas correntes com que se identificava em fases anteriores de seu pensamento, pondo em xeque algumas estátuas de mármore da metafísica ocidental: guiado pelo que ele chama de fenomenalismo da consciência (cf. NIETZSCHE, 2001), visa derrubar a ideia de uma consciência geradora de um conhecimento, de uma ciência, a qual se lança à busca da verdade; da mesma forma, guia-se por sua ideia de interpretacionismo (cf. NIETZSCHE, 2001), cujo objetivo é abalar as dicotomias ocidentais hierarquizadas, dando aos seus valores de verdade meros status de interpretações, sem que isso signifique um relativismo, colocando em risco a emergente concepção de perspectivismo – e sobre a distinção entre ambos, abordaremos neste mesmo capítulo. É por esse caminho que vai essa seção dedicada a esse grande nome do perspectivismo ocidental.

    Outro nome que nos chama a atenção quando se fala de perspectivismo é o de Gilles Deleuze. Influenciado diretamente pelas ideias de Friedrich Nietzsche, principalmente no que concerne à luta contra o pensamento hegemônico de seu tempo, o filósofo francês também empreende uma batalha contra o ideário filosófico do início do século XX, sendo de especial interesse aqui o seu embate com a filosofia analítica, assim como a busca de um sentido pragmático para o pensamento e, por conseguinte, para a linguagem. Assim, a linguagem subjaz à lógica, que lhe impõe certos limites para captar o seu sentido, e é aí que Deleuze vale-se da influência nietzschiana para defender seu ponto de vista – o que se conveio chamar de postura ética – que, da mesma forma como Nietzsche fez com os fantasmas de sua época (Deus, metafísica etc.), almeja desconstruir as hipóteses reificadoras do pensamento linguístico, como a lógica e o sentido, em prol de uma abertura sem ressalvas para as possibilidades infinitas que o mundo nos oferece para o desenvolvimento de uma filosofia que valha a pena. Apesar de Deleuze inspirar-se em muito do que Nietzsche escreveu, o perspectivismo do filósofo francês vai por um caminho diferente do filósofo alemão e, por isso mesmo, achamos por bem dedicarmos uma seção para o ponto de vista deleuziano no que diz respeito ao perspectivismo do Ocidente.

    A temática desta parte do livro dialoga intensamente com as páginas do terceiro capítulo, pondo em contato todo o conhecimento trazido pela matriz ocidental perspectivista com as teorias de tradução ligadas ao colonialismo, abordando o conceito de metalinguagem trabalhado nas empresas tradutórias do século XVI e o que se entende por tradução, tomando como subsídio teórico os trabalhos pós-colonialistas. Para essa seção, uma característica marcante do trabalho tradutório no século XVI deve ser ressaltada: a unilateralidade do ponto de vista – o que já deixa subentendida uma dicotomia contra a qual Nietzsche desferiu letais golpes com seu perspectivismo – que sobressai nas tentativas de tradução da língua do nativo, sua posterior gramatização e dicionarização. No que atine ao trabalho do padre José de Anchieta, essa característica, aqui neste trabalho, soa muito menos como crítica do que uma observação baseada nas próprias fontes jesuíticas. Por mais que o padre Anchieta tivesse o cuidado e o zelo de vivenciar, por décadas, a língua do nativo e sua cultura, a sua posição como colonizador já estava muito bem demarcada, o que também demarca o território da tradução colonizadora frente à língua do nativo, tornando, assim, a metalinguagem que ali estava em jogo um objeto de uma perspectiva unilateral sobre o real.

    Vale uma vez destacar a proposta de se trazer o perspectivismo ameríndio para um diálogo com o perspectivismo ocidental, da mesma forma com os escritos pós-colonialistas sobre a tradução, focando a tradução missionária. O inovador trabalho do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro é um norte para esta obra, no tocante à questão central deste livro: desvendar a premente relação entre perspectivismo e atos metalinguísticos, nascente das relações entre indígenas e jesuítas, no trabalho de catequese, no Brasil do século XVI. Nessa seção, a imagem de que nos valeremos para tentar pôr em escritos o universo indígena está comprometida em muito com o perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro, mas também lançando mão de teorias acerca do canibalismo, como a de Michel de Montaigne e a de Frank Lestringant, os quais muito nos auxiliaram a trazer os pontos de vista não somente dos jesuítas em contato com os nativos, mas principalmente o lado do índio, cujo canibalismo, segundo esses pensadores, era muito menos cruel que a antropofagia dos europeus, e por isso mesmo conseguiam, com muito êxito, canibalizar¹ a figura do nativo.

    Dentro do universo ameríndio, tão presente neste compêndio, contemplaremos o objeto principal desta obra: a questão onomástica. Desde a cultura do nome dentro da sociedade tupi, seus motivos, suas implicações, suas restrições e sua natureza honorífica, até a tradição onomástica que inaugura, por assim dizer, a crença judaico-cristã na superioridade do homo sapiens diante das outras espécies, visto que, conforme consta do primeiro livro da Bíblia Sagrada, é do próprio Deus que Adão recebe o poder de dar nome às coisas, e por ter esse poder de dar nomes, adquire instantaneamente o poder sobre as coisas. O choque entre as tradições judaico-cristãs e a ameríndia no campo da onomástica vai muito além da obsessão dos padres jesuítas em querer batizar os indígenas, pois que dar um nome cristão a um nativo era domesticá-lo, colonizá-lo, impingindo-lhe a identidade de subalterno. Muito ao contrário, a cultura ameríndia via no nome não uma domesticação, mas uma quase-apropriação: mais que isso, a obtenção de um nome alheio era o símbolo da transubstanciação por meio da troca de identidades (cf. VIVEIROS DE CASTRO, 1996; RIVIÈRE, 1995; TURNER, 1995). E essas identidades não se hierarquizam, uma não está sobre a outra, mas se implodem formando uma interidentidade: matador e inimigo acoplam-se, construindo um necessário devir, um tempo futuro em que a guerra de vingança gerará mais trocas e, assim, mais nomes novos, mais honra.

    O tema do perspectivismo perpassa todos esses processos de que falamos nessas linhas iniciais, os quais serão mais bem expostos nas seções a seguir, não deixando perder de vista que o perspectivismo é o pano de fundo para que possamos enxergar no encontro entre colonizador e colonizado – e isso nas dimensões mais amplas a que os filósofos a seguir nos conduzirem – a emersão de um perspectivismo intimamente ligado aos atos metalinguísticos e norteador dessas práticas metalinguísticas em jogo.

    2.1 A matriz ocidental

    É importante ressaltar que, se aqui destacamos como exemplos de perspectivismos ocidentais as filosofias de Nietzsche e Deleuze, não afirmamos com isso que tenha sido com esses filósofos, mais precisamente com Friedrich Nietzsche, que o tema do perspectivismo começou a aparecer em obras escritas. Talvez este último seja o que deu ao tema um relevo maior, uma intensidade e radicalidade vívidas, entretanto, desde Gottfried Leibniz podemos contemplar o perspectivismo como uma abordagem filosófica, mais precisamente em sua obra Monadologia (doravante, M). É aí que Leibniz introduz a noção de mônada – que muito será revisitada na seção 2.1.2 – como [uma] coisa que não é senão uma substância simples, que entra nos compostos; simples quer dizer sem partes (M, § 1, p. 131, grifo nosso). Sendo as mônadas os últimos elementos da realidade criada, cabe a elas responderem por toda a riqueza e variedade que podemos observar no mundo, elementos esses que brotam de sua espontaneidade, visto que as mônadas são seres dotados de multiplicidade de produções, consistindo em percepções e mudanças. A citação de um texto de Leibniz facilita-nos o entendimento:

    Se a percepção, multiplicidade na unidade, é o que garante a identidade da mônada face à pluralidade [...] é porque, com relação às percepções, apesar da identidade do conteúdo representado, a maneira como cada uma o faz é essencialmente diferente das demais. Cada mônada é um espelho vivo, ou dotado de ação interna, representativo do universo, segundo seu ponto de vista (M, § 3, p. 154).

    De acordo com o seu ponto de vista, cada mônada possui uma ontologia que representaria o universo de uma forma própria, característica, que a distingue de todas as outras mônadas. Destarte, o perspectivismo leibniziano, tomando em consideração os estudos da monadologia, coloca o mundo na representação individual da perspectiva de cada mônada, e sendo ela a substância simples que entra nos compostos, impõe seu ponto de vista às coisas que dela emergem. Entretanto, não se trata de uma pura representação do universo por meio de um ponto de vista, pois que o corpo que é afetado por cada mônada interfere na representação em devir:

    Assim, ainda que cada mônada criada represente todo o universo, ela representa com maior distinção o corpo que lhe é particularmente afetado e cuja enteléquia constitui; e como esse corpo expressa todo o universo pela conexão de toda a matéria no pleno, a Alma representa também todo o universo ao representar este corpo que lhe pertence de maneira particular (M, §§ 61 e 62, p. 142-143).

    Assim, a mônada reúne em si – e isso Deleuze saberá dissertar com maior propriedade – uma característica infinitesimal, pois que toda substância criada exprime particularmente o corpo do qual é enteléquia e o universo é pleno de corpos. Dessa forma, podemos encaixar nesses moldes o perspectivismo como uma abertura de possibilidades para a Filosofia moderna, conforme Nietzsche e Deleuze disseminaram por meio de seus escritos. O embate contra a verdade metafísica ou a limitação dos sentidos faz dos pensadores aqui escolhidos baluartes no que diz respeito à contraposição radical aos pontos de vista logocêntricos de suas épocas: a máxima do pensamento perspectivista.

    2.1.1 O ponto de vista nietzschiano

    A radical contraposição de Nietzsche à verdade encontra no perspectivismo um decisivo passo. Com a obra A gaia ciência, o filósofo centraliza o foco nas discussões sobre a verdade e apresenta o perspectivismo como um fenômeno ótico da visão (cf. GC/FW, § 374), determinado por suas relações espaciais, embora, primeiramente, também apresente o perspectivismo sob um aspecto mais geral, onde ponto de vista e perspectiva correlacionam-se (cf. KSA, 12.315). Em que pese esta última definição mais comum, podem-se observar já na obra citada de Nietzsche as duas características principais do perspectivismo: o fenomenalismo da consciência e o interpretacionismo.

    Em sua obra Immanent and transcendent perspectivism in Nietzsche, Alexander Nehamas afirma que, segundo o perspectivismo nietzschiano, não se tem nenhum método de investigação que nos permita conhecer o mundo tal como ele é, daí ser o conhecimento humano sempre parcial e perspectivo. Há em Nietzsche uma radicalização da metáfora introduzida na modernidade, primeiramente por Leibniz, segundo o qual o mundo pode ser visto de diferentes modos por cada pessoa, dependendo do ponto de vista de onde ela se encontra. O perspectivismo em Nietzsche é ampliado de tal forma que tudo o que existe são perspectivas, e mesmo a ideia de um mundo em si mesmo constituir algo, para ele, é uma ficção (cf. LIMA, 2010).

    Apesar de nos quatro primeiros livros que integram A gaia ciência ainda não estar aprofundado o significado do perspectivismo nietzschiano, nos parágrafos 162 e 299 o filósofo apresenta-nos importantes contribuições: atendo-me ao § 299, destaco a necessidade de nos afastarmos mais das coisas, a fim de torná-las mais belas e atraentes, para que elas sejam encobertas e, assim, vistas em perspectiva, de forma que as coisas só têm valor e significado de acordo com a perspectiva de quem as observa. A partir do início da década de 1880, a ideia de perspectivismo começa a ganhar corpo, e se aprofunda mais ainda a visão segundo a qual as coisas só podem ser consideradas a partir da perspectiva de quem as vê, pois o homem, segundo Nietzsche, não possui nenhum órgão para a verdade, assim, todo o conhecimento não escapa à perspectividade com que o homem pode apreender o mundo:

    Não é, como se adivinha, a oposição de sujeito e objeto que me importa aqui: deixo essa distinção aos teóricos do conhecimento, que ficarão presos na malha da gramática (a metafísica do povo). E nem é bem a oposição entre coisa em si e fenômeno: pois estamos longe de conhecer o bastante para sequer podermos separar assim. Não temos, justamente, nenhum órgão para o conhecer, para a verdade (GC/FW, § 354).

    Para Nietzsche, o conhecimento é uma forma de dedução e de elaboração fundada em ilusões necessárias, possuindo uma potência poético-lógica [dichterisch-logische Macht]; necessárias porque o homem precisa viver; ilusões porquanto não dizem respeito ao mundo como ele é, mas a perspectivas. A questão da verdade adentra o perspectivismo, sendo problematizada por ele. Inicialmente, a célebre divisão kantiana das três faculdades (sensibilidade, entendimento e razão) é posta em xeque por Nietzsche, de modo que a unidade do conceito e da consciência dá lugar ao fenomenalismo da consciência e ao interpretacionismo, estes últimos características preponderantes do perspectivismo. Vale dizer que essas ideias não constavam na primeira edição de A gaia ciência, sendo somente adicionadas à obra na edição de 1886, na qual o filósofo acrescenta o prefácio e o quinto livro.

    O interpretacionismo traz à tona a contraposição radical à verdade, pois que não há fatos, apenas interpretações (KSA, 12.315, Nachlass/FP, 7[60]). Já a noção de consciência mostra o motivo pelo qual o pensamento é perspectivo: a consciência não nasce com o homem, mas é o resultado tardio do desenvolvimento orgânico humano, influenciado por afetos e estados internos, culminando no estar consciente. Afirma Nietzsche:

    Pensam que nela [na consciência (Bewusstsein)] está o núcleo do ser humano [Kern des Menschen], o que nele é duradouro, derradeiro, eterno, primordial! Tomam a consciência por uma firme grandeza dada. Negam seu crescimento, suas intermitências! Veem-na como unidade do organismo [Einheit des Organismus]! (GC/FW, § 11).

    O pensamento de Nietzsche sobre consciência retoma, por um lado, o que Leibniz chamou de acidente, em detrimento de ser ela o atributo principal da representação; por outro, dispara alguns conceitos que posteriormente Sigmund Freud estudaria para formar sua Psicanálise:

    Pois, para dizê-lo mais uma vez: o homem, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não sabe disso; o pensamento que se torna consciente é apenas a mínima parte dele, e nós dizemos: a parte mais superficial, a parte pior: – pois somente esse pensamento consciente ocorre em palavras, isto é, em signos de comunicação; com o que se revela a origem da própria consciência (GC/FW, § 354, grifos nossos).

    Muito interessante no desenrolar desta obra é a atenção que deu Nietzsche a uma passagem de Afrikan Spir, em que este aborda, numa perspectiva de transformação do mundo orgânico, de que forma o sujeito cognoscente formula as leis que regem a natureza (cf. MAI/HHI, § 18): a lei originária do conhecimento consiste numa necessidade interior do sujeito em ver cada objeto em si e idêntico a si mesmo. A partir daí, Nietzsche concluiu que o princípio da identidade, fundamental para a lógica, deveria ser compreendido, ao que nos parece, em uma perspectiva biológica.

    Na sua escala de transformações, o homem teve necessidade de encarar cada coisa, cada objeto como idêntico a si mesmo. O mais importante, para Nietzsche, da tese de Afrikan Spir, são os argumentos em torno da necessidade que o homem herdou de organismos inferiores de agir dessa maneira, isto é, pelo processo de igualação das coisas (LIMA, 2010, p. 96).

    Em sua construção do pensamento perspectivista, Nietzsche concentra sua crítica sobre o conhecimento conceitual e a eficácia da ciência: diferentemente do que se vê em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, tempo, espaço e número não têm mais uma função unificadora, decorrente da atividade de uma consciência; há agora com A gaia ciência o corte transversal que empreende a dupla operação da consciência e da linguagem, qual seja, em primeiro lugar, a de simplificar um processo variado de pensamentos, para, em segundo lugar, operar uma identificação do que é diferente:

    A invenção das leis do número se deu com base no erro [Irrtum], predominante já nos primórdios, segundo a qual

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